03 Setembro 2022
Ambos são um caso incomum no mundo político de seus respectivos países. Durante muito tempo, foram relegados à margem do espectro político: Bernie Sanders, o senador estadunidense octogenário que inspirou um exército de eleitores muito mais jovens do que ele, e o sindicalista Mick Lynch, um ex-trabalhador da construção civil e filho de imigrantes irlandeses que ganhou notoriedade no Reino Unido como líder do sindicato dos Trabalhadores Ferroviários, Marítimos e dos Transportes (RMT). “Acredito que Lynch conseguiu atingir o coração das pessoas”, disse Sanders.
A reportagem-entrevista é de Owen Jones, publicada por El Diario, 01-09-2022. A tradução é do Cepat.
O líder de facto da esquerda estadunidense colocou seu considerável peso político a serviço de uma nova campanha chamada Enough Is Enough (Já basta), e que tenta lutar contra a crescente crise do custo de vida no Reino Unido. A campanha foi promovida em parte por Lynch e o seu sindicato RMT. “‘Já Basta’, curiosamente, é uma expressão que utilizamos muito”, disse Sanders.
“As pessoas estão cansadas de muitas vezes trabalhar mais horas por salários baixos, cansadas de seus filhos terem um nível de vida inferior ao delas e cansadas de os bilionários ficarem cada vez mais ricos, enquanto ficam para trás. Por que, com todos os avanços tecnológicos à nossa disposição, a população não vê uma melhora no nível de vida? Por que não aumenta a igualdade, em vez de diminuir? Por que o nível de vida está se deteriorando, em vez de melhorar? É o que Lynch questiona, é isso que questiona Enough Is Enough, e é uma mensagem que penetrou porque as pessoas estão cansadas de serem ignoradas, enquanto os ricos se enriquecem mais”.
Sanders sabe muito bem como abrir caminho na política, embora tenha começado nos anos 1970 anos. Nascido em uma família judia da classe trabalhadora de Nova York, tornou-se prefeito de Burlington (Vermont) aos 40 anos e, mais tarde, membro da Câmara dos Representantes e senador.
Independente há muito tempo, embora muitas vezes tenha se aliado ao Partido Democrata, Sanders defendeu causas que por muito tempo foram ignoradas pelos democratas da corrente majoritária, como a saúde universal, a abolição das taxas estudantis, os direitos dos trabalhadores e o movimento antibélico.
Contudo, sua espetacular ascensão, quando passou de um candidato situado em um extremo marginal a um finalista na corrida para a indicação democrata nas eleições presidenciais de 2016, foi impulsionada por dois fatores principais.
O primeiro foi a crise financeira, que manifestou as desigualdades e a insegurança que recaíam de forma desproporcional sobre os ombros dos estadunidenses mais jovens. O outro foram as expectativas criadas pela vitória de Barack Obama, em 2008, que, para milhões de estadunidenses com um nível de vida estagnado, foram frustradas. Embora sua candidatura não teve sucesso em 2016 e 2020, mobilizou um movimento que revitalizou a esquerda estadunidense e a transformou em uma grande força política importante no Partido Democrata e fora dele.
É o que faz voltar a concentrar sua atenção em uma paixão constante e no assunto sobre o qual deseja falar comigo: as perspectivas do movimento operário estadunidense. Conversamos por telefone, mas ele faz todas as suas declarações apaixonadas com o mesmo entusiasmo de um comício. O fio condutor de todas as suas respostas é a política de classes.
Isso é menos novo na política progressista do lado europeu do Atlântico. Em uma reunião recente, Lynch proclamou que “a classe trabalhadora voltou”, mas foi considerada alheia por muito tempo nos Estados Unidos, que promoviam o mito da ausência de classes. Um mito politicamente conveniente em um país onde, segundo Sanders, três megamilionários acumulam mais riqueza do que os 50% mais pobres da população.
No entanto, o senador de Vermont, nascido no Brooklyn, tem uma nova missão: usar o seu peso político nos esforços para unir as lutas dos movimentos operários dos Estados Unidos e do Reino Unido. Na quarta-feira, Sanders levou seu característico discurso a um encontro do sindicato ferroviário no centro de Londres.
Os movimentos sindicais dos Estados Unidos e do Reino Unido são muito mais fracos do que a maioria de seus pares ocidentais. Por muito tempo, nos Estados Unidos, os sindicatos foram obstaculizados pelo “medo dos vermelhos” e as leis anti-sindicais do chamado “direito ao trabalho”, mas se viram severamente enfraquecidos sob o mandato do presidente republicano Ronald Reagan, cujo governo, em 1981, demitiu mais de 11.000 controladores aéreos em greve para dar uma lição a outros trabalhadores. Atualmente, pouco mais de um em cada 10 trabalhadores estadunidenses é sindicalizado.
O sindicalismo britânico não sofreu uma derrota tão profunda, mas o número de trabalhadores sindicalizados, aproximadamente um quarto da população ativa, representa a metade do nível que alcançou em 1979.
Sanders considera que os dois movimentos sindicais estão aprendendo a lição? “Acredito que estamos começando a ver nos Estados Unidos uma aceleração significativa da organização sindical”, afirma. “Estamos vendo que há mais trabalhadores que se organizam em sindicatos, que se apresentam à Junta Nacional de Relações Trabalhistas para obter a certificação, mais do que há muito tempo”.
O que o deixou mais otimista são as lutas dos trabalhadores em duas empresas que se caracterizavam pela falta de força sindical, Starbucks e Amazon. Recentemente, Sanders se uniu aos trabalhadores da Starbucks, em greve, em Boston. Nos últimos meses, depois que mais de 85 mobilizadores sindicais foram demitidos pela rede de café, a junta trabalhista apresentou várias denúncias contra a empresa.
Agora, o apoio de Sanders fez com que essa reivindicação ganhe notoriedade nacional. “Na Starbucks e na Amazon, centenas de trabalhadores estão se unindo a sindicatos. Na Amazon, estão enfrentando Jeff Bezos, a segunda pessoa mais rica do mundo. Estamos vendo as lutas nas universidades, nos hospitais, entre os profissionais de enfermagem... Estamos vendo uma organização sem precedentes em comparação ao que vimos nos últimos anos”.
Sanders aborda uma aparente contradição: “As classes médias diminuem e os ricos se tornam cada vez mais ricos. Há mais apoio ao movimento sindical nos Estados Unidos. Vemos que a população tem muito mais confiança nos sindicatos do que antes”.
E tem razão. No ano passado, 68% dos estadunidenses disseram aos pesquisadores que aprovavam os sindicatos, o maior nível desde 1965, enquanto pesquisas no Reino Unido demonstraram que a maioria dos britânicos em idade de trabalhar apoia a atual onda de greves. No entanto, isso não se traduziu na filiação da maioria em um sindicato. Por quê?
“Nos Estados Unidos, as empresas colocam enormes obstáculos aos trabalhadores para que possam exercer o direito constitucional de fazer parte de um sindicato”, destaca Sanders. “A junta trabalhista determinou que a Starbucks havia demitido trabalhadores e mudou de posto trabalhadores que estavam formando sindicatos, algo que é ilegal. Estamos vendo como as empresas ameaçam os trabalhadores com a transferência para a China. Há uma oposição corporativa em grande escala a que os trabalhadores formem sindicatos no país”.
Ressalta outra grande barreira: “Os Estados Unidos têm meios de comunicação que certamente não se simpatizam com os sindicatos, que muito poucas vezes falam sobre as vantagens dos sindicatos, como melhores condições de trabalho, salários, pensões etc. Como é óbvio, os meios de comunicação são propriedade de alguns grandes consórcios que não falam sobre questões de classe, questões econômicas. Tudo isso contribui para dificultar a organização dos trabalhadores.”
No entanto, existe uma tradição de militância entre os trabalhadores dos Estados Unidos, apesar das tentativas de eliminá-la, sobretudo nos anos 1950 sob o embate de McCarthy. Durante a Grande Depressão dos anos 1930, as ondas de greve se espalharam por todo o país. Sanders vê algum paralelo?
“Sim, eu vejo. Nos anos 1930, houve um aumento em massa na organização e filiação, e os trabalhadores lutaram bravamente: fizeram protestos, enfrentaram interesses poderosos. O que estamos vendo agora é uma frustração real em relação à inflação e os salários, já que o trabalhador médio estadunidense ganha menos do que há quase 50 anos, levando em conta os ganhos de produtividade. Está pior do que há meio século. É uma loucura”.
Considerando que empresas como a Starbucks há muito tempo conseguem minar as organizações sindicais, por que houve uma explosão desses movimentos?
“Vou dizer por que, na minha opinião, muitos dos trabalhadores da Starbucks são pessoas mais jovens. Muitos deles têm diplomas universitários e observam o que está acontecendo: [veem que] seus salários não se ajustam à inflação, não podem pagar a moradia, a saúde e a dívida estudantil. Estão ficando cada vez mais para trás em comparação a seus pais e enfrentam o proprietário da Starbucks - Howard Schultz - dizendo: ‘Vocês valem 4 bilhões de dólares! Qual o problema para vocês se nos organizamos como trabalhadores? E a resposta de Schultz se limita a tentar demitir os trabalhadores e intimidá-los. Até certo ponto, trata-se de uma luta geracional, multirracial, principalmente, mas não exclusivamente, de pessoas jovens que enfrentam um bilionário”.
A Starbucks nega todas as acusações de represálias. Um porta-voz da empresa disse ao jornal The Guardian que “essas pessoas não estão mais na Starbucks porque violaram a política de nossos estabelecimentos. O interesse de um colaborador em um sindicato não o isenta das normas que sempre mantivemos. Continuaremos aplicando nossas políticas de forma coerente para todos os colaboradores”.
A verdade é que a relação entre o movimento operário estadunidense e os progressistas mais jovens nem sempre foi harmoniosa, para não dizer outra coisa. Nos anos 1960 e 1970, os sindicatos estadunidenses eram dirigidos pelo rude ex-encanador George Meany, fervoroso partidário da Guerra do Vietnã, que denunciava os manifestantes estudantis como “pirados”. O ponto alto foi o chamado Hard Hat Riot de 1970, quando centenas de trabalhadores da construção e das oficinas atacaram fisicamente os estudantes que protestavam em Nova York.
Existe, desta vez, uma esperança de solidariedade entre os sindicalistas e a nascente esquerda jovem estadunidense?
“Esse tipo de unidade é algo em que estamos trabalhando”, disse Sanders. “Já realizei três encontros com dirigentes sindicais progressistas em Chicago, Filadélfia e Boston. O que vemos nesses encontros é que os sindicalistas se unem aos progressistas mais jovens e a união dessas forças, dos jovens que lutam pela justiça econômica e racial com um movimento sindical, tem um potencial incrível. Para responder à pergunta: é absolutamente imperativo que os unamos e é o que buscamos”.
Quando os trabalhadores estadunidenses lutaram contra os patrões, nos anos 1930, contaram com a vantagem da compreensão e da força política do presidente Franklin D. Roosevelt. O atual presidente, Joe Biden, prometeu repetidamente ser “o presidente mais pró-sindical da história”, mas sua trajetória esteve por muito tempo ligada ao establishment e aos setores “centristas” do Partido Democrata.
Sanders diz que conhece o presidente “razoavelmente bem” e ressalta a plataforma política de 110 páginas que sua equipe elaborou com a equipe de campanha de Biden, em 2020, com grupos de trabalho que abarcam áreas que vão da saúde ao meio ambiente.
“O que o presidente reconheceu é que havia, e há, um movimento de trabalhadores, de jovens, que estão cansados do status quo, e acredito que a construção do Plano de Resgate Americano [para ajudar os Estados Unidos a superar a pandemia de COVID-19] foi uma das peças legislativas mais consequentes para os trabalhadores na história moderna. Quando construímos a legislação Build Back Better [um amplo pacote de medidas relacionadas à política social e à crise climática], tinha o apoio do presidente para um programa de transformação multibilionário e foi sabotada por alguns senadores conservadores, mas ele disse: ‘Estarei do lado dos trabalhadores do país e enfrentarei os grandes interesses econômicos’”.
Isto difere de algumas das versões mais pessimistas da esquerda estadunidense a respeito de Biden, que ainda cambaleia pelas duas derrotas de Sanders rumo à candidatura presidencial. Mas seu otimismo não decorre tanto da leveza na forma como fala de Biden, mas de uma firme crença na capacidade das lutas da base para fazer com que os poderosos atuem a favor dos interesses dos trabalhadores.
“Estamos vendo um movimento progressista de pessoas em todos os estados deste país que estão começando a ir além da política incremental, perguntando: ‘Como é possível que todos os países ricos da Terra - incluindo o Reino Unido – tenham atendimento universal à saúde, enquanto nós temos um sistema disfuncional? Por que a educação universitária é gratuita em outros países, quando neste país é escandalosamente cara?”.
Durante a nossa conversa, apontei que, na minha opinião, suas campanhas colocam o foco no descontentamento da população, ampliando e canalizando-a. “Minha campanha levantou problemas, e o establishment de repente descobriu milhões de pessoas insatisfeitas com o status quo que desejavam uma mudança transformadora”, disse.
Sanders dá o exemplo de que o presidente se comprometeu, na semana passada, a cancelar até 10.000 dólares da dívida estudantil. “Foi tão longe como desejava? Não. Mas é um passo significativo para aliviar o terrível fardo que os jovens suportam? Sim, será de grande ajuda”.
Outro exemplo é a recém-aprovada Lei de Redução da Inflação que, entre outras coisas, reduz os preços dos medicamentos com receita e promove as energias limpas. “De novo, não foi tão longe como nas reivindicações de nossa campanha, mas, em muitos desses temas, executou parte do que exigíamos”.
Quais serão os próximos passos da esquerda estadunidense? O otimismo juvenil desse senador de 80 anos parece não ter limites. A próxima coisa, disse, será fazer crescer o movimento operário e vinculá-lo ao movimento progressista. “Pode ser que saibam ou não, mas quando chegar janeiro, em termos políticos, haverá uma presença progressista subjacente mais forte na Câmara do que em qualquer outro momento da história moderna. Estamos vendo conquistas a nível político, a nível organizacional, então estamos progredindo”.
No entanto, tudo isso depende de forçar o presidente a sair de sua zona de conforto. Sanders continua sendo um dos políticos mais populares dos Estados Unidos e suas campanhas animaram uma esquerda estadunidense a ousar sonhar em alcançar o poder político absoluto.
Que lições uma futura campanha poderia aprender com suas tentativas, que transformaram o debate político nos Estados Unidos, mas não lhe garantiram a presidência?
Sanders solta uma risada que qualquer um reconhecerá: a risada “não quero falar sobre isso agora”. “Essa é uma questão longa, muito longa!”. Mais uma vez, destaca as conquistas da sua campanha, ressaltando que “uma parte importante da sociedade não está satisfeita com o status quo, que está cansada da desigualdade de renda e riqueza e que quer mudanças fundamentais em nosso sistema econômico e político”.
Mas está claro que acredita que a hostilidade do establishment o prejudicou. “Quando você enfrenta a classe política, os meios de comunicação e as empresas, não é fácil. Precisamos de tempo e certamente não tivemos esse luxo”.
Também me pergunto se reconhece que Enough Is Enough surgiu em grande parte pelo vazio deixado por uma direção trabalhista no Reino Unido que abandonou qualquer pretensão de mudança transformadora. Sanders é diplomático. “Penso que não é diferente do que estamos vendo no Partido Democrata. Não posso opinar sobre o Partido Trabalhista, não sei o suficiente”, disse.
Referindo-se aos partidos tradicionais de centro-esquerda que lutam no norte global, o senador acrescenta: “Como a classe trabalhadora está cada vez mais alienada do processo político, esses partidos não servem para ela. Por isso, os democratas precisam escolher: são o partido da classe trabalhadora ou da elite?”.
Sem dúvida, o legado de Sanders é o que reuniu grupos fragmentados de pessoas descontentes para criar um movimento muito visível e articulado com firmes petições. Talvez, apenas talvez, possa conseguir o mesmo contribuindo para unir os movimentos operários, cada vez mais reivindicativos, nos dois lados do Atlântico.
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Bernie Sanders: “As pessoas estão cansadas de serem ignoradas, enquanto os ricos se enriquecem mais” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU