Inconsciência econômica: opacidade construída. Artigo de Ladislau Dowbor

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

21 Junho 2022

 

Em artigo bastante visitado que foi escrito em setembro de 2008 (exatamente quando explodiu a crise de 2008), Cesar Benjamin escreveu que, especialmente no plano das questões econômicas, “a defesa de uma estupidez exige alguma sofisticação”. Essa tarefa (a da defesa dessa estupidez com alguma sofisticação) é geralmente exercida pela mídia hegemônica, e precisa ser enfrentada pelo “bom combate”.

 

Em artigo publicado neste mês e compartilhado com a Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”, o Prof. Dr. Ladislau Dowbor discute o papel da mídia na construção de uma nova consciência econômica.

 

O Prof. Dr. Ladislau Dowbor é economista, doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor da PUC-SP e da Umesp.

 

Eis o artigo.

 

A explicitação dos dramas econômicos, sociais e ambientais surge com força no que ainda chamamos de imprensa alternativa, que saiu da lógica interessada da mídia comercial, e apresenta o mundo real. Mais do que alternativa, uma imprensa livre. No Brasil, essa mídia é hoje um universo em expansão, com poucos meios financeiros, mas navegando no potencial que se abriu com o acesso online, colaborando em rede, de forma gratuita, e sobretudo honesta. São opiniões diversas, sem dúvida, mas honestas.

 

Inventaram que economia é coisa para economistas, área em que leigos não devem se intrometer. O que era economia política, ou seja, uma simples dimensão das ciências sociais, virou “ciência econômica”. Mas se tem uma coisa que as pessoas precisam entender, é precisamente como funciona a economia, pois é da economia que depende o nosso bolso, a condição da nossa família, o emprego, a aposentadoria, a qualidade da escola e da saúde: trata-se de uma dimensão essencial da nossa vida. E todos podem entender. É só pegar as consequências, sentidas na pele, e subir pela cadeia de causalidade.

 

Na mídia comercial, no Jornal Nacional e semelhantes, aparecem numerosos especialistas que com ar ponderado explicam que a situação é complexa, e fazem previsões surrealistas, mas essencialmente justificam os dramas do país apontando para causas externas sobre as quais não teríamos controle. Forças misteriosas são apresentadas como “os mercados”, sem nome nem endereço, forças anônimas e inevitáveis, quando sabemos perfeitamente onde fica a Faria Lima. Os problemas viriam de Kiev, não de Brasília. O importante é as causas serem externas, e se possível distantes.

 

Do lado da mídia comercial, jornais, rádio e televisão, é essencial entender que vivem da publicidade e da cumplicidade dos grandes grupos corporativos. O que chamamos de imprensa livre, é na realidade uma imprensa que serve aos interesses dos mercados. Não há aqui nenhuma simplificação ideológica: quando o dinheiro que sustenta a grande mídia comercial vem de um grupo restrito de interesses econômicos, é a visão desses interesses que termina sendo apresentada e martelada, com ocasional janela para outras visões, em nome de “ouvir o outro lado”. A fortuna dos Marinho, 30 bilhões de reais segundo a Forbes 2021, equivalente ao que era um ano de Bolsa Família para 50 milhões de pessoas, vem de algum lugar, e aqui é uma família apenas. Essa fortuna é aplicada nos mesmos “mercados” financeiros.

 

A inflação não é misteriosa, e ajuda a entender o que é uma cadeia de causalidade. O que se apresenta é que os preços “subiram”, como se não houvesse quem os eleva. A culpa seria da Rússia, como sempre, e da guerra, impactando a “lei da oferta e da procura”. Mas o processo é simples: três quartos dos grãos do planeta são comercializados por apenas quatro empresas, conhecidas como ‘ABCD’: ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus. São “market makers” (fazedores de mercado), têm suficiente controle para elevar os preços, sem que apareçam concorrentes, e contam nos diversos países com os associados nacionais que participam dos lucros. É capitalismo sem moderação da concorrência: força de oligopólio. Eles também usam Kiev como explicação e justificativa, mas na realidade simplesmente elevam os preços e os lucros, e o resto do mundo tem de pagar. A inflação tem causas, e elas estão no oligopólio que controla a oferta.

 

O resto do mundo não tem como não repassar os preços, porque “vieram” mais altos. Na padaria explicam que sim o pão está mais caro, mas é porque a farinha veio mais cara. E com razão: a padaria não gera a inflação, repassa os preços, e isso vale para milhões de empresas que são “market takers” (tomadores de mercado), têm de aceitar a elevação dos custos. Isso vale para inúmeras empresas que têm de repassar os custos para a frente, como por exemplo a de ônibus que tem de pagar mais pelo combustível. Nesse segundo nível, a inflação se generaliza e parece surgir sem pai nem mãe. Os preços “subiram”. Bem, por vezes aproveitam para elevá-los um pouco mais, mas a lógica é de repasse, não de causa primeira.

 

O ciclo inflacionário se fecha no nível do consumidor final. A pessoa que compra o pão mais caro não tem como repassar, vai ter de pagar mais ou comer menos. Quem toma o ônibus vai ter de pagar, ou economizar indo a pé. A dona de casa que paga mais caro pelo botijão de gás não tem opção. Em certos casos vai até entrar no rotativo do cartão de crédito, que no Brasil está em 365%, acrescentando os juros ao preço que já está mais elevado. Para informação, no Canadá o rotativo do cartão é 11% ao ano. O essencial da lógica da inflação é que ao fim e ao cabo é a base da população que passa a reduzir o seu consumo, repassando mais dinheiro para os market takers (a padaria), que por sua vez repassam dinheiro para o clube dos controladores mundiais de commodities e seus associados nacionais (market makers). Temos os que sobem os preços, os que repassam – e os que pagam.

 

A inflação, como bem explicou Celso Furtado, é um processo de transferência de renda para a mão dos mais ricos, e no caso presente para os commodity traders, o ABCD e os correspondentes nas áreas dos alimentos, da energia, dos minerais metálicos e dos minerais não metálicos. Alguém acha que os preços das vacinas ou dos testes resultam de concorrência de mercado, leal competição entre muitos produtores? O Big Pharma não foge à lógica, e muito menos os planos de saúde. O custo da saúde suplementar aumenta 15,5%, sem relação com nível de inflação: a pessoa que deles depende vai fazer o quê? Para dar um exemplo, o plano de saúde Notre Dame tem entre seus acionistas a BlackRock, grupo mundial que administra (asset management, gestão de ativos) 10 trilhões de dólares, equivalente à metade do PIB dos Estados Unidos. O dinheiro imaterial, apenas sinal magnético nos computadores, permite microdrenos em escala mundial. Apresentar a inflação como simples mecanismo impessoal é uma farsa. Aumentar a taxa Selic, repassando mais dinheiro para os grandes aplicadores financeiros, quando não se trata de inflação de demanda, é farsa maior ainda. São os nossos impostos, dinheiro do nosso bolso.

 

O caso do petróleo é particularmente interessante. A produção e o consumo mundiais são estáveis nas últimas décadas, em torno de 90 milhões de barris por dia. Os custos de extração pouco variaram. Mas os preços têm oscilado de forma espetacular, entre 14 e 148 dólares, segundo os interesses dos traders e os mecanismos dos mercados de futuros. Oferta e procura? Qualquer bomba no Oriente Médio ou variação de previsão do PIB na China servem de pretexto. O mercado especulativo de commodities, derivatives, representa mais de cinco vezes o PIB mundial. Como se trata de gigantes que controlam as transações, não temos concorrência de mercado, e sim poder de fixação de preços. E como se trata de um espaço econômico mundial, onde não há governo, tampouco temos leis, ou regulação. No nível global, temos poder especulativo em vez de mecanismos de mercado, e vale tudo e guerras em vez de planejamento e regulação. Nem mecanismos de mercado nem políticas públicas. No capitalismo extrativo gerado (“extractive capitalism”, Mariana Mazzucato), quem paga são as populações.

 

Visto do lado do Brasil, o mecanismo se torna particularmente transparente. O Brasil controla o ciclo completo do petróleo, tecnologias, plataformas, extração, refino, distribuição, petroquímica: pode servir, como servia, antes das privatizações, aos interesses públicos, assegurando gás e combustível a preços decentes. E os lucros serviam para reinvestimento na empresa e políticas públicas. Com a privatização, qualquer grupo financeiro internacional passa a comprar ações da empresa, e passa a exercer pressões no sentido de elevar os preços, para as ações renderem mais. Privatização, na Vale ou na Petrobras, significa desnacionalização. Cobrar o combustível e o gás a preços internacionais, em nome dos “mercados”, é mais uma farsa: como o país domina o ciclo completo, pode vender a preço de custo, mais um lucro razoável para reinvestimento e expansão, reduzindo a pressão inflacionária.

 

Mas para os grandes “investidores” internacionais e seus correspondentes nacionais, cada real a mais pago pelos usuários finais representa mais lucros. E esses lucros irão rodar no sistema financeiro, drenando os recursos. Eu trabalhei em países sem petróleo, esses têm de pagar o preço que os traders do petróleo cobram. No Brasil, não faz nenhum sentido, ou melhor, faz todo sentido. Repetindo: privatização, na era da globalização, é desnacionalização. As corporações internacionais agradecem, a população paga. Para as fortunas nacionais e globais, de algum lugar o dinheiro tem de vir. Para entender economia, é seguir o dinheiro.

 

Tomamos aqui o exemplo da inflação, porque afeta a população em geral, e porque o mecanismo é claro para qualquer pessoa que acompanha a literatura econômica internacional. No caso brasileiro, temos de acrescentar o desabastecimento de um sistema que prefere exportar alimentos do que abastecer o mercado interno, reforçando a pressão inflacionária. A Índia resolveu de maneira simples o dilema: proibiu a exportação de trigo, priorizando e abastecendo o mercado interno. Aqui a mídia nos díz que temos de respeitar “os mercados”. Não precisamos ficar nessas narrativas da mídia comercial.

 

A explicitação dos dramas econômicos, sociais e ambientais surge com força no que ainda chamamos de imprensa alternativa, que saiu da lógica interessada da mídia comercial, e apresenta o mundo real. Mais do que alternativa, uma imprensa livre. No Brasil, essa mídia é hoje um universo em expansão, com poucos meios financeiros, mas navegando no potencial que se abriu com o acesso online, colaborando em rede, de forma gratuita, e sobretudo honesta. São opiniões diversas, sem dúvida, mas honestas.

 

O trabalho do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, do Outras Palavras, do Le Monde Diplomatique-Brasil, do GGN, do Brasil 247; as pesquisas da Oxfam, do Instituto Sócio-Ambiental - ISA; os artigos publicados por tantos cientistas nas universidades – criaram um universo de informação diversificado e confiável. Mencionamos aqui só alguns, mas é um uma nova dinâmica que permite a democratização do conhecimento e a compreensão das dinâmicas econômicas, políticas e sociais.

 

No nível internacional, uma mídia gratuita online como o Guardian permite o acesso a uma informação confiável, que repassa por sua vez os trabalhos de tantos núcleos de pesquisa como o Roosevelt Institute, o New Economics Foundation, a Friedrich Ebert Stiftung, os próprios relatórios da ONU, resumidos e tornados acessíveis. É um trabalho em rede, em grande parte gratuito, que articula jornalistas, pesquisadores, universidades, organizações da sociedade civil, com pouco dinheiro, mas com muita verdade. Na opacidade construída da mídia comercial, está aparecendo o mundo real.

 

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