06 Fevereiro 2023
Historicamente, a relação com a democracia não é simples, e cada Igreja empreendeu um caminho dialético pessoal com ela. Mas como as Igrejas se posicionam diante dos cenários de hoje, que poderiam ser definidos como “pós-democráticos”?
A opinião é do teólogo italiano Fulvio Ferrario, e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma. O artigo foi publicado em Confronti, 23-01-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há pouco a dizer: a relação entre Igrejas e democracia, historicamente, não é simples. Roma tomou partido, com Pio IX, por posições drasticamente antiliberais; em seguida, estipulou concordatas com os fascismos europeus e onde, após a Segunda Guerra Mundial, se impunham sistemas democráticos, favoreceu uma leitura tendencialmente conservadora deles, às vezes até contra significativos impulsos de abertura provenientes do próprio laicato.
Também nisso a Ortodoxia atravessa outra história: para ela, as práticas democráticas constituem ainda hoje uma “novidade” ou, em diversos casos (não só o russo), um verdadeiro “corpo estranho”.
O luteranismo alemão viveu como um luto o colapso da monarquia; com fadiga o período de Weimar e, salvo exceções, com enorme dificuldade o nacional-socialismo.
É um pouco diferente a situação das Igrejas de tradição “calvinista” (propriamente: “reformada”), acostumadas desde as origens a uma prática sinodal, muitas vezes minoritárias nas respectivas sociedades e não raramente inclinadas a perspectivas políticas abertas ao método do consenso; e daqueles (metodista e batista, por exemplo) que se desenvolvem predominantemente em âmbito anglófono.
Essa história complexa não deixa de ter consequências ainda hoje. É fato, porém, que as Igrejas ocidentais aprenderam muito rapidamente (algumas com mais boa vontade, outras com menos) a gramática democrática, que, por mais de meio século, pareceu hegemônica ou, melhor, predestinada a uma expansão inexorável, especialmente após o colapso do bloco soviético.
Hoje, estamos menos certos dos magníficos e progressivos destinos da democracia. A China não esconde suas próprias convicções sobre o declínio das democracias ocidentais e se candidata a liderar o planeta no sinal de um autoritarismo generalizado e reacionário, ligado a uma combinação eficaz entre capitalismo selvagem e dirigismo estatal; a Rússia de Putin está engajada em uma cruzada antidemocrática, abençoada pela Igreja Ortodoxa daquele país; e, no “Ocidente ampliado” do século XXI, difundem-se as chamadas “democracias autoritárias”, para usar o oxímoro de Viktor Orbán (filho de um pastor reformado): a Itália de Meloni poderia ser a new entry nesse clube.
Como as Igrejas se posicionam diante desses cenários, chamemo-los assim, pós-democráticos? Acho que podemos identificar três grandes opções que, na opinião deste que escreve, também constituem grandes tentações.
A primeira é constituída pela cara velha utopia conservadora de uma Europa “cristã” do Atlântico aos Urais, ou seja, ideologicamente guiada pelo papa e pelo patriarca de Moscou. Naturalmente, tal perspectiva não tem o vento em popa no curto prazo, pelas razões que todos sabem, mas descartá-la seria míope.
Trata-se de uma instituição, como Roma, que pensa a história em séculos, senão em milênios; e de outra, a Ortodoxia, para a qual a História é uma abstração ou, em todo o caso, um fator secundário. Dois papados importantes como os de João Paulo II e de Bento XVI se moveram nessa perspectiva.
A segunda opção, presente em alguns setores católicos e protestantes que se consideram “progressistas”, e talvez não alheia ao próprio “bergoglismo”, é a do “nem-nem”. Não com Putin, certamente, menos ainda com Xi Jinping; mas nem mesmo com o Ocidente: que também é agressivo, explora o Sul do mundo e empurra novamente para o mar os desesperados da Terra, produz armas e as vende aos tiranos, desenvolve sistemas políticos muito expostos à corrupção etc.
A terceira possibilidade consiste em assumir, perante a democracia, uma atitude especular à de Kyrill em relação à tirania de Putin: ou seja, tornar-se os “capelães” da ideologia ocidental e liberal. Se os “nem-nem” rejeitam a evidência (pode-se gostar ou não de Biden, mas Putin é um criminoso), esta última opção corre o risco de sacralizar um produto da História, tornando-o um ídolo.
E então? Então, a fé relativiza também a democracia; porém, como estimula uma inteligência, deveria ensinar a não desprezar essa invenção humana. Churchill, que não era teólogo, também havia visto bem teologicamente: a democracia é o pior sistema possível, com exceção de todos os outros.
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Pós-democracia. Artigo de Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU