O debate e os embates sobre a moeda e o dinheiro são fundamentais para buscar uma alternativa ao neoliberalismo, diz o cientista político
Na tentativa de propor uma saída, uma terceira via ao debate polarizado sobre o papel da moeda e do dinheiro em períodos de crise econômica, social e política, Giuseppe Cocco e Bruno Cava publicaram recentemente o livro A vida da moeda. Crédito, imagens, confiança (Rio de Janeiro: MAUAD X, 2020). Na obra, ambos se opõem à “polarização” entre duas posições “dogmáticas: aquela neoliberal do equilíbrio fiscal e aquela neokeynesiana do déficit orçamentário”. Em outras palavras, eles buscam alternativas aos discursos de que “o dinheiro pode tudo, mas é escasso e não se pode gastar mais do que se tem (ou arrecada)” ou “que há dinheiro para tudo e isso resolve automaticamente os problemas da saúde, educação, a desigualdade etc.”
Segundo Cocco, essas duas visões partem de pressupostos clichês. De um lado, pontua, há uma visão moralista que compreende o dinheiro “como produto do mal” e, de outro, uma visão que “atribui ao dinheiro a capacidade de resolver todo e qualquer problema”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Giuseppe Cocco assegura que este debate é fundamental, especialmente no atual contexto de crise pandêmica, que colocou “as políticas monetárias e orçamentárias dos Estados em um outro patamar”.
Para ele, a conjuntura atual exige que se corte “pela diagonal essa polarização”, a fim de encontrar alternativas para superar o neoliberalismo e seus efeitos sociais. Uma possibilidade, sugere, é a adoção de uma política de proteção social de novo tipo. “Não se trata de aumentar os gastos, nem de manter a austeridade. Trata-se de implementar uma política social e econômica que crie moeda verdadeira: uma moeda que, no lugar de ‘louvar Deus’, ‘louve os pobres’, bem no espírito da encíclica Fratelli tutti: a vida da moeda, para essa ser verdadeira, precisa afirmar sua relação como amor, ser nesse sentido relação de relação. Para isso, o mais importante é a alavanca social do projeto e não a mudança de ombro das armas monetárias e orçamentárias”, propõe. Essa “alavanca”, explica, “é a Renda Básica, ou seja, uma política econômica ancorada na mobilização produtiva e democrática dos pobres. (...) A Renda Básica e a nova proteção social – adequadas às novas formas de mobilização produtiva e democrática – nos levarão para além da polarização estéril entre as duas posições ideológicas, entre algumas faculdades de São Paulo, ou entre a Faria Lima e a Vila Madalena”.
Giuseppe Cocco (Foto: Acervo IHU)
Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e editor das revistas Lugar Comum e Multitudes. Publicou, entre outros livros, New Neoliberalism and the Other. Biopower, antropophagy and living Money (Lanham: Lexington Books, 2018), em parceria com Bruno Cava, e Entre Cinismo e Fascismo (Autografia: Rio de Janeiro, 2019).
IHU On-Line - Diante de uma conjuntura de recorrentes crises econômicas e financeiras, qual a importância de se refletir sobre a moeda, tema do seu novo livro, A vida da moeda. Crédito, imagens, confiança?
Giuseppe Cocco – Parece-me a única maneira de tentar entender o que fazer na crise do capitalismo global. Ninguém nega mais essa crise que vem se arrastando desde 2008. A pandemia a amplificou e a acelerou ao mesmo tempo, colocando as políticas monetárias e orçamentárias dos Estados em um outro patamar.
A crise financeira de 2008 marcou o fim das flutuações conjunturais do capitalismo cognitivo na globalização. Desde 2011, um ciclo revolucionário se abriu na Tunísia e se espalhou mundo afora até que – como nas décadas de 20 e 30 do século passado – emergiu como resposta uma onda reacionária, algo como uma nova forma de fascismo. Por um lado, o novo tipo de fascismo (em geral chamado de populismo) veicula uma mensagem que, para os fins de nossa exposição, poderíamos resumir assim: “se não estão gostando da governança neoliberal da globalização, vamos implementar outra, ainda pior!”. No Brasil funciona assim: “Querem a proteção dos Direitos Humanos diante da violência e corrupção das polícias? Vamos mesmo excluir as polícias da própria possibilidade de serem acusadas de alguma ilicitude e institucionalizar as milícias”.
Por outro lado, esse fascismo de tipo novo se afirma eleitoral e socialmente em função de um impasse real: a governança neoliberal está esgotada, mas não há nada para colocar em seu lugar.
A polarização entre a defesa e a crítica do neoliberalismo tem efeitos paradoxais que a trajetória dos governos federais hegemonizados pelo PT e o fenômeno mais geral de Lulismo explicitam muito bem: longe de construir uma alternativa ao neoliberalismo, apenas promoveram uma hibridização entre a dogmática neoliberal (suas reformas, seus ajustes) e um desenvolvimentismo sem projeto a não ser o das ‘operações estruturadas’ nos departamentos de propinas das grandes empreiteiras. O resultado foi um mostrengo bem representado pela ruína do Rio de Janeiro, que voltou a ser a capital, justamente, desse legado feito de ruínas, inclusive tornando-se a base eleitoral do fascismo bolsonarista.
Quanto mais a crítica se concentra sobre o neoliberalismo (ou o ‘extrativismo’), menos nós saímos dele e, pior, mais se afirma uma terceira via perversa que é essa do fascismo miliciano que hoje está no poder.
O debate e os embates sobre a moeda e o dinheiro me parecem fundamentais para os esforços de encontrar uma saída da polarização entre duas dogmáticas: aquela neoliberal do equilíbrio fiscal e aquela neokeynesiana do déficit orçamentário.
IHU On-Line - No livro, o senhor menciona que para se ter uma melhor compreensão do conceito de dinheiro, é necessário considerar os vários campos do conhecimento, como sociologia, antropologia, teoria da literatura, cinema e comunicação, e não somente história econômica, economia política ou filosofia da economia. Como essas últimas áreas limitam nosso entendimento do conceito e como as primeiras ampliam essa noção? Que conceito o senhor constitui a partir de todos esses pressupostos?
Giuseppe Cocco - A convergência transdisciplinar é uma das grandes tendências da ciência nas últimas duas ou três décadas. Paradoxalmente, se fala muito de Inteligência Artificial justamente no momento em que as neurociências multiplicam as pesquisas sobre a Inteligência ‘natural' e isso com base na descoberta da plasticidade do cérebro humano. O dinheiro é, desde sempre, o produto dessa convergência: ele é informação produzida pelas interações sociais ao mesmo tempo que as sustenta e reproduz. Ele é fria matemática da contabilidade ao mesmo tempo que o mistério de seu valor. Por muito tempo, foi o ‘lastro’ que resolveu a angústia diante do mistério e isso pelo mecanismo de se atribuir ao suporte material do dinheiro o valor que esse veicularia.
A história da moeda poderia ser escrita como sequência de transformações de seus suportes: desde as frágeis tábuas de barro onde encontramos a escrita cuneiforme dos sumérios até os bits criptografados das moedas digitais, passando obviamente pelo ouro e a prata. Mas o suporte sempre foi justamente ‘suporte’ de alguma coisa: imagens e escritas que transmitem a informação geral relativa a uma determinada moeda e as cifras que significam a informação específica de uma ‘fracção’ dessa mesma moeda. O que o suporte veicula, pois, são duas informações diferentes e complementares: sua aura transcendental da moeda, que diz respeito à sua autoridade comercial e/ou soberana, e sua existência mortal de unidade de conta.
Mas então, o que seria essa ‘coisa’ que o suporte veicula? Na realidade, o suporte não veicula ‘coisa’ nenhuma, nenhum ‘objeto’, mas uma relação social. A circulação da moeda é circulação de uma relação: relação de relação. Não há, pois, como apreender a moeda sem mobilizar uma abordagem transdisciplinar. Uma maneira de entender esse desafio é lembrar a evolução da moeda ao longo de sua história: quanto mais a moeda se moderniza, mais ela se ‘liberta’ de todo tipo de lastro, até o ponto que ela se desmaterializa. Mas, quanto mais a moeda perde seu lastro, mais procuram-se outras maneiras de reafirmá-lo. Lembremos, foi apenas em 1956, já dentro desse processo de perda do lastro e desmaterialização que às tradicionais imagens da soberania estatal juntou-se o lema “In God We Trust” no dólar dos Estados Unidos. O Real, introduzido no Brasil em 1994, repete essa operação, escrevendo: “Deus seja louvado”. Quanto mais a moeda aparece pelo que ela é, mera criação ex nihilo sem lastro nenhum, mais forte é a tentação de atrelá-la a alguma transcendência: a promessa soberana de pagar ao portador o valor estipulado na face se desdobra assim de uma profissão de fé. Crédito e crença se misturam.
Nesse sentido, a austeridade neoliberal, com seu equilíbrio fiscal e a dogmática que ela carrega (por exemplo o ‘teto de gastos’ ou a necessidade de que a dívida pública não passe da barra do 100% do PIB), não deixa de ser mais uma tentativa de atrelar a moeda a alguma transcendência e de assim conjurar sua dimensão imaterial: relação de relação.
IHU On-Line - Quais são os principais clichês e confusões entre aqueles que fazem críticas ao mundo financeiro e ao dinheiro?
Giuseppe Cocco - A meu ver há dois clichês que são particularmente arraigados e funcionam como obstáculos incríveis para a crítica material da moeda. O primeiro é de origem moral e religiosa: faz-se do dinheiro algo como produto do mal; na Idade Média dizia-se que era o “esterco do diabo”. Na esteira desse moralismo, mistura-se a crítica da exploração (e do neoliberalismo) com a crítica do dinheiro em si, como se fosse algo que deveria ser ‘eliminado’. Oras, o dinheiro foi inventado com a própria invenção da sociedade, muito antes até de suas formas escritas (como as tábuas dos sumérios). Qualquer livro de antropologia nos fala dos fenômenos primordiais de invenção do socius, como a proibição do incesto. Oras, o que essa proibição seria a não ser uma intensa promoção – pela exogamia – das redes de trocas que hoje chamamos de comércio internacional?! Não é por acaso que as pesquisas de antropologia – desde Marcel Mauss até David Graeber – são entre as mais interessantes para apreender os fenômenos monetários, das trocas e das dívidas.
O outro clichê que mais circula é aquele que atribui ao dinheiro a capacidade de resolver todo e qualquer problema. A realidade desse clichê é mais complexa porque ele contém duas posturas opostas: aquela que diz que ‘não há dinheiro para tudo e, pois, é preciso ter rigor nos gastos’ e a outra, simétrica, que diz que ‘há dinheiro, basta decidir gastá-lo’ e isso resolve qualquer problema. Trata-se, ironicamente, das duas faces de uma mesma moeda que atribuem ao dinheiro todos os poderes. Uma face é aquela que diz que o dinheiro pode tudo, mas é escasso e não se pode gastar mais do que se tem (ou arrecada). A outra face é aquela que diz que há dinheiro para tudo e isso resolve automaticamente os problemas da saúde, educação, a desigualdade etc. Essa polarização é um dos dispositivos mais difíceis de se desarmar para afirmar as dimensões comuns da moeda.
IHU On-Line - Por outro lado, quais são suas críticas à cisão que alguns teóricos fazem entre dinheiro e produção, ou economia real e economia fictícia, referindo-se ao mundo produtivo e ao financeiro? Que problemas esse tipo de leitura gera?
Giuseppe Cocco - Essa leitura, largamente majoritária no campo genérico da esquerda e também do desenvolvimentismo, deriva diretamente das abordagens moralistas do dinheiro das quais falamos acima. O dinheiro e as finanças são o ‘mal’ ao passo que o mundo da produção seria o ‘bem’: para uns porque gera emprego, para outros porque só ele geraria riqueza ‘verdadeira’. Se trata apenas de preconceitos, mas muito fortes. Também se trata de uma série de ambiguidades das análises marxianas (e não apenas marxistas) sobre o dinheiro, a acumulação e o fetichismo. Como se pode dizer que nas sociedades humanas haja algo real que se oporia ao ‘fictício’?
A antropologia nos explicou que nas sociedades ditas primitivas há a produção de artefatos tão sofisticados que são incompreensíveis para o racionalismo colonial. Por isso, na perspectiva ocidental, eles são vistos como ‘inúteis’, fictícios: totens, cocares ou tatuagens, sem contar o uso ritual e não apenas médico de substâncias alucinógenas. O que há de interessante no ‘pensamento selvagem’ é justamente que suas ficções e os suportes que as veiculam estão por toda parte. As epistemologias do Sul não são interessantes porque fornecem outras substâncias para as mesmas práticas (por exemplo, médicas), mas por produzir outras relações entre a forma e o conteúdo: distinção entre fictício e real não tem cabimento. O que interessa é a produção de significados.
Mas, para voltar ao debate sobre a separação da esfera financeira que seria a principal característica do capitalismo neoliberal, precisamos enfatizar que não se trata apenas de dizer que a luta entre o real e o fictício não nos leva para lugar nenhum (pois tudo o que é real para nós é porque passa pela nossa percepção e, pois, sempre tem um grau de ficção), mas sobretudo nos impede de apreender que as finanças hoje estão no cerne (e não num desvio) do atual regime de acumulação.
Na medida em que produção e circulação se misturam, como ficou explícito nas formas empresariais mais recentes como as plataformas, o que se explicita é a transformação do trabalho, ou seja, o fato que ele acontece totalmente por fora da relação salarial. Não precisa procurar pelo Uber californiano que hoje mobiliza centenas de milhares de motoristas e carros nas metrópoles brasileiras, basta pensar nos caminhoneiros autônomos produzidos pela expansão do crédito no governo Dilma, esses que realizaram a maior greve do setor, em 2018, e ficaram cobrando uma ‘intervenção militar’, essa que aconteceu com a vitória do capitão nas eleições de 2018.
O que interessa é que a relação de débito e crédito é hoje a nova relação social de produção, aquela que substitui a relação salarial. Nesse contexto, não adianta pensar em suprimir – ou reduzir – a esfera financeira e moralizar tudo que seria fictício. É preciso fazer o que antes foi feito com o trabalho assalariado. O conjunto de direitos que chamamos de ‘trabalhistas’ foram produzidos por lutas e revoluções e acabaram se afirmando como um vasto sistema de proteção social. Hoje, a proteção social não pode mais ser aquela do trabalho assalariado e de seus ‘direitos do trabalho’. Ao contrário, ela precisa ser aquela de um trabalho mobilizado sem ser assalariado, ou seja, de uma cidadania que deve passar a existir por si, e determinar, pelo ‘trabalho dos direitos’, as condições dessa mobilização produtiva dentro da circulação. Na pandemia isso ficou ainda mais claro e dramático: da mesma maneira que ter direito a uma moradia decente é fundamental para poder se proteger e proteger os outros, ter direito à conexão de internet e ter conectividade (computador etc.) é fundamental para continuar circulando apesar das diferentes formas de confinamento.
O trabalho precário e fragmentado só pode ser produtivo na medida em que há uma sociedade que protege esses ‘precários’. A luta para aprimorar essa proteção é o passo decisivo para ir além do neoliberalismo e também de suas críticas ideológicas.
IHU On-Line - O senhor também afirma que “o que na época de Nixon era o discurso do capital, hoje, meio século depois, se apresenta no debate público com ares de crítica radical. O pior não é a ironia dessa constatação, mas o fato que, com isso, a crítica não chega a resvalar nos problemas econômicos e monetários de 2020”. Quais são os problemas econômicos e monetários do nosso século?
Giuseppe Cocco - Acredito que há uma fraqueza geral das análises da globalização em todas as diferentes vertentes da esquerda teórica. Até a abordagem selvagem, aquela do pós-operaísmo italiano de Antonio Negri, foi domesticada e precisa, antes de falar, mostrar lealdade à doxa antineoliberalismo.
Mais ou menos todo o mundo atribuiu à globalização a queda do muro de Berlim e a consequente unificação do mundo sob o dogma universal do ‘mercado’ e do neoliberalismo. Dessa maneira não se consegue apreender seus determinantes, bem anteriores: as lutas sociais que atravessaram o mundo industrial desde a década de 1960 e chegaram a seu auge em 1968. Aquilo que para os neokeynesianos e a esquerda socialista era o paraíso dos grandes industriais, era o inferno para uma classe operária que – como no título do filme clássico de Elio Petri – queria ir “ao paraíso”, para além dos muros da fábrica e da sociedade disciplinar e sempre lutou para desligar sua renda do trabalho no chão de fábrica. A resposta a essa ofensiva revolucionária foi dada pelo governo Nixon com três medidas tomadas ao longo dos dois primeiros anos da década de 1970. Em 1971, ele ‘declarou a guerra às drogas’, ou seja, a militarização ao mesmo tempo dos guetos americanos e da América Latina. Naquele mesmo ano, Nixon declarou a inconversibilidade do Dólar. Enfim, em 1972, ele visitou a China e formalizou as relações até então sigilosas que os Estados Unidos e a China maoísta já tinham desde o conflito entre China e URSS (em 1969 na fronteira desenhada pelo rio Ussuri).
O quebra-cabeça da saída do neoliberalismo tem um nome, se chama China. Há uma dimensão ‘chinesa’ da moeda que trava a inflexão nos outros países e isso diz respeito às massas colossais de operários mobilizados por essa colossal fábrica do mundo que não deixa subsistir liberdade sindical. Toda recomposição monetária da luta contra a desigualdade e por uma nova proteção social esbarra nessa pressão salarial (para baixo) do operariado chinês sob a mão de ferro do Partido Comunista Chinês. Contudo, o governo chinês sabe muito bem que isso não pode continuar: não há mais como continuar destruindo as externalidades (o meio ambiente, o ar das cidades) e não há mais como não reconhecer a pressão que vem de baixo. O avanço chinês no terreno da inovação, desde aquela farmacêutica (como no caso das vacinas) até a digital (por exemplo, com o 5G ou com o sistema de vigilância chamado de ‘crédito social’), vem na esteira dessa inflexão. Será interessante ver se essa reconversão rumo a uma economia da inovação poderá se tornar compatível com o cerceamento da liberdade (assim como a repressão em Hong Kong indica).
IHU On-Line - O que constituiria uma crítica efetiva ao neoliberalismo, na sua visão? Como é possível avançar na crítica ao neoliberalismo de forma que a crítica atual consiga sair de si mesma?
Giuseppe Cocco - O terreno da moeda é fundamental. Quando olhamos para o debate veiculado pela imprensa de São Paulo entre duas faculdades (Insper e a USP), a coisa fica clara. De um lado, mesmo depois da incrível criação monetária planetária que todos os países implementaram para enfrentar a crise de covid-19, temos a reprodução da dogmática monetária fiscalista que repete: ‘não se pode gastar mais do que se arrecada’. Por outro, o velho discurso neokeynesiano que virou o mantra dos economistas de ‘esquerda’: é preciso e se pode ‘gastar’ mais e não há limites para isso. Esse campo recebeu recentemente dois trânsfugas de peso: os economistas André Lara Resende e Monica de Bolle. Lara Resende foi um primeiro membro do establishment do Plano Real a romper o consenso e a apresentar a Nova Teoria Monetária como a base de uma nova técnica monetária que não mais se ancoraria no equilíbrio fiscal.
Mas a questão continua sendo outra: como cortar pela diagonal essa polarização?
Não se trata de aumentar os gastos, nem de manter a austeridade. Trata-se de implementar uma política social e econômica que crie moeda verdadeira: uma moeda que, no lugar de ‘louvar Deus’, ‘louve os pobres’, bem no espírito da encíclica Fratelli tutti: a vida da moeda, para essa ser verdadeira, precisa afirmar sua relação como amor, ser nesse sentido relação de relação. Para isso, o mais importante é a alavanca social do projeto e não a mudança de ombro das armas monetárias e orçamentárias. Essa alavanca é a Renda Básica, ou seja, uma política econômica ancorada na mobilização produtiva e democrática dos pobres. Lula, com o Bolsa Família, e Bolsonaro, com o auxílio emergencial, foram nessa direção, mas a usaram de maneira antidemocrática: para chantagear os pobres e cobrar apoio eleitoral. Ao invés de instituir uma renda para os pobres, a atrelam a seu futuro político e visam assim manter a subalternidade dos pobres. A migração do apoio popular lulista para o bolsonarismo nesses meses de pandemia confirma a dimensão oportunista desse mecanismo.
Os pobres, por sua vez, fazem como os defensores do equilíbrio fiscal. Esses últimos pregam reformas que visam emplacar independentemente do governo: seja o da Dilma, do Temer e agora do Bolsonaro. Os pobres fazem a mesma coisa e dão seu apoio – apenas em termos de pesquisa de opinião – a quem lhe oferece uma renda de outro tipo, seja Lula ou Bolsonaro.
A política e a moeda da Renda Básica já existem, mas de maneira fragmentada. Elas precisam se afirmar como uma política do comum. A Renda Básica não é apenas uma política de luta contra as desigualdades (à la Piketty), nem alguma coisa que se tornaria possível uma vez que a dogmática neoliberal seria substituída pela Nova Teoria Monetária (ou o velho neokeynesianismo). Ainda menos seria o fruto de uma reforma tributária que realocaria os escassos recursos com base nessa nova prioridade.
É o contrário: a Renda Básica e a nova proteção social – adequadas às novas formas de mobilização produtiva e democrática – nos levarão para além da polarização estéril entre as duas posições ideológicas, entre algumas faculdades de São Paulo, ou entre a Faria Lima e a Vila Madalena.