"O Google e a Amazon são capitalistas? São empresas rentistas, tal como sugere Brett Christophers em Rentier Capitalism? E o Uber? É apenas um intermediário, uma plataforma de cobrança de serviço que se inseriu entre motoristas e passageiros? Ou está produzindo e vendendo um serviço de transporte? Essas questões não são isentas de consequências para a forma como pensamos o próprio capitalismo contemporâneo, fortemente dominado por empresas de tecnologia", escreve Evgeny Morozov, pesquisador e escritor bielorrusso, estudioso das implicações políticas e sociais do progresso tecnológico e digital, em artigo publicado por Outras Palavras, 13-01-2023. A tradução é de Eleutério Prado.
Ninguém é capaz de transformar uma ordem social que desconhece. Nas últimas quatro décadas, enfraqueceram-se, em todo o Ocidente, as formas de luta anticapitalista que haviam marcado os séculos anteriores. As greves e a organização sindical declinaram. As perspectivas de transformar o Estado por ação revolucionária dissiparam-se – em especial após a queda do muro de Berlim e do antigo bloco soviético. Quando chega ao governo – o que se dá hoje em parte da América Latina e na Península Ibérica –, a esquerda tem objetivos historicamente modestos. O que mais espera-se de Lula, por exemplo, é que afaste a ameaça fascista e tire de novo o Brasil dos mapas da fome e da pobreza extrema).
Este rebaixamento do horizonte utópico coincide com as enormes transformações ocorridas, no mesmo período, nos processos de produção e distribuição de riquezas. O capitalismo financeirizou-se. O núcleo de produção de valor migrou para o imaterial. A automação pode não ter reduzido o volume geral de emprego, mas é evidente que ofereceu ao capital formas muito mais efetivas de subjugar o trabalho. A consequência institucional, até o momento, tem sido uma vasta ofensiva das elites, que se apoderam de uma parcela cada vez maior da riqueza social e obtêm, dos Estados, a redução de direitos sociais, laborais e previdenciários.
O que tudo isso diz sobre a natureza da ordem social em que estamos imersos? O debate sobre o tema é cada vez mais frequente, em todo o mundo – e tem consequências óbvias para a ação política. Em meio à crise do capitalismo, estaríamos escorregando, como temia Immanuel Wallerstein, para lógicas que tornam ainda mais intensas a exploração, a hierarquia e a violência? Seria uma espécie de Tecnofeudalismo, ou Tecnorrentismo? Ou o que vivemos é o velho capitalismo, que se torna ainda mais selvagem, à medida em que concentra mais riquezas? Os retrocessos são reversíveis? Abrem-se brechas para um projeto emancipatório atualizado?
Outras Palavras traz, a partir de hoje, três textos essenciais para examinar em profundidade o tema. Começamos a tratá-lo em outubro, quando o economista Ladislau Dowbor publicou seu livro mais recente, Resgatar a função social da Economia (Editora Elefante). Estimulado pelo livro, escrevi uma resenha. Intitulava-se “Dowbor vê o ocaso do capitalismo” e nela talvez tenha me arriscado a dizer o que o autor não afirmou. De qualquer forma, a hipótese da virada para um novo sistema está claramente afirmada na obra.
Dias depois, provavelmente em resposta, Eleutério Prado – outro economista cujos textos temos orgulho de publicar — escreveu “Crítica da desrazão neofeudal”. Penso que seu objetivo está claro: sublinhar que não devemos abrir mão da crítica e do enfrentamento ao sistema cuja lógica Karl Marx expôs e combateu.
Mas a fineza de Eleutério e seu gosto pelo debate de ideias levaram-no a enriquecer o diálogo com a tradução de três novos artigos sobre o tema. Graças a ele, temos hoje “Uma crítica da razão tecno-feudal”, de Evgeny Morozov. E publicaremos, na próxima semana, “Igual como sempre foi?”, de Jodi Dean e “Reexame das fronteiras do capital”, de Cédric Durand.
O argumento central de Morozov é: o capitalismo não está morrendo. Desde sempre – inclusive em seu alvorecer – o sistema encontrou meios de somar, à mais-valia gerada a partir de sua lógica particular, outras formas de acúmulo de riqueza. Ele adapta-se infinitamente, como frisou o historiador Frenand Braudel. O que muitos veem como neofeudalismo, ou tecnofeudalismo, é apenas mais uma de suas adaptações. E há um erro maior em supor que vivemos uma mudança de sistema: pensar assim nos leva a “absolver” o capitalismo dos crimes – roubos, saques, massacres – que ele continua a cometer.
Embora divirjam entre si, os três textos que começamos a publicar hoje compartilham uma mesma busca. Seus autores – todos profundamente implicados na luta por uma nova ordem social – empenham-se em compreender as transformações que tornaram obsoletas as velhas formas de ação contra o capital. E os três sondam, no plano da teoria política, caminhos para superar esta defasagem. A leitura oferecerá informações e pontos de vista preciosos para quem se reconhece neste mesmo esforço. E talvez emerja, neste leitor, a impressão de que, muito mais importantes que os conceitos escolhidos por Evgeni Morozov, Cédric Duran e Jodi Dean para caracterizar a época em que vivemos, é o sentido de seu trabalho investigativo. (Antonio Martins).
O Google e a Amazon são capitalistas? São empresas rentistas? E o Uber? Essas questões têm consequências para a forma como pensamos o próprio capitalismo contemporâneo, fortemente dominado por empresas de tecnologia.
Primeiro as boas notícias [1]. A interdição temporária de imaginar o fim do capitalismo, apresentada na década de 1990 por Fredric Jameson, finalmente expirou. A recessão de décadas da imaginação progressista acabou. Aparentemente, a tarefa de vislumbrar alternativas sistêmicas tornou-se muito mais fácil, pois podemos trabalhar agora com distopias – eis que o aparentemente tão esperado fim do capitalismo poderia ser apenas o começo de algo muito pior.
O capitalismo tardio certamente é bem ruim, com seu coquetel explosivo de mudanças climáticas, desigualdade, brutalidade policial e a pandemia mortal. Mas, havendo a distopia se tornado importante novamente, alguns da esquerda se moveram silenciosamente para revisar o adágio de Jameson: segundo suas palavras, hoje é mais fácil imaginar o fim do mundo do que a continuação do capitalismo tal como o conhecemos.
A notícia não tão boa é que, ao empreender esse exercício especulativo de construção de cenários apocalípticos, a esquerda tem dificuldade em se diferenciar da direita. De fato, os dois polos ideológicos praticamente convergiram para uma descrição compartilhada da nova realidade. Para muitos, em ambos os campos, o fim do capitalismo realmente existente não significa mais o advento de um dia melhor, seja este o socialismo democrático, o anarco-sindicalismo ou, talvez, o liberalismo clássico “puro”. Em vez disso, o consenso emergente é que o novo regime é nada menos que uma espécie nova de feudalismo – às vezes, como bem se sabe, um “ismo” tem muitos amigos poucos respeitáveis.
É verdade que o neofeudalismo de hoje chega com slogans cativantes, com aplicativos móveis elegantes e até com a promessa de felicidade virtual eterna no domínio sem fronteiras do metaverso de Zuckerberg. Seus vassalos trocaram seus trajes medievais pelas elegantes camisetas de Brunello Cucinelli e pelos tênis de Golden Goose. Muitos adeptos da tese do neofeudalismo afirmam que sua ascensão é concomitante à do Vale do Silício. Assim, termos como “tecno-feudalismo”, “feudalismo digital” e “feudalismo da informação” são frequentemente usados. O “feudalismo inteligente” ainda não ganhou muita força na mídia, mas isto pode não estar longe.
À direita, o proponente mais vocal da tese do “retorno ao feudalismo” foi o teórico conservador Joel Kotkin, que visou o poder dos tecno-oligarcas “ligados” em The Coming of Neo-Feudalism (2020). Enquanto Kotkin optou por “neo”, Glen Weyl e Eric Posner, pensadores mais jovens de cunho mais neoliberal, optaram pelo prefixo “techno” em seu tão discutido Radical Markets (2018). O “tecno-feudalismo”, escrevem eles, “atrapalha o desenvolvimento pessoal, assim como o antigo feudalismo atrasava a aquisição de educação ou o investimento na melhoria da terra”. [2]
Para os liberais clássicos, é claro, o capitalismo, corroído pela política intervencionista, está sempre à beira de recair no feudalismo. No entanto, alguns da direita radical veem o neofeudalismo como um projeto a ser adotado politicamente. Sob rótulos como “neo-reação” ou “iluminação das trevas”, muitos direitistas estão próximos do investidor bilionário Peter Thiel. Entre eles está o tecnólogo e intelectual neo-reacionário, Curtis Yarvin, que levantou a hipótese de um mecanismo de busca neofeudal, que ele carinhosamente chamou de Feudl, já em 2010. [3]
À esquerda, a lista de pessoas que flertaram com conceitos “feudalistas” é longa e crescente: Yanis Varoufakis, Mariana Mazzucato, Jodi Dean, Robert Kuttner, Wolfgang Streeck, Michael Hudson e, ironicamente, até Robert Brenner (o nome principal do Debate Brenner sobre a transição do feudalismo para o capitalismo). [4] Para crédito deles, nenhum chega a afirmar que o capitalismo está completamente extinto ou que estamos de volta à Idade Média.
Os mais cuidadosos dentre eles, como Brenner, sugerem que as características do atual sistema capitalista – estagnação prolongada, redistribuição de riqueza politicamente impulsionada, consumo ostensivo pelas elites combinado com crescente empobrecimento das massas – lembram aspectos do modo de produção antecedente, o feudalismo, mesmo que seja o capitalismo aquele que governa o dia a dia. No entanto, apesar de todos esses avisos, muitos da esquerda descobriram que chamar o Vale do Silício ou Wall Street de “feudal” é simplesmente irresistível, assim como muitos especialistas não conseguem resistir em chamar Donald Trump ou Victor Orbán de “fascistas”.
A conexão real com o fascismo histórico ou, de outro modo, com o feudalismo pode ser tênue, mas a aposta consiste em imaginar que há um valor de choque suficiente grande nesse tipo de proclamação, pois ela visa sobretudo despertar o soporífero público em sua complacência cotidiana. Além disso, dá bons memes. As multidões famintas no Reddit e no Twitter adoram: um vídeo do YouTube que apresenta uma discussão sobre tecno-feudalismo de Varoufakis e Slavoj Žižek obteve mais de 300.000 visualizações em apenas três semanas.
No caso de figuras bem conhecidas, como Varoufakis e Mazzucato, atormentarem os seus públicos com invocações com base no glamour do feudalismo pode fornecer uma maneira amigável de reciclar argumentos que eles haviam sustentado anteriormente na mídia. No caso de Varoufakis, o tecno-feudalismo parece versar principalmente sobre os efeitos macroeconômicos perversos da flexibilização quantitativa. Para Mazzucato, o “feudalismo digital” refere-se à renda imerecida gerada pelas plataformas de tecnologia. O neofeudalismo é frequentemente proposto como uma forma de trazer clareza conceitual sobre as características dos setores mais avançados da economia digital. Entretanto, nesse caminho, as mentes mais brilhantes da esquerda ainda se encontram muito no escuro.
O Google e a Amazon são capitalistas? São empresas rentistas, tal como sugere Brett Christophers em Rentier Capitalism? [5] E o Uber? É apenas um intermediário, uma plataforma de cobrança de serviço que se inseriu entre motoristas e passageiros? Ou está produzindo e vendendo um serviço de transporte? [6] Essas questões não são isentas de consequências para a forma como pensamos o próprio capitalismo contemporâneo, fortemente dominado por empresas de tecnologia.
A ideia de que o feudalismo está voltando também é coerente com os críticos de esquerda que condenam o capitalismo como extrativista. Se os capitalistas de hoje são meros rentistas ociosos que nada contribuem para o processo de produção, eles não merecem ser rebaixados à condição de senhores feudais? Essa adoção de imagens do feudalismo por figuras da intelligentsia de esquerda, amigas da mídia e dos memes, não dá sinais de cessar.
Em última análise, porém, a popularidade da linguagem feudal é uma prova de fraqueza intelectual, em e não sinal de conhecimento. É como se o arcabouço teórico da esquerda não pudesse mais dar sentido ao capitalismo sem mobilizar a linguagem moral da corrupção e da perversão.
No que se segue, aprofundo alguns debates marcantes sobre as características distintivas que diferenciam o capitalismo das formas econômicas anteriores – e aquelas que definem as operações político-econômicas na nova economia digital – na esperança de que uma crítica da razão tecno-feudal possa lançar uma nova luz sobre o mundo em que ainda estamos vivendo.
À parte os neorreacionários, praticamente todo mundo que usa o termo acha o neofeudalismo deplorável, um retrocesso em direção a um passado opressivo. Mas o que exatamente há de errado nisso? Aqui, como nas famílias tristes de Tolstoi, os infelizes com o neofeudalismo são todos infelizes à sua maneira. As diferenças derivam em parte da natureza contestada do próprio termo “feudalismo”.
Trata-se de um sistema econômico a ser avaliado em termos de produtividade e abertura à inovação? Ou é um sistema sócio-político, a ser avaliado em termos de quem exerce o poder dentro dele, como e sobre quem? Este dificilmente é um debate novo – tanto os medievalistas quanto os marxistas o conhecem bem – mas essas ambiguidades de definição cruzaram com as discussões nascentes sobre neofeudalismo e sobre o tecno-feudalismo.
Para os marxistas, o termo “feudalismo” refere-se, antes de tudo, a um modo de produção. O conceito define, assim, uma lógica econômica pela qual o excedente produzido pelos camponeses – o pivô da economia feudal – é apropriado pelos latifundiários. [7] É claro que ver o feudalismo como um modo de produção não significa que os fatores políticos e culturais não tenham importância. Nem todos os camponeses, latifundiários e suas terras eram iguais; todos os tipos de hierarquias multiníveis e de distinções intrincadas – enraizadas na proveniência, tradição, status, força – moldaram as interações não apenas entre as classes, mas também dentro delas.
As próprias condições de possibilidade do feudalismo eram tão complexas quanto as dos regimes capitalistas que o sucederam. Por exemplo, a natureza peculiar da soberania sob o feudalismo — como enfatizou Perry Anderson, era “parcelada” entre os proprietários de terras, em vez de concentrada no topo. E isso – assinalou – deixou uma marca importante. No entanto, apesar de todas essas nuances, importantes vertentes da tradição marxista concentraram seus esforços em decifrar a lógica econômica do feudalismo, como chave para elucidar a de seu regime sucessor, o capitalismo.
Em sua versão mais simples, a lógica econômica feudal era mais ou menos assim. Os camponeses possuíam seus próprios meios de produção – ferramentas e gado; acesso à terra comum – e assim gozavam de alguma autonomia em relação aos proprietários na produção de sua subsistência. Os senhores feudais, com poucos incentivos para aumentar a produtividade dos camponeses, intervieram pouco no processo produtivo.
O excedente produzido pelos camponeses era abertamente apropriado pelos latifundiários, mais comumente por apelo à tradição ou à lei, imposta pelo senhor por meio da ameaça – e muitas vezes por meio do uso efetivo da violência. Não havia confusão sobre a natureza dessa extração de excedentes: os camponeses não tinham ilusões sobre a sua liberdade. Sua autonomia em matéria de produção pode ter sido considerável; sua autonomia em geral, porém, era estritamente circunscrita.
Como resultado, muitos marxistas (…) sustentaram que, sob o feudalismo, os meios de extração de excedentes são extraeconômicos, ou seja, eram amplamente de natureza política; bens são expropriados sob ameaça de violência. Sob o capitalismo, em contraste, os meios de extração de excedentes são inteiramente econômicos: agentes nominalmente livres são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver em uma economia monetária, na qual eles não possuem mais os meios de subsistência – ainda assim, a natureza altamente exploradora deste contrato de trabalho “voluntário” permanece em grande parte invisível.
Assim, à medida que passamos do feudalismo para o capitalismo, a expropriação politicamente assegurada dá lugar à exploração economicamente viável. A distinção entre o extraeconômico e o econômico — uma das muitas dessas dicotomias — sugere que, como categoria no pensamento marxista, o “feudalismo” é inteligível apenas quando examinado pelo prisma do capitalismo, comumente imaginado como sua forma mais progressiva, racional e sucessor favorável à inovação. E é inovador: contando apenas com meios econômicos de extração de excedentes, não precisa sujar as mãos mais do que o estritamente necessário; o “leviatã invisível” do sistema capitalista faz o resto. [8]
Para a maioria dos historiadores não marxistas, em contraste, o feudalismo não era um modo de produção atrasado, mas um sistema sociopolítico atrasado, marcado por surtos de violência arbitrária e proliferação de dependências pessoais e de laços de fidelidade, comumente justificados por meio de tênues crenças religiosas, assim como de fundamentos culturais. [9] Era um sistema no qual poderes privados incontestáveis governavam supremos. Como resultado, é costume dentro dessa tradição intelectual bastante diversa contrastar o feudalismo não com o capitalismo, mas com o estado burguês que respeita e faz cumprir a lei.
Ser um súdito feudal é viver uma vida precária com medo do poder privado arbitrário; é tremer diante de regras que não se teve nenhum papel em criar; é não ter possibilidade de recorrer de seu veredicto de culpado. Para os marxistas, o oposto do sujeito feudal, o camponês, é o trabalhador totalmente proletarizado da empresa capitalista; para os não marxistas, é o cidadão do estado burguês moderno, desfrutando de uma infinidade de direitos democráticos garantidos.
Independentemente do paradigma considerado, em teoria, deveria ser possível identificar as principais características do sistema feudal para depois passar a examinar se elas podem reaparecer atualmente. Por exemplo, se tratarmos o feudalismo como um sistema econômico, uma dessas características poderia ser a existência parasitária da classe dominante, que consegue desfrutar de um estilo de vida luxuoso às custas e miséria da classe (ou classes) que domina.
Se tratarmos o feudalismo, porém, como um sistema sócio-político, o ponto central é a privatização do poder anteriormente exercido pelo Estado, assim como a sua dispersão por meio de instituições opacas e não responsabilizáveis. Em outras palavras, se conseguirmos associar o feudalismo a uma certa dinâmica e, ademais, se pudermos observar a recorrência dessa dinâmica em nosso próprio presente pós-feudal, deveríamos pelo menos poder falar da “refeudalização” da sociedade, mesmo que um “neofeudalismo” completo não esteja no horizonte. É uma afirmação mais fraca, mas carrega maior clareza analítica.
(…)
Mas que pressupostos intelectuais de fundo, no rico corpo do pensamento de esquerda de hoje, tornam algo como “neofeudalismo” pensável? Afinal, fazer o estranho argumento de que o capitalismo está de alguma forma se movendo ao contrário requer uma compreensão muito particular não apenas de sua dinâmica, mas também de atividades e processos que são propriamente “capitalistas” – bem como daqueles que definitivamente não o são. Quais são essas suposições?
Aqui podemos retornar às disputas acima mencionadas sobre a natureza da transição do feudalismo para o capitalismo dentro da tradição marxista. Existem duas maneiras mutuamente exclusivas de pensar sobre isso. Vê-se o sistema capitalista como impulsionado apenas por sua dinâmica interna de competição e exploração, com a expropriação política situada firmemente fora de seus limites. Nesta leitura, a acumulação de capital é impulsionada apenas por meios econômicos “limpos” de extração de excedentes.
A existência de processos estranhos que possibilitam a expropriação – violência, racismo, expropriação, carbonização – não é negada, mas eles devem ser analiticamente classificados como extraordinários, ou seja, como não capitalistas; podem ter auxiliado determinados capitalistas em seus esforços individuais para apropriar-se da mais-valor, mas permanecem fora do processo de acumulação capitalista enquanto tal.
Não há “leis de movimento” do capital que possam ser aí encontradas. Nessa visão, mesmo que “a força coercitiva da esfera ‘política’ seja, em última análise, necessária para sustentar a propriedade privada e o poder de apropriação, a necessidade “econômica” fornece a compulsão imediata que força o trabalhador a transferir o trabalho excedente para o capitalista”. [10]
A outra opção, analiticamente mais confusa, mas intuitivamente convincente, é reconhecer que o capitalismo – pelo menos o capitalismo histórico que conhecemos, não o capitalismo purista de modelos abstratos – é impensável sem todos esses processos aparentemente estranhos. Não é preciso negar a centralidade da exploração no sistema capitalista para ver como o racismo ou o patriarcado ajudaram a criar as condições de sua possibilidade.
Teria o sistema capitalista do Norte Global se desenvolvido como se desenvolveu se os recursos baratos não tivessem sido metodicamente expropriados do Sul Global? Ao contrário do caso da exploração do trabalho, essas dinâmicas históricas – e as compensações nelas presentes – não podem ser reduzidas a uma fórmula simples que, nos próprios escritos de Marx, descreveria a decisão de uma empresa de automatizar sua força de trabalho. Mas tal confusão não torna essas dinâmicas menos reais ou menos constitutivas do capitalismo histórico.
As diferenças entre essas abordagens surgiram em dois debates marcantes e definidores de paradigmas sobre as origens do capitalismo e a natureza da transição do feudalismo para o capitalismo. Primeiro, o Debate Dobb-Sweezy dos anos 1950 e depois o Debate Brenner de 1974-82, os quais colocaram historiadores marxistas e não marxistas uns contra os outros em combinações variadas, debatendo a importância relativa do sistema mundial de comércio em rápida expansão versus as relações de classe e propriedade em constante mudança, inicialmente na Inglaterra, como os principais responsáveis pelo surgimento do capitalismo. [11] Essas discussões apresentavam muitos ângulos fascinantes. Uma em particular é crucial para decifrar os fundamentos teóricos das formulações mais sérias da tese tecno-feudal: a centralidade da “acumulação primitiva” nas origens, bem como nos desenvolvimentos subsequentes, do capitalismo.
Em alguns relatos marxistas, incluindo o de Immanuel Wallerstein, “acumulação primitiva” refere-se ao uso de meios políticos e extraeconômicos para capturar e transferir o excedente, sob o rótulo de “troca desigual”, das terras mais pobres para as mais ricas – ou, como disse Wallerstein, da periferia para o centro. [12] As origens do capitalismo não poderiam ser compreendidas sem levar em conta essa capacidade do núcleo de se apropriar do excedente de toda a economia global. Isso é o que explica por que o capitalismo surgiu e floresceu onde aconteceu. A exploração do trabalho assalariado (nunca totalmente proletarizado) certamente aumentou as fortunas dos capitalistas no centro, mas isso foi apenas parte da história. Assim, focar exclusivamente na exploração e ignorar o fato de que as dinâmicas centro-periferia de “troca desigual” e “acumulação primitiva” ainda estão presentes hoje é não entender a natureza do capitalismo.
Brenner acusou a análise de Wallerstein de determinismo tecnológico, minimizando as relações de classe e o papel do “trabalho excedente relativo”, ou seja, produtividade crescente, como uma característica sistêmica do capitalismo. Os relatos de Wallerstein, argumentou Brenner, eram um elemento básico do marxismo neo-smithiano, ignorando o que Marx realmente quis dizer com o conceito de “acumulação primitiva”. Devia ser entendido, nas palavras de Marx, como o processo de “divórcio do produtor dos meios de produção”, que abriu as portas para o trabalho assalariado e a exploração e veio substituir a expropriação de bens prontos pelo semiacabado.
O divórcio em questão aconteceu como resultado de reconfigurações nas relações de classe e mudanças nos direitos de propriedade; tinha pouco a ver com a troca desigual ou o comércio mundial. [13] Como Brenner afirmou em um ensaio posterior, o estágio conhecido como “acumulação primitiva” nada mais era do que o “trazer à existência as relações de propriedade social constitutivas do capital”. Isso certamente incluiu muita força e violência. Mas o papel da acumulação primitiva era muito limitado; sua dinâmica não devia ser confundida com a da acumulação capitalista propriamente não primitiva.
Qual era esse papel limitado? De acordo com Brenner, a “acumulação primitiva” serviu apenas para quebrar a “fusão” politicamente instituída de terra, trabalho e tecnologia que caracterizou o sistema feudal e impediu que esses três fatores essenciais de produção fossem colocados em uso mais produtivo – algo que poderia ser corrigido, uma vez inseridos na lógica capitalista do lucro. [14] Colocado sem rodeios, a análise de Brenner sobre o feudalismo propunha que ele dava a todos incentivos para relaxar na atividade produtiva. Na ausência de pressões competitivas de mercado, não havia necessidade de se preocupar com a racionalização do processo produtivo. A acumulação primitiva pôs fim a essa utopia mais preguiçosa, introduzindo a ”vontade de melhorar” movida pela competição, tão característica do capitalismo.
Uma olhada superficial em O Capital, Livro I, no entanto, revela mais ambiguidade sobre o assunto da acumulação primitiva do que Brenner deixou transparecer inicialmente. O capítulo 26 do Livro I, onde Marx criticou a concepção um tanto ingênua de Adam Smith sobre a ”acumulação anterior”, certamente corrobora as afirmações de Brenner (ele a usou, com muita eloquência, ao atacar Wallerstein). Mas então, no capítulo 31, Marx diz algo muito mais congruente com a própria linha de análise de Wallerstein, escrevendo que:
A descoberta de ouro e prata na América, a extirpação, escravização e sepultamento em minas da população aborígine, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um labirinto para a caça comercial de negros, sinalizou o alvorecer rosado da era da produção capitalista. Esses procedimentos idílicos são os momentos principais da acumulação primitiva. [15]
(…)
Até recentemente, a maior parte da literatura séria e de esquerda sobre neofeudalismo ou tecnofeudalismo o abordava – como Neckel e Supiot – como um sistema sócio-político em vez de econômico. A publicação de Technoféodalisme pelo economista francês Cédric Durand representa a tentativa mais sustentada até agora de considerar seriamente as lógicas econômicas envolvidas. [16] Durand ganhou seu nome com o livro Fictitious Capital (2014), que consiste numa análise perspicaz das finanças modernas.
Ao contrário das suposições de alguns pensadores da esquerda, argumentou Durand, as atividades financeiras não precisam ser “predatórias”: em um sistema que funcione bem, elas podem ajudar a promover a produção capitalista facilitando o financiamento antecipado, por exemplo. No entanto, a partir da década de 1970, essa característica favorável à acumulação das finanças modernas – Durand a chama simplesmente de “inovação” – foi superada por duas dinâmicas mais sinistras.
A primeira, enraizada na lógica da despossessão tal como fora teorizada por Harvey, apreendia as poderosas instituições financeiras reforçando as suas conexões com o Estado para redirecionar mais dinheiro público para si mesmas; aqui estamos de volta aos meios “extraeconômicos” de extrair ou, mais precisamente, redistribuir valor, apoiados pelos estreitos vínculos entre Wall Street e Washington.
A segunda dinâmica, enraizada na lógica do parasitismo teorizada por Lênin em sua análise do imperialismo, referia-se aos vários pagamentos – juros, dividendos, taxas de administração – que as corporações não financeiras têm que fazer às empresas financeiras, que estão completamente fora do processo produtivo de mercadorias.
Segundo Durand, as medidas de resgate implementadas após a crise financeira de 2008 turbinaram a dinâmica da expropriação e do parasitismo, alijando assim a dinâmica de inovação. Por isso, ele se perguntava nas páginas finais de O capital fictício: “Isso ainda é capitalismo?” Para completar: “a agonia da morte deste sistema foi anunciada mil vezes. Mas agora pode muito bem ter começado, quase como se fosse por acidente. Esta não seria a primeira transição “quase acidental” para um novo regime econômico.
Certa vez, Brenner descreveu a transição do feudalismo para o capitalismo na Inglaterra como “a consequência não intencional de atores feudais perseguindo objetivos feudais de maneiras feudais”. [17] Portanto, a ideia de que os financistas, ao escolher o caminho mais fácil – dedicando-se exclusivamente à redistribuição ascendente politicamente organizada e ao parasitismo sustentado pela renda – poderiam acelerar a transição para um regime pós-capitalista não era apenas altamente intrigante, mas também teoricamente plausível.
Em seu novo livro, Technoféodalisme, Durand mantém seu foco no iminente fim do capitalismo, mas atribui a tarefa de enterrá-lo às empresas de tecnologia. O Capital Fictício já havia examinado o chamado quebra-cabeça do lucro sem investimento: quando o capitalismo está funcionando bem, lucros maiores deveriam significar investimentos maiores; o objetivo do capitalista como um ser econômico é nunca ficar parado. No entanto, aproximadamente a partir de meados da década de 1990, não houve tal ligação: os lucros aumentaram nas economias capitalistas avançadas – com altos e baixos – mas o investimento estagnou ou diminuiu.
Muitas explicações foram apresentadas para explicar isso, incluindo a maximização do valor do acionista, a monopolização crescente ou os efeitos tóxicos da financeirização cada vez mais acelerada. Durand não apresentou novos fatores causais. Em vez disso, ele optou por argumentar que “o enigma dos lucros sem acumulação é, pelo menos em parte, artificial” — trata-se de uma ilusão estatística, criada por nossa incapacidade de compreender os efeitos da globalização.
Por um lado, algumas empresas encontraram maneiras de ganhar mais dinheiro sem investimento adicional. A globalização e a digitalização permitiram que as principais empresas do Norte Global – pense no Walmart – fortalecem as suas posições no ápice das cadeias globais de commodities para extrair preços mais baixos para bens finais ou intermediários dos atores mais abaixo na cadeia.
Por outro lado, quando os capitalistas do Norte Global faziam investimentos, estes se dirigiam cada vez mais para o Sul Global. Assim, olhar para a dinâmica de investimento de lucro pelas lentes de países individuais do Norte Global – os EUA, por exemplo – não nos diz muito. Era necessária uma visão global para ver como exatamente os lucros são mapeados para os investimentos.
No livro Technoféodalisme, Durand junta-se ao crescente coro que explica o quebra-cabeça do “lucro sem investimento” enfatizando o papel dos direitos de propriedade intelectual e dos intangíveis – incluindo acervos de dados – ao permitir que as gigantes empresas americanas obtenham enormes lucros de suas cadeias de suprimentos, concentrando-se naqueles itens que têm as margens mais altas. [18]
Até certo ponto, é uma elaboração do argumento de Durand de 2014, mas com muito mais atenção dada às operações reais das cadeias de suprimentos globais e ao papel que os direitos de propriedade intelectual desempenham na distribuição de poder dentro delas. Para algumas das empresas que ele examina, o enigma dos lucros sem investimento não é mais artificial, como era em Capital fictício: eles realmente não investem muito, em seus países ou no exterior, independentemente de seus níveis de lucro. Eles devolvem seus ganhos aos acionistas em dividendos ou compram de volta suas próprias ações; alguns, como a Apple, fazem as duas coisas.
Technoféodalisme argumenta que a ascensão dos intangíveis, geralmente concentrados nos pontos mais lucrativos da cadeia de valor global, levou ao surgimento de quatro novos tipos de renda. [19] Duas delas – rendas legais de propriedade intelectual e rendas de monopólio natural – parecem familiares: a primeira refere-se às rendas derivadas de patentes, direitos autorais e marcas registradas; a segunda, às rendas derivadas da capacidade de empresas como o Walmart de integrar toda a cadeia e fornecer as infraestruturas necessárias no seu próprio interior.
As outras duas – rendas de inovação dinâmica e rendas diferenciais de intangíveis – soam mais complexas. Mas eles também capturam fenômenos relativamente claros e distintos: o primeiro refere-se a conjuntos de dados valiosos que são de propriedade exclusiva dessas empresas, enquanto o último se refere à capacidade das empresas dentro de uma única cadeia de valor de escalar suas operações (empresas que próprios ativos predominantemente intangíveis podem fazer isso de forma mais rápida e barata).
A taxonomia de Durand é elegante. Armado com essas categorias, ele começa a ver rentistas em todos os lugares – não muito diferente dos teóricos do capitalismo cognitivo que ele repreendeu, moderadamente, em O capital fictício; entretanto, agora ele não vê capitalistas em lugar algum. “A ascensão do digital”, conclui, “alimenta uma gigantesca economia rentista”, porque “o controle da informação e do conhecimento, ou seja, a monopolização intelectual, tornou-se o meio mais poderoso de capturar valor”.
Com um aceno para as recentes especulações de McKenzie Wark sobre o assunto, [20] Durand retorna à pergunta que fez em 2014: ainda estamos diante do capitalismo? O imperativo investir visando melhorar a produtividade, cortar custos e aumentar os lucros era o que assegurava o dinamismo do sistema capitalista. Esse imperativo se devia ao fato de os capitalistas operarem sob as pressões da competição de mercado, com a fungibilidade das mercadorias, do trabalho e da tecnologia – o resultado, como argumentou Brenner, da ruptura da “fusão” desses três fatores sob o feudalismo.
A ascensão dos intangíveis – mas especialmente dos dados – reverte a ruptura capitalista dessa fusão, Durand argumenta: se os ativos digitais são indissociáveis dos usuários que os produzem e das plataformas em que são feitos, então podemos ler a economia digital como mais uma vez “fundir” os principais fatores de produção, de modo que sua mobilidade seja impedida.
Em termos mais simples, estamos presos dentro dos jardins murados das empresas de tecnologia; nossos dados – cuidadosamente extraídos, catalogados e monetizados – nos amarram a eles para sempre. Isso enfraquece os efeitos indutores de produtividade da competição de mercado, dando àqueles que controlam os intangíveis uma capacidade impressionante de apropriar-se de valor sem nunca ter que se envolver na produção. “Nessa configuração”, escreve Durand, “o investimento não é mais orientado para o desenvolvimento das forças produtivas, mas para as forças de predação”. [21]
Parasitismo e despossessão podem não fazer mais parte do vocabulário de Durand em Technoféodalisme – eles são substituídos por “predação”, já que Harvey e Lenin são descartados em favor de Thorstein Veblen. Ademais, as finanças dão lugar à indústria de tecnologia – mas a lógica não é tão diferente daquela encontrada em Capital Fictício. O que dá à economia digital seu peculiar sabor neofeudal ou tecno-feudal é que, enquanto os trabalhadores ainda estão sendo explorados de todas as formas capitalistas antigas, são os novos gigantes digitais, armados com meios sofisticados de predação, que mais se beneficiam.
Analogamente aos senhores feudais, eles conseguem se apropriar de enormes pedaços da massa global do mais-valor sem nunca se envolverem diretamente na exploração do trabalho ou no processo produtivo. Durand se baseia no trabalho de Zuboff para mostrar a dominação oculta exercida pelo “big other” do “big data”, argumentando que o segredo do sucesso do Google está em sua capacidade de extrair, reunir e lucrar com uma variedade de conjuntos de dados. Ela desfruta de um monopólio efetivo devido aos efeitos de rede e impressionantes economias de escala: ela se beneficiará mais de qualquer novo conjunto de dados do que uma startup poderia, tornando a concorrência muito mais difícil.
Há muita sabedoria, bem como bom senso básico, em tais conclusões. Mas o teor geral do argumento se volta muito para o usuário, já que Durand, como Zuboff, ignora o papel crucial desempenhado pela indexação na operação geral do Google. É mais difícil invocar conceitos como “monopolização intelectual” aqui, pois as páginas de terceiros às quais o Google se vincula para produzir sua mercadoria de resultado de pesquisa permanecem propriedade de seus editores. O Google não possui os resultados que indexa. Em teoria, qualquer outra empresa bem capitalizada poderia construir a tecnologia de rastreamento da web para indexá-los.
Pode ser extremamente caro, mas não se deve confundir essas barreiras com a forma “aluguel”, com o mecanismo rentista: o que é caro para uma startup de Berlim pode ser relativamente acessível para o SoftBank do Japão, com seu Vision Fund de US$ 100 bilhões. Os extensos acervos de dados do Google são uma questão diferente; eles merecem uma discussão sobre essa forma de obtenção de renda. Mas não se pode fingir que seu negócio gira em torno desses acervos de dados, como se o Google fosse um mero rentista – e não uma empresa capitalista padrão.
(…)
Atualmente, a única maneira de encaixar a exploração e a expropriação em um único modelo é argumentar que precisamos de uma concepção expandida do próprio capitalismo – como Nancy Fraser tem feito, com algum sucesso. Resta saber se o relato de Fraser, que ainda está sendo elaborado, terá êxito em dar conta de considerações geopolíticas e militares mais amplas. Mas o sentido geral do argumento que desenvolve parece correto.
Enquanto na década de 1970 pode ter sido interessante pensar o trabalho não-livre, a dominação racial e de gênero e o uso gratuito do transporte público – bem como os termos de troca desiguais, os quais resultaram da aquisição pelo centro de mercadorias baratas produzidas na periferia, supondo tudo isso como externo ao capitalismo baseado na exploração, atualmente tudo isso se tornou mais difícil.
Tais argumentos têm sido cada vez mais questionados por alguns trabalhos empíricos excepcionais feitos por historiadores que trabalham nos temas de gênero, clima, colonialismo, consumo e escravidão. A expropriação recebeu um tratamento mais adequado e isso complicou significativamente a pureza analítica com a qual as leis do movimento do capital poderiam ser formuladas.
Jason Moore – um aluno de Wallerstein e de Giovanni Arrighi – pode ter chegado a um novo consenso quando escreveu que “o capitalismo prospera quando ilhas de produção e troca de mercadorias podem se apropriar de oceanos formados por porções de natureza potencialmente baratas – fora do circuito do capital, mas essenciais para sua operação”. [22] Essa consideração, é claro, vale não apenas para “porções de natureza baratas” – eis que existem muitas outras atividades e processos que podem ser apropriados – tais “oceanos”, na verdade, ocupam mais espaço do que sugere Moore.
Uma grande concessão que o marxismo político provavelmente teria que fazer é abandonar sua concepção de capitalismo como um sistema marcado pela separação funcional entre o econômico e o político. É certo que “a necessidade econômica fornece por si só a compulsão imediata que obriga o trabalhador a transferir o trabalho excedente para o capitalista” e que isso está em contraste com a fusão do econômico com o político que ocorre sob o feudalismo. Certamente havia boas razões para apontar que o avanço da democracia parou nos portões das fábricas; esses direitos concedidos na arena política não eliminavam necessariamente o despotismo na esfera econômica.
É claro que muitos pontos nessa suposta separação eram falsos: como Ellen Meiksins Wood argumentou em seu artigo seminal sobre o assunto (The Separation of the Economic and Political in Capitalism), foi a teoria econômica burguesa que construiu uma “economia pura” e, assim, abstraiu os aspectos sociais e políticos que envolvem o sistema econômico. Foi o próprio capitalismo que criou a cunha que desloca as questões essencialmente políticas da arena política para colocá-la na esfera econômica. Um exemplo disso é o poder “de controlar a produção e a apropriação, ou seja, a alocação do trabalho social”. A verdadeira emancipação socialista exigiria também uma plena consciência de que a separação entre essas duas esferas é bem artificial. [23]
No entanto, o relato geral de Wood pintou um quadro de coerção sob o capitalismo que era simplista demais. “A integração entre produção e apropriação [sob o capitalismo]” – escreveu ela – “representa a ‘privatização’ definitiva da política, na medida em que as funções anteriormente associadas a um poder político coercitivo – centralizado ou “parcializado” – estão agora firmemente alojadas na esfera [econômica] privada. Figuram, então, como funções da classe apropriadora que se encontra isenta de obrigações para cumprir quaisquer propósitos sociais maiores”.
Nessa visão, o escopo do “puramente político” em relação ao puramente econômico era bastante limitado: consistia, principalmente, em salvaguardar os direitos de propriedade. Que o político também tenha sido fundamental para garantir suprimentos baratos de energia e comida, de mão-de- obra não-livre, de matéria primas minerais, de conhecimento e, talvez, eventualmente, de dados – ou seja, as próprias condições de possibilidade que tornam possível a concepção (expandida) do “econômico” – não foi expresso, por uma razão óbvia: nenhuma dessas coisas tinha relação direta com a exploração.
No entanto, se o “político” foi tão instrumental para a constituição do “econômico”, pode-se perguntar exatamente o que se ganha ao apresentar o capitalismo como um sistema que mantém o “político” e o “econômico” separados. Que os capitalistas e seus ideólogos falem dessa maneira é uma coisa; até que ponto esta é uma descrição precisa do que realmente ocorre sob o capitalismo – a tese do artigo de Woods – é outra. Aqui nos lembramos da piada de Bruno Latour de que a modernidade fala com uma língua bifurcada: ela diz que a ciência e a sociedade são polos opostos – mas essa confusão estratégica é precisamente o que permite hibridizá-las de forma tão produtiva. Pode ser que a história do político e do econômico sob o capitalismo seja muito semelhante.
Em retrospecto, é fácil ver por que Brenner nunca se impressionou com a cunhagem do termo, feita por Harvey, de “acumulação por despossessão”. Na medida em que o conceito se refere à redistribuição – realizada tanto pelos mercados quanto pela violência – e não pela produção, ele não poderia deixar de ser acumulação capitalista “primitiva” para a regular, pelo menos no entendimento de Brenner sobre o termo.
No entanto, dadas todas as evidências históricas que se acumularam nos últimos quarenta anos – especialmente durante a crise de 2008 e a pandemia de Covid – tornou-se mais difícil, mesmo para Brenner, classificar a redistribuição como algo estranho ao capitalismo realmente existente. As quantias envolvidas – muitos trilhões de dólares – são simplesmente assombrosas demais. Assim, ele escreveu em “Escalating Plunder”, seu texto de 2020 sobre os resgates da Covid: “O que tivemos por uma longa época é o agravamento do declínio econômico acompanhado pela intensificação da predação política”. [24] A palavra “político” — uma indicação de que, para Brenner, o processo “normal” de acumulação capitalista está falhando — aparece com frequência nesse ensaio.
Faltando a estrutura para unir a redistribuição e a exploração dentro de uma explicação mais ampla da acumulação capitalista, Brenner tem apenas um movimento restante: postular que a dependência dos capitalistas da redistribuição ascendente da riqueza conduzida pelo Estado está afastando o capitalismo de si mesmo, em direção a uma forma econômica que aparentemente compartilha uma característica central com o feudalismo.
Ora, isso manteria a pureza do modelo original – o título honorário de “capitalismo” poderia ser reservado para aquele regime impressionante em que a acumulação acontece por meio da inovação, em vez de predação ou desapropriação – mas apenas à custa de desencadear todos os tipos de efeitos secundários, ou seja, problemas analíticos e políticos. As fraquezas do argumento de Durand são, até certo ponto, produto de tensões não resolvidas no debate Brenner-Wallerstein.
A ironia final aqui é que a melhor evidência de que a “acumulação via inovação” está – como o próprio capitalismo – ainda muito viva, pode ser encontrada no mesmo setor de tecnologia que Durand descreve como feudal e rentista. Podemos ver isso quando abandonamos as macro-narrativas supra-determinadas dessas estruturas analíticas – seja o “neoliberalismo” de Harvey como um projeto político ou o “capitalismo cognitivo” de Vercellone. Pensar nas empresas de tecnologia da maneira que Marx provavelmente pensaria sobre elas – ou seja, como empresas produtoras de valor, ou seja, tipicamente capitalistas – certamente produz melhores resultados.
Nesse entretempo, os marxistas fariam bem em reconhecer que a exploração e a expropriação foram constitutivas da acumulação ao longo da história. Talvez o “luxo” de empregar apenas os meios econômicos de extração de valor no núcleo “propriamente” capitalista tenha sido sempre possível devido ao uso extensivo de meios extraeconômicos de extração de valor na periferia não capitalista.
Uma vez dado esse salto analítico, não precisamos mais nos preocupar com invocações do feudalismo. O capitalismo está se movendo na mesma direção de sempre, alavancando quaisquer recursos que possa mobilizar – e, nesse aspecto, quanto mais barato, melhor.
Nesse sentido, a antiga descrição de Braudel do capitalismo como “infinitamente adaptável” não é a pior perspectiva a ser adotada. Mas ele nem sempre se adapta continuamente; quando o faz, entretanto, não é certo que as tendências redistributivas para cima da pirâmide vençam as que concernem a produção. Pode ser que seja exatamente assim o que acontece, atualmente, com a economia digital. Isso, é claro, não é razão para acreditar que o tecno-capitalismo seja de alguma forma um regime mais agradável, aconchegante e progressivo do que o tecno-feudalismo. Contudo, invocando em vão o último, corremos o risco de passar o pano para a reputação do primeiro.
[1] Excertos tirados do artigo Critique of Techno-feudal reason, o qual foi publicado nos números 133/134 da New Left Review.
[2] Eric Posner and Glen Weyl, Radical Markets: Uprooting Capitalism and Democracy for a Just Society, Princeton 2018, p. 232.
[3] As ideias por trás de “Feudl” estão descritas no blog de Yarvin, Unqualified Reservations.
[4] Varoufakis: ver o seu curto artigo Techno-Feudalism Is Taking Over, Project Syndicate, 28 June 2021; ver, também, a minha entrevista com ele, Yanis Varoufakis on Crypto, the Left and Techno-Feudalism, The Crypto Syllabus, 26 January 2022; Mariana Mazzucato, Preventing Digital Feudalism, Project Syndicate, 2 October 2019; Jodi Dean, Communism or Neo-Feudalism?, New Political Science, vol. 42, no. 1, February 2020; Robert Kuttner: ver o artigo em coautoria com Katherine Stone, The Rise of Neo-Feudalism, American Prospect, 8 April 2020. Ver, em adição, a discussão de Wolfgang Streeck sobre a “desiqualdade oligárquica”: How Will Capitalism End? Essays on a Failing System, London and New York 2016, pp. 28–30, 35, 187. Michael Hudson tem escrito sobre o neofeudalismo por quase uma década; ver, por exemplo, The Road to Debt Deflation, Debt Peonage and Neofeudalism, Levy Economics Institute of Bard College Working Paper no. 708, February 2012. Robert Brenner usou o termo em seu From Capitalism to Feudalism? Predation, Decline and the Transformation of US Politics’, University of Massachusetts Amherst Political Economy Workshop, 27 April 2021.
[5] Ver Brett Christophers, Rentier Capitalism: Who Owns the Economy, and Who Pays for It? Londres, 2020.
[6] Julia Tomassetti, Does Uber Redefine the Firm? The Postindustrial Corporation and Advanced Information Technology, Indiana Legal Studies Research Paper nº 345, abril de 2016.
[7] A recapitulação mais acessível da leitura marxista sobre o feudalismo como uma lógica econômica se encontra em Chris Wickham, How Did the Feudal Economy Work? The Economic Logic of Medieval Societies, Past & Present, vol. 251, no. 1, May 2021.
[8] Devo essa frase notável ao título do livro de Murray Smith’s Invisible Leviathan: Marx’s Law of Value in the Twilight of Capitalism, Leiden 2020.
[9] O livro de Marc Bloch, Feudal Society, London [1939] 2014, é a referência perene nessa esfera intelectual.
[10] Ellen Meiksins Wood, The Separation of the Economic and the Political in Capitalism, NLR nº127, maio-junho de 1981, p. 80.
[11] A literatura nesse tópico é imensa, mas um texto inicial indispensável sobre o Debate Brenner se encontra no livro de Trevor Aston e Charles Philpin, eds, The Brenner Debate: Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe, Cambridge 1987.
[12] Immanuel Wallerstein, The Origins of the Modern World-System, New York 1974, pp. 16–20.
[13] Robert Brenner, The Origins of Capitalist Development: A Critique of Neo-Smithian Marxism, NLR nº 104, julho-agosto de 1977.
[14] Robert Brenner, What Is, and What Is Not, Imperialism? Historical Materialism, vol. 14, no. 4, Janeiro de 2006, pp. 79–105.
[15] Karl Marx, Capital, Livro I. Ref. Orig. Bem Fowkes. Londres, 1990, p. 915.
[16] Cédric Durand, Techno-féodalisme: Critique de l’économie numérique, Paris 2020.
[17] Ver Chris Harman and Robert Brenner, The Origins of Capitalism, International Socialism, nº 111, verão de 2006.
[18] Ver, por exempo, Özgür Orhangazi, The Role of Intangible Assets in Explaining the Investment–Profit Puzzle, Cambridge Journal of Economics, vol. 43, nº 5, março de 2019, pp. 1251–86; Herman Mark Schwartz, Global Secular Stagnation and the Rise of Intellectual Property Monopoly, Review of International Political Economy, 2021, pp. 1–26.
[19] Durand também discute essa tipologia num artigo em coautoria com William Milberg, Intellectual Monopoly in Global Value Chains, Review of International Political Economy, vol. 27, nº 2, setembro de 2020.
[20] McKenzie Wark, Capital Is Dead: Is This Something Worse? London e New York, 2021.
[21] Ver também o livro de Cecilia Rikap, Capitalism, Power and Innovation: Intellectual Monopoly Capitalism Uncovered, London 2021.
[22] Jason Moore, The Capitalocene, Part 2: Accumulation by Appropriation and the Centrality of Unpaid Work/Energy, The Journal of Peasant Studies, vol. 45, nº 2, maio de 2018, pp. 237–79.
[23] Wood, The Separation of the Economic and Political in Capitalism, pp. 66–7.
[24] Brenner, Escalating Plunder, p. 22.