21 Janeiro 2022
“A crise sanitária e o confinamento também significaram uma oportunidade para apreciar o tempo pessoal, a própria vida, em uma sociedade tão mediada pelas lógicas do mercado como a estadunidense”, escreve Emma Álvarez Cronin, em artigo publicado por Público, 19-01-2022. A tradução é do Cepat.
Durante os últimos 50 anos, as crises econômicas foram sinônimo de desregulamentação e retrocessos em matéria de direitos trabalhistas. A crise do petróleo nos anos 1970 significou uma revitalização das doutrinas do Estado mínimo. As políticas de inspiração neoliberal arrasaram progressivamente os principais pilares da ordem econômica-trabalhista fordista, dando lugar a uma série de transformações que experimentaram um último impulso durante a crise de 2008: mercados de trabalho altamente segmentados, com altos níveis de desproteção e empregos temporários, e negociação coletiva e organização sindical extremamente difíceis, sobretudo para as trabalhadoras mais vulneráveis (as chamadas outsiders).
Esse enorme desequilíbrio de poder entre capital e trabalho poderia ter continuado se aprofundando durante a crise econômica gerada pela pandemia. No entanto, nesta ocasião, parece que a balança começa timidamente a se mover na direção contrária.
A Grande Renúncia (Great Resignation) é o nome que muitos economistas utilizam para descrever o fenômeno de renúncia em massa ao trabalho que está ocorrendo nos Estados Unidos. Os níveis de renúncia começaram a aumentar em abril de 2021, ultrapassaram os 4 milhões em julho e não diminuíram desde então. Em novembro de 2021, 4,5 milhões de estadunidenses renunciaram ao trabalho, um milhão a mais do que no mesmo mês de 2020.
Essas recusas em massa afetaram diversos setores e incluem empregos de maior e menor remuneração: do setor da saúde ou da indústria tecnológica a setores como o comércio varejista e a hotelaria. Ao contrário do que acontecia em crises econômicas anteriores, em que as demissões em massa eram acompanhadas por cortes nas condições de trabalho e salários, agora, a dificuldade em encontrar mão de obra após a reativação econômica está empurrando os salários para cima nos Estados Unidos, a níveis muito mais próprios de um contexto de boom econômico. A última vez que a taxa de crescimento dos salários atingiu os atuais 4,3% foi em novembro de 2007.
O que mudou em relação a outras crises, para que a lógica tenha se invertido e o poder de negociação da força de trabalho esteja aumentando? Por que agora se sentem com mais poder para decidir se trocam de trabalho, para pressionar e exigir melhores condições? Embora exista uma diversidade de fatores, há dois que mudaram substancialmente a posição a partir da qual as trabalhadoras negociam: ter tempo e dinheiro.
A pandemia levou milhares de pessoas a situações vitais extremas, mas parar a roda da economia também nos permitiu ganhar tempo do capital. O tempo sempre foi uma demanda histórica do movimento operário, a jornada de trabalho de 8 horas foi a protagonista de boa parte das greves no mundo industrializado ao longo do século XIX e inícios do XX. O tempo, fundamental para o descanso e o ócio (como dizia o famoso lema de Robert Owen), também é condição necessária para poder pensar, conectar-se com outros, organizar alternativas e cuidar dos outros.
Ter tempo para pensar foi um fator tão determinante na Grande Renúncia que o economista Paul Krugman a “rebatizou” como the great rethink. A crise sanitária e o confinamento também significaram uma oportunidade para apreciar o tempo pessoal, a própria vida, em uma sociedade tão mediada pelas lógicas do mercado como a estadunidense.
Conforme destaca Krugman, quando algo interrompe o cotidiano e a rotina, você se torna mais capaz de tomar consciência de sua situação e explorar alternativas de vida. Isso ajudou muitos a decidir renunciar ou, diretamente, não retornar a empregos mal remunerados, sem garantias ou proteção, muito menos flexibilidade para conciliar. E embora em boa medida se trate de uma decisão individual, as renúncias alimentam um descontentamento coletivo que está estimulando outros a fazer o mesmo.
Além disso, outra característica desse fenômeno é que o tempo para o trabalho de cuidados se tornou uma demanda e um fator fundamental. Isto é, sem dúvidas, consequência da incorporação em massa das mulheres no mercado de trabalho, embora existam grandes diferenças entre umas e outras.
Nos setores de classe média, que tiveram a oportunidade de trabalhar de casa durante a pandemia, começa a se estabelecer a demanda de normalizar o teletrabalho. Por outro lado, nos setores com piores remunerações - muitos altamente feminizados -, onde as trabalhadoras foram despedidas durante a pandemia ou estiveram na linha de frente expostas ao risco de contágio, muitas mulheres estão renunciando a trabalhar pela impossibilidade de conciliação, pressionadas pela falta de flexibilidade no emprego e uma ausência esmagadora de serviços públicos destinados aos cuidados.
Tudo indica que está ocorrendo uma mudança de mentalidade entre as e os trabalhadores estadunidenses, que durante a pandemia acabaram acumulando cansaço e esgotamento para algumas condições de trabalho que só pioraram durante as últimas décadas. Isso não só levou à Grande Renúncia, como também a um aumento das mobilizações e greves por todo o país.
Embora entre 2018 e 2019, por causa das mobilizações no setor da educação e da saúde, também houve um grande número de greves, em 2020 e 2021, aumentaram as greves vinculadas ao setor privado, incluindo trabalhadoras não sindicalizadas em condições especialmente precárias, que sofrem o estresse produzido pelo sistema de trabalho just in time.
Mas além do fato de se ganhar tempo, do cansaço e o aumento das mobilizações, a Grande Renúncia não teria sido possível se não tivessem contado, além disso, com o dinheiro.
Muitos economistas destacam que na atual crise a situação econômica dos trabalhadores, em todos os setores, é muito melhor do que durante as crises anteriores. Isto se deve, principalmente, à poupança que se fez durante o confinamento e aos auxílios econômicos impulsionados pelo governo dos Estados Unidos.
O CARES Act incluiu como medidas temporárias um reforço dos subsídios pelo desemprego existente (Unemployment Insurance - UI), aos quais se acrescentariam 600 dólares extras por semana e um auxílio específico para aqueles que não cumpriam os requisitos para receber o UI. Este último foi fundamental para garantir algum tipo de segurança de renda para os autônomos e, sobretudo, para os trabalhadores da gig economy (motoboys, entregadores da Amazon, motoristas da Uber e aplicativos similares, etc.), que normalmente estão em situação de total desproteção.
Em um país onde a proteção social é extremamente limitada e residual, essas medidas e suas sucessivas prorrogações forneceram às assalariadas uma ferramenta essencial, que lhes dá o poder de dizer “não” a empregos de merda, como os chamou David Graeber.
Em definitivo, as políticas de garantia de renda, concretamente as políticas de desemprego, não são apenas um mecanismo para dar segurança econômica em momentos de recessão. São também um mecanismo que confere certa independência do mercado de trabalho, o que é essencial para garantir uma margem e poder de negociação com os empresários.
No contexto atual, diante das grandes transformações experimentadas pelo mercado de trabalho e o aumento da precarização do trabalho, propor políticas de garantia de renda generosas e incondicionais, que garantam essa independência, é essencial para traçar um novo grande pacto social que inclua as trabalhadoras mais vulneráveis. Aqui, caberia, sem dúvida, a proposta de uma Renda Básica Universal e outras propostas semelhantes, como a herança universal de Thomas Piketty.
Lamentavelmente, não é isso que está acontecendo nos Estados Unidos, onde a expansão e o reforço da proteção social tiveram um caráter absolutamente conjuntural. Os subsídios do governo encerraram em setembro, sob a pressão dos empresários que culpam esses auxílios pela escassez de mão de obra, e as trabalhadoras não poderão sobreviver indefinidamente à margem da participação no mercado de trabalho. Por outro lado, também não é o que buscam: renunciam partindo da confiança de que encontrarão um trabalho melhor.
A conclusão é que esse fenômeno, juntamente com o aumento da mobilização social, pode estar promovendo uma mudança de mentalidade, abrindo o debate sobre os direitos trabalhistas nos Estados Unidos e inclusive trazendo certas mudanças importantes, como um aumento dos salários nos setores com as piores remunerações na economia estadunidense.
Contudo, para que a balança não volte à sua posição anterior e, sobretudo, para que continue aumentando o poder de negociação da força de trabalho frente ao capital, são necessárias mudanças permanentes e estáveis nas políticas de bem-estar e na regulamentação trabalhista estadunidense. É necessário cristalizar, nas instituições, a Grande Reavaliação.
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Tempo e dinheiro: sobre ‘a Grande Renúncia’ nos Estados Unidos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU