09 Fevereiro 2023
Nas últimas décadas, o campo da ética teológica passou a ser dominado por leigos e não pelo clero, e um crescente número deles é de mulheres, e a disciplina tornou-se tão global e diversa quanto o próprio catolicismo. Pode ser fácil assumir isso como evidente, mas essa mudança não é apenas bem-vinda; ela também tem uma influência profunda e contínua sobre o que o campo abrange e como ele é praticado.
O comentário é de David Gibson, diretor do Centro de Religião e Cultura da Fordham University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em America, 03-02-2023. A tradução è de Moisés Sbardelotto.
Uma confissão: eu raramente manuseio um livro de modo tão rude quanto com a última obra de James Keenan, SJ, “A History of Catholic Theological Ethics” (Uma história da ética teológica católica). Meu exemplar está com os cantos das folhas dobrados, marcadas e basicamente arruinadas para um uso que vá além do meu. Foi puro egoísmo. Mas pelo menos meu pecado tem uma explicação: eu maltratei a obra de Keenan porque a considero uma exposição tão informativa e claramente escrita do passado, do presente e do (espero) futuro do pensamento católico sobre ética e moral que eu não poderia fazer diferente.
“Uma história da ética teológica católica”, em tradução livre, de autoria de James F. Keenan (Foto: Divulgação)
Eu fiz anotações de modo impiedoso em quase todas as páginas, não apenas para esta resenha, mas também para aquelas que eu tenho certeza de que serão referências repetidas no futuro. De fato, minha consciência me diz que minha motivação atenua minha falha. Você pode pensar o contrário. Mas se ambos lermos Keenan, pelo menos seremos capazes de discutir nossas diferenças – e questões muito mais sérias – com o rigor intelectual e a generosidade de espírito que hoje são necessários mais do que nunca.
Reconhecidamente, o título bastante prosaico do livro de Keenan não parece pressagiar tal recompensa. Não se deixe enganar. Keenan, um padre jesuíta e teólogo moral do Boston College, renomado tanto como professor quanto como escritor prolífico com perfil global, contesta desde o início que não é um historiador. Mas, se você está procurando uma visão geral da história católica em um único volume, este é um bom lugar para começar – simplesmente porque o catolicismo é, por definição, uma comunidade caracterizada por aquilo em que seus adeptos acreditam e pelo modo como se comportam.
A maioria das crônicas tende a se focar em relatos sobre papas e monarcas, cismas e santos. Esse é um ponto de vista divertido, mas também limitado e bastante secular. A abordagem de Keenan é a história intelectual de carne, osso e alma, que é aquilo que se espera quando se fala de figuras como Agostinho, Abelardo e Afonso de Ligório.
Como escreve Keenan, “a verdade moral não escapa à história”. E essa observação aponta para a segunda lição do título de Keenan: a ética teológica, explica ele, não é a teologia moral per se. É a integração da teologia moral clássica (do modo como foi codificada e ensinada nos seminários após o Concílio de Trento) e os campos da ética sexual, social e médica que surgiram no século XIX (mas que, na realidade, começaram no século XVII) e que continuam a se expandir e a se desenvolver hoje. Essa “visão mais abrangente e inclusiva”, escreve Keenan, “é o que agora chamamos de ética teológica”.
A própria emergência da ética teológica, em outras palavras, ressalta a lição crucial de que “o progresso é constitutivo da tradição”. Essa tradição permanece fundamentada no ensino dos Evangelhos, mas é elaborada em princípios e métodos desenvolvidos ao longo dos séculos.
Esse progresso não é uma mudança pela mudança ou uma mudança em busca de um resultado ou de uma agenda específica, como muitos temem. Pelo contrário, trata-se da conversão na busca da santidade, um processo que necessariamente responde às pessoas e às circunstâncias de cada época. “Estou tentando – diz Keenan – entender por que, em diferentes momentos, surgiram, cresceram e decaíram determinados modos de pensar a vida moral e por que outros tópicos, posturas e métodos os substituíram posteriormente”. É uma história “formada não pelos grandes realizadores, mas mais pelos inovadores”.
O deleite dessa história, pelo menos para mim, é o relato de Keenan sobre as histórias daqueles inovadores e realizadores, mas também sua explicação sobre as origens da teologia moral nas Escrituras e nas vidas dos primeiros cristãos que nem sequer possuíam Evangelhos escritos.
É importante lembrar que a fé se expressou inicialmente em uma ética do amor, que provavelmente foi responsável pelo crescimento inicial da Igreja. Mas também são valiosas as várias escolas e categorias de pensamento moral que se desenvolveram mais tarde, algumas delas hoje tão obscurecidas por acréscimos antigos ou por vieses contemporâneos que não conseguimos entender por que criaram raízes e por que outrora tiveram valor.
A abordagem de Keenan sobre a tradição manualista, por exemplo, é necessariamente crítica, mas também caridosa, e sua explicação da casuística me ofereceu uma melhor compreensão desse método frequentemente criticado e uma maior apreciação dele.
O mesmo pode ser dito sobre ideias como o mal intrínseco, que é usado (e abusado) em tantos debates políticos contemporâneos entre católicos. Você quer entender a paridade da matéria ou a lei natural, o consequencialismo ou a proporcionalidade? Keenan lhe ajuda. A diferença entre o probabilismo e o probabiliorismo? Francamente, eu ainda estou trabalhando nisso e na pronúncia correta. Mas isso é comigo, não com Keenan.
A fixação gradual em qualquer coisa relacionada ao sexo como uma categoria de pecado em si mesmo, argumenta Keenan, isolada por um absolutismo rígido e único em seu domínio da vida espiritual dos fiéis, é notável e lamentável. “Basta ver como os vestidos das moças e o esperma masculino receberam mais atenção do que as armas atômicas para avaliar o quão distantes os manualistas estavam do mundo que tentava emergir da Segunda Guerra Mundial”, escreve Keenan.
E o desenvolvimento de ensinamentos sobre os direitos humanos, a dignidade humana e a autodeterminação como resposta aos horrores do colonialismo imperial é esclarecedor, mas também deprimente. É preocupante o fato de que esse desenvolvimento exigiu tanto esforço e tanto tempo e enfrentou tanta oposição na Igreja. No entanto, isso deve nos inspirar para as lutas de hoje.
Tornar tudo isso interessante e acessível é a chave para outra lição central de Keenan: a saber, que a teologia moral e a ética social se expandiram da província exclusiva do clero e dos confessores para incluir todos os fiéis, tanto mestres quanto discípulos. Essa mudança tem sido tão dramática (e necessária) quanto qualquer outra na história da Igreja.
Apenas nas últimas décadas, o campo da ética teológica passou a ser dominado por leigos e não pelo clero, e um crescente número deles é de mulheres, e a disciplina tornou-se tão global e diversa quanto o próprio catolicismo. Pode ser fácil assumir isso como evidente, mas essa mudança não é apenas bem-vinda; ela também tem uma influência profunda e contínua sobre o que o campo abrange e como ele é praticado.
Essa mudança também é relevante para os não especialistas – ou seja, a grande maioria de nós, meros fiéis. Keenan descreve o “discipulado” como a identidade fundacional do cristão moderno, remontando ao encargo do Concílio Vaticano II aos católicos de todos os estados de vida a responderem ativamente a esse chamado na formação da sociedade – e não apenas na preparação da alma para a missa. Em certo sentido, somos todos eticistas teológicas agora.
E sempre fomos. “Todo ato humano é um ato moral”, como disse Tomás de Aquino. Ou, como Keenan afirma, “a vida de todos os dias é a matéria da reflexão, da intenção e da ação morais”.
À medida que buscamos cumprir essa missão, a reformulação de Keenan sobre a noção de pecado, há muito arraigada em cristãos de todas as tradições, é especialmente crucial: “O pecado”, propõe ele, “é o fracasso em se preocupar em amar”. Os pecados de omissão são tão importantes quanto os pecados de comissão, pelos quais geralmente somos obcecados. O pecado não tem tanto a ver com as nossas fraquezas, mas sim com as forças que não empregamos para amar o próximo; tem a ver com o fracasso até mesmo em ter consciência desse pecado.
A teologia moral se fundou na “busca da santidade”, escreve Keenan, “e não na confissão do pecado”; e esse caminho de conversão é tanto comunitário quanto individual, dialógico mais do que a memorização de uma série de preceitos. Apesar de todo o brilhantismo do período medieval, observa ele, a ideia de pecado que surgiu naqueles séculos era “efetivamente sobre ações erradas que mal podemos evitar que ocorram”. Naqueles séculos, escreve Keenan, “o amor desaparece do campo da teologia moral”, e até mesmo as obras de misericórdia se concentravam no comportamento pecaminoso, e não na misericórdia como Deus a vê: “A disposição de entrar no caos do outro”.
O livro de Keenan chega em um momento propício. O foco do Papa Francisco no acompanhamento e na misericórdia, no discernimento e na sinodalidade é uma mudança epocal da catequese mecânica e repetitiva para uma restauração e uma renovação da teologia moral. Como Francisco disse em uma reunião de teólogos morais em maio passado:
“Todos vocês são chamados a repensar hoje as categorias da teologia moral, em seu vínculo recíproco: a relação entre a graça e a liberdade, entre a consciência, o bem, as virtudes, as normas e a phrónesis aristotélica, a prudentia tomista e o discernimento espiritual, a relação entre a natureza e a cultura, entre a pluralidade as línguas e a unicidade do ágape.”
Esse repensamento coletivo é bem-vindo e necessário, mas requer um guia para os perplexos nesta Igreja cada vez mais globalizada e neste mundo cada vez mais interdependente, e James Keenan escreveu o vade-mécum de que precisamos para empreender essa jornada de modo responsável e fiel.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Pecado é não amar: uma história da ética e da moral católicas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU