03 Março 2023
Longe de Bose, Enzo Bianchi recriou seu mosteiro, uma pequena casa aos pés da colina de Turim, a pequena horta onde afundam suas raízes existenciais, um único companheiro, Melek, um cachorrinho muito animado, que mordisca incansavelmente os sapatos de seus hóspedes.
Inevitavelmente, muitas pessoas passam por aqui, nem que seja apenas para trocar uma palavra.
A entrevista é de Francesca Bolino, publicada em La Repubblica, 26-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Enquanto isso, parabéns, padre Bianchi!
Obrigado. Vou completar 80 anos na sexta-feira [3 de março]. Nasci em Castel Boglione, uma cidadezinha que, no pós-guerra, tinha apenas mil habitantes. Meu pai, Giuseppe, era funileiro e, ocasionalmente, também barbeiro. Minha mãe, Angela, infelizmente sempre estava doente. Ela tinha uma válvula mitral que constantemente lhe causava crises de asma. Na época, não se costumava operar. De fato, quando eu tinha oito anos de idade, em 1951, ela morreu. Éramos uma família muito pobre, e meu pai se virava como podia.
Você contou sua infância no livro “Pane e vino”, publicado pela editora Einaudi. A ideia de fundo é que não se joga fora nada...
Exato. Eu cresci com essa configuração. Não tive uma bela infância. As recordações que eu tenho de minha mãe estão todas ligadas à doença. Foi muito difícil quando ela veio a faltar, senti uma grande solidão. Depois, felizmente, duas mulheres entraram na minha vida, a professora e a carteira do vilarejo, que me acompanharam no meu caminho de crescimento e também me sustentaram financeiramente. Sem a ajuda delas, eu não teria podido estudar.
Elas o formaram?
Sim, ensinaram-me o latim na escola primária e, por volta dos 12 anos de idade, deram-me uma pequena, mas significativa, biblioteca com autores como Tolstói, Dostoiévski e Mauriac... Foi uma grande sorte ter a possibilidade de crescer intelectualmente em um contexto tão pobre, difícil e adverso.
Por que adverso?
Nos vilarejos, na época, dominava uma violência ditada sobretudo pela ignorância. Eu não era nada amado pelos parentes de meu pai, porque sempre fui considerado o filho de um pecado: ter se casado com uma mulher já doente e, portanto, destinada a não sobreviver.
É terrível.
Além disso, aqueles parentes, quando minha mãe morreu, pensando em me ajudar, me davam livros como “Il piccolo vetraio” [O pequeno vidreiro] ou “Infanzia abbandonata” [Infância abandonada], que me faziam me sentir ainda pior. Não havia inteligência no seu modo de pensar e de agir. Não entendiam que aquelas histórias de meninos órfãos e pobres me tornavam ainda mais inadequado e solitário. O resultado para mim foi uma interiorização ainda maior e mais profunda do que um menino pode e deve experimentar.
Você conhecia, desde muito jovem, as medidas da dor. Onde encontrou forças para superar tudo isso?
Não sei. A estrada certamente foi totalmente íngreme. Os livros e a leitura me ajudaram. Lembro-me de ter recebido, aos 13 anos de idade, daquelas duas mulheres que lhe falei, a Bíblia em três volumes enormes, publicados pela editora Saie, aquelas velhas edições de Turim. Eu lia e sublinhava tudo. E, como eu precisava de um diálogo que certamente não podia encontrar ao meu redor, comecei um curso por correspondência com Roma. Eu devorava Lucrécio, companheiro de viagem maravilhoso que sempre tenho em minha mesa de cabeceira. E, no colégio, tive um professor verdadeiramente único e extraordinário, Giovanni Boano, que mais tarde se tornou deputado europeu pela Democracia Cristã. Ele nos ensinava russo para que eu pudesse ler Dostoiévski na língua original.
E depois você escolheu economia e comércio. Por quê?
Temos que voltar atrás, mas só um pouco. No colégio, graças a Giovanni Boano, que era secretário da Democracia Cristã, entrei na Ação Católica. Eu queria fazer carreira, os dirigentes me diziam que já havia filósofos e professores demais, mas, em vez disso, faltavam economistas. E assim cheguei a Turim e me matriculei em Economia. Eu morava na Via Piave 8 e foi nessa época que comecei a frequentar a Fuci (Federação dos Universitários Católicos Italianos), mas depois, em menos de dois meses, me virei por conta própria (sorri).
Ou seja, formou um grupo totalmente próprio. Por quê?
Sim, fundei um grupo bíblico, porque a Fuci já estava desmoronando: o secretário abandonou tudo, porque queria se casar. Seu sucessor, depois de um ano, fez a mesma escolha. E era apenas o início da profunda crise que, depois, envolveu as instituições religiosas.
Mas eram os anos em que a Igreja estava se abrindo para o social, havia o Concílio Vaticano II, a missa não era mais rezada em latim. Em suma, algo estava mudando, mas você criou seu primeiro grupo, sozinho.
Sim, os anos 1960. Isso mesmo. Porém, enquanto a Igreja se abria, as instituições religiosas afundavam. A Fuci tinha se esvaziado, tinha acabado, e eu me virei. Havia a necessidade de um novo horizonte e de outra fórmula de vida cristã. No início, éramos 30, incluindo valdenses e ortodoxos gregos.
E onde vocês se reuniam?
Primeiro, na Via Piave, onde eu morava; depois, sendo muitos, nos mudamos para uma sala de um seminário na Via XX Settembre.
Do grupo bíblico, passou para a comunidade. Mas depois, por três anos, permaneceu sozinho, em retiro, em uma casa de campo. Como foi?
(Sorri). Inicialmente, no grupo, havia dois homens e duas mulheres. Era o verão de 1965. Tínhamos decidido fazer juntos uma experiência diferente e assim procuramos uma casa perto de uma igreja românica na Serra di Ivrea, em Bose. Era um lugar sem eletricidade nem água. Bastante distante da estrada principal. Muito isolado. Eu me mudei logo, os outros chegariam alguns meses depois.
Mas não chegou ninguém.
Exato. As duas meninas estavam noivas, um rapaz não estava tão convencido, e o outro queria estudar sociologia em Trento. Então, fiquei ali, sozinho.
E como viveu nesses três anos?
Eu tinha uma horta, sempre tive. Lembro que, quando fiz o exame de admissão para o ensino secundário, meu pai me perguntou que presente eu queria: eu queria uma horta. Voltando para a casa de campo: não tinha geladeira, pois não havia eletricidade, e então eu colocava a manteiga no poço, o lugar mais fresco. Tinha uma Vespa, com a qual ia ao vilarejo buscar mantimentos. E, depois, para ganhar alguma coisa, traduzia artigos de teologia do francês. Também instalei uma campainha que tocava para mim três vezes ao dia. Em certo ponto, quase misteriosamente, algumas pessoas começaram a vir para entender o que eu estava fazendo.
Foi difícil.
Sim, não foram anos fáceis, mas nunca perdi a serenidade, me fortaleci, tive tempo para me conhecer a fundo. Conheci pessoas realmente especiais, viandantes e andarilhos que estavam de passagem, paravam, e eu os hospedava. Perto de mim, moravam uma senhora com seu filho: faziam polenta e de vez em quando me davam algumas fatias. Eu comia muitas, com gorgonzola (sorri).
Depois desses três anos de solidão extrema, finalmente chegaram também outras pessoas. E pouco a pouco...
Ao longo dos anos, chegamos a 95 almas, e Bose atingiu seu máximo esplendor.
Qual era “a regra” que você instituiu e que moldou a identidade da Comunidade de Bose?
Acima de tudo, inspirei-me no monaquismo basiliano e em São Pacômio, um monge cristão egípcio pouco conhecido no Ocidente. Seu modelo era de pensamento e de vida, ao qual eu não só olhava, mas também colocava em prática. Fundei uma comunidade com três ideais principais: tinham que ser pessoas simples, leigas, não religiosas, não padres, batizadas como todos os demais. Homens e mulheres que tinham que trabalhar e não depender das ofertas ou dos financiamentos, e, portanto, livres da Igreja. Terceiro aspecto fundamental: dar hospitalidade a quem o pedisse. Acolhíamos cerca de 15 mil pessoas por ano.
Quais papas você conheceu?
Encontrei-me com João Paulo II quando ele me pediu para devolver ao Patriarca Alexei II o ícone da Virgem de Kazan na Catedral da Dormição no Kremlin. Depois, em 1976, conheci o Papa Bento, quando ele era um teólogo, em um congresso sobre o Vaticano II. E, desde então, tivemos muitas outras oportunidades de encontro. Escrevemos um livro juntos, participamos do Jubileu do ano 2000 sobre a confissão dos pecados da Igreja. E ele me nomeou perito em dois Sínodos, o que não ocorre com tanta frequência, principalmente para um leigo como eu. E o Papa Francisco, com quem tive uma relação mais humana, menos teológica.
Padre Bianchi, por que você nunca se tornou padre?
Nunca senti a vocação. O cardeal Pellegrino me perguntou várias vezes se eu queria ser ordenado padre, mas eu sempre quis permanecer um simples leigo como todos os demais.
E, como leigo, conheceu o amor?
(Sorri) É claro, tive uma namorada quando estava na universidade, eu tinha 20 anos. Nós nos amamos muito por dois anos. Mas, depois, fiquei absorvido demais pelo meu ideal, pela vontade de dar origem ao meu sonho: uma comunidade ecumênica, não apenas católica, feita de mulheres e homens com os mesmos direitos. Eis “a regra”, essa é a regra que eu pensei e que escrevi para Bose.
Bose foi e é um lugar carismático, porque você o construiu e formou nesse sentido. Mas depois você foi embora. O que resta hoje daquela magia mística?
Não sei. Eu mudei de estrada. Bose certamente não é aquela de antes. Muitas pessoas foram embora depois que eu saí, em 2017. O problema é que ninguém mais entrou…
Que relação você tem com o novo prior?
Cordial. Pedi várias vezes a reconciliação, mas ele nunca quis. Então, cada um seguiu seu próprio caminho.
Isso significa que você vai fundar uma nova comunidade, uma Bose 2?
(Ri). Não. Um filho só se tem uma vez.
Mas em breve você irá para uma casa de campo “Camadio”, ou seja, “Casa della madia” [Casa do aparador], em Albiano, para “viver em paz os últimos anos de vida”, como você escreveu em seu site.
É verdade, em junho vou me mudar para aquela casa. Alguns amigos também virão, em parte aqueles que deixaram Bose. Em suma, é um belo desafio aos 80 anos (sorri).
Seu lugar da alma?
A Via Po e, mais especificamente, o Café Fiorio, onde passei os maravilhosos anos da universidade.
Tem algum arrependimento?
Você quer saber se eu sinto falta do amor? É claro. Eu também gostaria de ter tido filhos. Por outro lado, o ser humano também é feito de carne. Mas foi assim.
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“Sou um órfão salvo pela horta e pela Bíblia”. Entrevista com Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU