Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 2º Domingo da Quaresma, 05-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O caminho quaresmal é essencialmente um caminho pascal, marcado pelo abaixamento e pela elevação de Jesus, o Filho de Deus. Por isso, se no primeiro domingo deste tempo contemplamos Jesus posto à prova no deserto de muitos modos, até à tentação de se aproveitar de sua qualidade divina para cumprir sua missão, hoje contemplamos Jesus transfigurado, revestido daquela glória que possuía como Filho de Deus, mas que esconde, fazendo epoché, colocando-a “entre parênteses” em sua condição de homem como nós.
Os três Evangelhos sinóticos narram esse evento que marca uma virada na missão de Jesus, depois da profissão de fé de Pedro e da revelação por parte de Jesus daquilo que o esperava em Jerusalém, como uma necessitas humana e divina (cf. Mt 16,13-28). Eles relatam uma história já “tradicional” na comunidade dos discípulos, com a qual se tenta expressar o indizível: Jesus se mostrou real e totalmente homem em outra forma (metemorphóthe), uma forma gloriosa que transcende a forma da carne do Filho de Maria.
A pergunta sobre o que realmente aconteceu não faz muito sentido, senão para destacar que ocorreu um apocalipse, uma elevação do véu que permitiu entrever o invisível. Portanto, tentaremos escutar sobretudo o relato de Mateus; se, de fato, é verdade que, literariamente, ele não difere muito dos outros dois, no entanto, ele contém algumas características específicas: se Marcos tenta nos testemunhar uma epifania de Deus em Jesus (Mc 9,2-9), se Lucas fornece uma antecipação da glória da ressurreição (cf. Lc 9,28-36), Mateus quer nos revelar como Deus mesmo confirma a fé proclamada por Pedro (“Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, Mt 16,16).
Mateus liga a transfiguração às solenes palavras de Jesus aos discípulos: “Em verdade, eu vos digo: alguns daqueles que estão aqui, não morrerão sem antes terem visto o Filho do Homem vindo com o seu Reino” (Mt 16,28). Palavras certamente obscuras, mas que ressoavam como uma promessa: alguns dos discípulos que o escutam, ainda durante a sua vida, veriam o Filho do homem vindo na glória do seu reino! Essas palavras introduzem o relato da transfiguração, que aparece como seu cumprimento.
São muitas as alusões ao Antigo Testamento no nosso relato: Jesus leva consigo três companheiros para a montanha (cf. Ex 24,1.9); recebe a revelação de Deus depois de seis dias (Ex 24,16); é transfigurado no rosto, radiante de luz (cf. Ex 34,29). A montanha da transfiguração não é localizada pelos três evangelistas, mas é definida como “um alto monte, à parte”. Portanto, no lugar das revelações de Deus, lá onde, segundo os profetas, ocorre a definitiva manifestação de Deus no seu dia, o último (cf. Is 2,2; 11,9; Dn 9,16), onde Moisés (cf. Ex 24,12-18; 34,4) e Elias (1Reis 19,8) subiram para encontrar o Senhor, Jesus também sobe, levando consigo Pedro, Tiago e João, três discípulos, muitas vezes próximos dele, envolvidos de modo particular na sua vida.
Diante deles, Jesus “é transfigurado” (subentendido, por Deus: passivo divino), e eis que “o seu rosto brilhou como o sol”. Mateus refere o sol, a luz, porque essa novidade da forma assumida por Jesus é algo que não procede de sua condição humana. Se a pele do rosto de Moisés havia se tornado radiante diante da glória de Deus, o rosto de Jesus é resplandecente como o sol que ilumina, mas, ao mesmo tempo, não se deixa ver, deslumbra.
Recorrendo à linguagem paulina, poderíamos dizer que “aquele que era em forma de Deus (…) e tinha assumido a forma do homem escravo” (Fl 2,6-7), revela aqui – tanto quanto é humanamente possível percebê-la e vê-la – sua forma, sua condição de Filho de Deus.
Nessa percepção de Jesus sob “outro” aspecto, manifestam-se ao lado dele Moisés e Elias, que representam, respectivamente, a Torá e os Profetas, mas que, acima de tudo, são testemunhas da vinda do Messias. Tudo o que precedeu a Cristo na história da salvação, de Abraão em diante, está ao lado de Jesus para testemunhar que ele é o profeta esperado, o veniente prometido. Com sua presença, Moisés e Elias atestam: “Eis o Messias, o Cristo, como Pedro tinha confessado. Eis o Servo, o Profeta amado por Deus, que, como ele mesmo anunciou, vai rumo à paixão”.
Aquilo que é narrado como uma visão é, sobretudo, uma experiência possível aos profetas na ordem da fé e do dom do Senhor, uma experiência que não deriva de “carne e sangue” (cf. Jo 1,13), mas uma pura revelação do Pai (como a confissão de Pedro; cf. Mt 16,17). Por isso, três vezes se recorre ao “eis” (idoú; no texto original, ele aparece, não traduzido em português, também no versículo 5a), palavra típica da revelação apocalíptica: para a aparição de Moisés e Elias, para a manifestação da nuvem luminosa, para o ressoar de uma voz.
Pedro gostaria de ficar nessa experiência de fé, gostaria de fazer com que ela se tornasse definitiva, como se o fim dos tempos e a vinda na glória de Jesus já fossem realidade. Ao contrário de Marcos e Lucas, Mateus anota que Pedro sabe bem o que diz: chama Jesus de “Kýrios, Senhor”, mostra novamente sua fé e afirma que é uma coisa muito bonita aquilo que estão vivendo. Por isso, gostaria de fazer três tendas, para Jesus, para Moisés e para Elias, de modo que a história pare na hora da manifestação da glória.
Mas eis que aparece uma nuvem luminosa, que obscurece aquela experiência: uma nuvem que ilumina e, ao mesmo tempo, faz sombra (verbo episkiázo). Estamos diante do indizível, porque a Presença de Deus, do Deus que ninguém jamais viu (cf. Jo 1,18), revela e, ao mesmo tempo, esconde: é a Shekinah, a morada de Deus, que, enquanto ilumina, faz sombra, Presença que se experimenta, mas que sempre permanece evasiva...
Por fim, eis que sai da Shekinah uma voz, que fala e revela: “Este é o meu Filho amado (agapetós), no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!” A voz de Deus já ressoou na hora do batismo Jesus no Jordão (cf. Mt 3,17): lá, Jesus tinha descido nas águas como um pecador; por ter sido imerso nelas por João, o Pai o tinha revelado como seu Filho único e amado, e ele sozinho tinha escutado essa proclamação. Aqui, em vez disso, os discípulos também escutam, eles que não podem deixar de ler nelas um “amém”, um selo posto por Deus sobre a confissão de Pedro.
Além disso, em comparação com o batismo, há aqui um acréscimo decisivo: “Escutai-o!”. A voz do Pai diz que Jesus é seu Filho (cf. Sl 2,7), é o Amado (Gn 22,2), é o Servo que Deus sustenta como Eleito, no qual se compraz (cf. Is 42,1), mas é também o Profeta prometido por Deus a Moisés, ao qual deve se dirigir a escuta (cf. Dt 18,15).
Diante de tal apocalipse, “os discípulos caíram com o rosto em terra”, em adoração, confissão silenciosa de Jesus como Filho de Deus, como Kýrios, reconhecimento no temor de Deus da Shekinah diante deles. Mas Jesus se aproxima, toca-os e lhes diz: “Levantai-vos e não tenhais medo”. Toca-os com um gesto de confiança e de amor, quase como que os ressuscitando, e os convida à postura escatológica do estar de pé sem medo (cf. Lc 21,28): “Levantem-se, façam um gesto de ressurreição (eghérthete) e deixem de lado todo temor e medo!”.
Os três discípulos “viram, ouviram e contemplaram” (cf. 1Jo 1,1), mas também foram tocados por Jesus, como que despertados por ele para um novo conhecimento na fé do próprio Jesus Cristo.
Eles saberão seguir Jesus até Jerusalém, na paixão escandalosa, na angústia vivida por ele no jardim do Monte das Oliveiras? Recordarão essa experiência ou dela se esquecerão (cf. Mt 26,36-46)?