Lições do livro de um comunista que o Papa Francisco aconselhou o presidente do Governo da Espanha a ler

Livro "Síndrome 1933", de Siegmund Ginzberg. | Foto: Divulgação

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07 Março 2022

 

Quando terminei de ler o livro Sindrome 1933 e comecei a escrever este artigo sobre o que me parecia mais relevante nele, a guerra na Ucrânia ainda não havia começado. Na Espanha, as preocupações situavam-se em outra ordem de coisas. O fim da pandemia, as eleições antecipadas em Castela e Leão e a ascensão eleitoral de uma força eleitoral como o VOX que reivindica o franquismo e que nunca se ouviu criticar ou falar mal de Hitler e do nazismo alemão que com seus desejos expansionistas arrastou a Europa e o mundo para a Segunda Guerra Mundial.

 

A reportagem é de Juan Gastón, publicada por Nueva Tribuna, 03-03-2022. A tradução é do Cepat.

 

Provavelmente quando o Papa Francisco recomendou sua leitura à delegação que o visitou em outubro de 2020 com Pedro Sánchez [presidente do governo espanhol] à frente, ele estava seriamente preocupado com a ascensão de posições de extrema direita que avançavam em muitos países do mundo. Atestam-no suas palavras, recolhidas em um vídeo e em uma nota oficial do Vaticano.

 

Sindrome 1933, escrito por Siegmund Ginzberg, intelectual italiano, jornalista do L'Unitá, histórico jornal do Partido Comunista Italiano, tem como foco a Alemanha dessa época, a ideologia nacional-socialista e o processo paulatino e violento que levou Hitler a obter o apoio eleitoral majoritário do povo alemão, para governar sem escrúpulos e restrições, eliminando qualquer oposição interna, a imprensa crítica e qualquer manifestação cultural contrária aos princípios nazistas, racistas e xenófobos.

 

Com um tom sério, em uma atmosfera muito respeitosa, o papa enviou uma espécie de mensagem à Espanha sobre os perigos do nacionalismo e das ideologias, dizendo o seguinte:

 

“As ideologias sectarizam, as ideologias destroem a pátria, não constroem. Temos que aprender isso com a história. Neste livro o autor faz com muita delicadeza uma comparação com o que está acontecendo na Europa: ‘cuidado, estamos prestes a fazer um caminho semelhante’. Vale a pena lê-lo.”

 

Ginzberg reconstrói em detalhes, com fontes bibliográficas bem documentadas, os detalhes da conquista do poder pelo nazismo e o colapso de todas as outras forças políticas e sociais, que foram eliminadas uma após a outra, seus líderes presos, suas propriedades confiscadas e declaradas ilegais. Ele se pergunta como foi possível que sindicatos com milhões de sindicalizados, partidos com grande presença parlamentar e história por trás deles se dissolvessem da noite para o dia como açúcar em um copo d'água.

 

“Quando o império de Weimar caiu, uma salada de possibilidades começou a emergir para sair da crise. Começou aí uma ideologia, o caminho do nacional-socialismo, e continuou até chegar ao que conhecemos: o drama da Europa com essa pátria inventada por uma ideologia”, resume o Papa Francisco que também encontra semelhanças entre aquela Europa e a dos nossos dias.

 

“Uma campanha eleitoral permanente, um partido que não é nem de esquerda nem de direita, mas ‘do povo’, um contrato de governo improvável, a grande voz que silencia os jornais, o ódio que permeia o discurso público, as acusações contra os técnicos. Gestão pérfida das finanças, com endividamento demagógico e irresponsável”; dessa maneira a editora que publicou o livro resume os acontecimentos daqueles anos.

 

As leis contra a emigração e especialmente contra os judeus acusados de serem ladrões, assassinos e estupradores, o papel das notícias de crimes sexuais como aspectos que geravam uma opinião pública favorável ao racismo, à intolerância e à violência, bem como durante os oito meses que antecederam a tomada do poder de Hitler via-se uma turbulência eleitoral permanente, indo às urnas duas vezes para a presidência da república, três vezes para o Reichstag e inúmeras eleições locais, inclinaram o apoio para o lado dos nazistas. Houve eleições para o Reichstag em 1928, em 1930, em julho de 1932, em novembro de 1932 e novamente em março de 1933. Nessas cinco eleições, o Partido Nacionalista dos Trabalhadores Alemães de Hitler obteve, respectivamente, 800 mil, 6,4 milhões, 13,7 milhões, 11,7 milhões e 17,3 milhões de votos. Seus votos cresceram em progressão geométrica.

 

O número total de eleitores passou de 30,4 milhões de votos para 39,3 milhões. Muitos dos que desertaram das urnas e dos que estavam insatisfeitos com as políticas que haviam sido implementadas votaram nos nazistas. Segundo uma estimativa dos 16,5 milhões de votos conquistados em 5 anos pelos nazistas, 7 milhões vieram de antigos eleitores da direita ou da centro-direita, 1 milhão de eleitores da esquerda e 8,5 milhões de novos eleitores, muito jovens que votavam pela primeira vez ou antigos abstencionistas.

 

A campanha eleitoral permanente na Alemanha, a incapacidade de governar em curtos períodos de tempo, a multiplicação de pequenos partidos, o caos e a desordem, a instabilidade parlamentar e as estranhas alianças entre partidos muito díspares, favorecem a exigência de líderes fortes “que ponham ordem”. Uma vez alcançado o poder, o discurso é alterado sem qualquer pudor, os partidos da oposição são dissolvidos, provocam-se incêndios e provocações que permitem passar à “noite das facas longas” para eliminar aliados e até os próprios companheiros caídos em desgraça. Assim se forma um poder autoritário, pessoal e indiscutível, que, como se viu claramente nas décadas de 1930 e 1940, levou ao desastre não só na Alemanha, mas em todo o mundo.

 

“São as mesmas analogias que ameaçam o presente e existe o risco de que volte perigosamente um passado que pensávamos ter deixado para trás. Quando Hitler se tornou chanceler do Reich em 1933.” “Um ‘déjà vu’ ameaçador pode nos ajudar a entender para onde estamos indo e, talvez, não cometer os mesmos erros”, alerta o autor, cujo livro tem sido elogiado por sua extensa bibliografia e sua capacidade de síntese e de escrita.

 

Tirar conclusões precipitadas ou comparações simples entre esses anos e o que vivemos atualmente não é muito conveniente. O autor considera que a democracia nunca é definitivamente garantida em um país. Estamos acostumados na América do Norte e nos países da Europa Ocidental a considerar irreversíveis as formas democráticas e a alternância pacífica no poder. Também na Alemanha de Weimar considerava-se a democracia representativa irreversível no país mais democrático e avançado da Europa.

 

Ginzberg recusa-se a fazer previsões e termina afirmando o seguinte:

 

“O propósito deste livro não é fazer previsões, muito menos profecias. Não! Seria, de qualquer maneira, muito útil. Cassandra, a filha de Hécuba e Príamo, tinha o dom de fazer profecias verazes, mas ninguém acreditava nela. No entanto, quando anunciou a queda de Tróia, por pouco não a lincharam.

 

Os profetas são conhecidos por serem antipáticos, especialmente por seu próprio povo (ninguém é profeta no meio do seu povo).

 

Corremos o risco de passar por queixas ou maldições. Por outro lado, os falsos profetas são geralmente muito populares. A adivinhação estava na moda na Roma antiga. Então, por volta do século IV do Império Romano, foi estritamente proibida. Havia a pena de morte para os adivinhos, os arúspices, os astrólogos (matemáticos), enfim, para todos aqueles que previam o futuro, e exceto por um curto período, inclusive para todos os que os consultavam. A razão, com a qual os estudiosos concordam, é principalmente política: os que estão no poder não querem que previsões extraoficiais e não autorizadas circulem por conta própria.

 

As analogias não são previsões. Só porque aconteceu uma vez, em circunstâncias semelhantes, dessa maneira, não significa que tenha que seguir o mesmo caminho. Dedos cruzados, poderia ser ainda pior. Nas palavras de Shakespeare:

 

O gods! Who is't can say “I am at the worst”? I am worse than e'er I was. So and worse I may be yet: the worst is not long as we can say “This is the worst”.

(Oh deuses! Quem não pode dizer “estou no pior dos casos”? Estou pior do que estava. Assim e pior ainda posso estar: o pior não é enquanto podemos dizer “isso é o pior”).”

 

Para terminar, resta saber se Pedro Sánchez ou algum de seus companheiros acatou o conselho papal e leu este histórico e documentado livro do filósofo e jornalista italiano. Duvido sinceramente, dada a agenda de trabalho do presidente... e o livro não ser publicado em espanhol. É compreensível se não deu tempo.

 

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