07 Outubro 2020
"Aparentemente contraditórias, propostas do governo para o pós-pandemia têm foco claro: devastar direitos sociais e trabalhistas. Substituí-los por um assistencialismo que mal garante a sobrevivência e desarticula a luta sindical", escrevem José Dari Krein e Renata Dutra, membros da REMIR – Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista, em artigo publicado por Outras Palavras, 05-10-2020.
Mesmo antes do atual cenário de crise sanitária e econômica, o governo Bolsonaro apresentou de forma cristalina as suas proposições de continuar desconstruindo direitos e proteções sociais dos assalariados, como pôde ser observado na reforma da previdência aprovada em 2019, na MP 905/2019 (carteira de trabalho verde e amarela), na extinção do Ministério do Trabalho, nas afirmações públicas de que o mercado de trabalho almejado é o próximo da informalidade. A desconstrução de direitos é complementada com uma política social de caráter mais assistencial, como fica evidente no atual debate de substituição do bolsa família pelo Renda Brasil.
Na crise, apesar de o Congresso – por pressão da sociedade – ter ampliado as transferências de renda para os assalariados do setor privado (suspensão do contrato e redução da jornada e do salário acompanhados de benefício emergencial atrelado ao valor do seguro desemprego) e do auxílio emergencial (para os informais, desempregados, MEIs, trabalhadores por conta própria sem renda), as medidas continuam trazendo no seu bojo o aprofundamento da agenda de flexibilização do trabalho, que é sinônimo de maior vulnerabilidade, insegurança e precariedade para os trabalhadores [1].
Na continuidade de enfrentamento da crise, as medidas anunciadas seguiram a mesma tendência de fragilizar a condição de assalariamento com proteção e de tornar ainda mais vulneráveis os ocupados.
Em primeiro lugar, apesar da pandemia continuar atingindo a população em um patamar muito elevado e a crise do mercado de trabalho mostrar dados preocupantes (13,7% de desemprego aberto + 76,8 milhões de pessoas fora da força de trabalho), as medidas de transferências de renda aos assalariados estão com prazo de validade expirando depois de 6 meses, sem perspectiva de continuidade, o que pode gerar um agravamento do quadro de quem precisa trabalhar para sobreviver. O mesmo raciocínio vale para a redução do valor (para R$ 300,00) e do número de beneficiários do auxílio emergencial prorrogado por mais três meses. As limitações das transferências tendem a aprofundar a perda de rendimentos[2].
Em segundo lugar, entre idas e vindas, está a proposta do Renda Brasil/Renda Cidadã, como medida assistencial substitutiva do bolsa família, que visa a ampliar e a aprofundar o pagamento do benefício, inicialmente por meio da extinção de direitos relacionados ao assalariamento, como o abono salarial[3] e a redução de proteção a grupos vulneráveis, tais como auxílio defeso e a redução do valor das aposentadorias/pensões.
No último dia 28/9 foi apresentada pelo Governo proposta de custeio do Renda Brasil/Renda Cidadã, que envolveria recursos do FUNDEB e de precatórios, deixando evidente a indisposição do Governo de enfrentar de forma clara a EC 95/2016 que congelou os gastos públicos por 20 anos ou para ampliar a carga tributária dos mais ricos. A questão fundamental, portanto, é a sinalização de ampliar a assistência aos crescentes excluídos do mercado de trabalho a partir da restrição de outras políticas sociais, notadamente a diminuição da proteção daqueles com direitos históricos assegurados.
A adoção de medidas de emergência é conciliada com a continuidade da implementação da agenda neoliberal, que se aprofunda desde 2016. Compõem esse cenário a continuidade das medidas relacionadas à Reforma Trabalhista, como a proposta ainda não apresentada formalmente, mas reiteradamente mencionada pelo ministro Paulo Guedes em seus pronunciamentos, de renovação da Carteira de Trabalho Verde e Amarela (que havia sido prevista por meio da MP 905/2019, mas que restou revogada pela MP 955/2020, ante sua não conversão em lei pelo Congresso Nacional), com características ainda mais precárias que a proposta original.
O ministro Paulo Guedes, em 13/8/2020, manifestou à imprensa à intenção de renovar o projeto da carteira de trabalho verde e amarela, sem, no entanto, apresentar uma proposta escrita. Ela se insere na proposta geral de um “novo marco legal do trabalho”, cuja tônica é a redução de custos. Pelas declarações do ministro, todavia, se percebe que o conteúdo da MP 905 seria significativamente alterado. Guedes fala de remuneração por hora, com pagamento proporcional de direitos trabalhistas, bem como de ampliar a margem de utilização do referido contrato: “no primeiro ano, as empresas poderiam ter 10% dos empregados contratados pelo regime de pagamento por hora trabalhada. No segundo ano, 20% e, no terceiro, 30%. Empresas de saneamento seriam exceção e já começariam com 50% no primeiro ano”.
O governo aproveita a crise causada pela pandemia para “dobrar a aposta”, indo além até mesmo das demandas do setor patronal (saliente-se que a restrição original da CNI à proposta referia-se exclusivamente à questão da fiscalização do trabalho[4]). O conteúdo volta mais “agressivo”, em face do contexto pandêmico, e também dialoga com outras agendas do governo, como a privatização do setor de saneamento, que poderia, de início, contratar 50% da força de trabalho sob esse regime, diferentemente dos outros setores.
Há flagrantes inconstitucionalidades na proposta idealizada por Guedes, no entanto, essa pode ser parte da estratégia de ventilar na mídia algo muito radical e, posteriormente, não concretizar a intenção na proposta formalizada. A insistência do Governo em propostas inconstitucionais, todavia, nos leva a contar com o poder judiciário, que tem amparado as medidas de flexibilização do trabalho, sem salvaguardar direitos fundamentais em sua totalidade, como se viu com as decisões liminares do STF a respeito das MPs 927 e 936 nas ADIs 6342 e 6363[5].
Também se revela como uma extensão das diretrizes da Reforma Trabalhista para o serviço público a proposta de Reforma Administrativa, por meio da já apresentada PEC nº 32, que tem como escopos principais a mitigação da estabilidade e a ampliação das contratações sem concurso no setor público[6], apontando ainda para a redução do número de carreiras e perspectivas de progressão funcional para os servidores públicos, tudo dentro da lógica do enxugamento dos custos estatais, pautada numa semântica de que os direitos dos servidores públicos seriam, em verdade, privilégios.
Ainda despontam nesse quadro as propostas relacionados à Reforma Tributária, que se concentram na criação de contribuição sobre bens e serviços, incluindo comércio eletrônico (medida de simplificação tributária); substituição do IPI por um imposto seletivo, objetivando o estímulo à produção industrial; diminuição da tributação de pessoas físicas e jurídicas, com redução das deduções do IRPF e do valor das contribuições para o sistema S e instituição de um imposto sobre dividendos; desoneração da folha de salário e criação do imposto sobre transação financeira. Por fim, proposta de imposto de renda negativo, com benefício exclusivo para os mais pobres, aliado à desoneração do trabalho formal e à implementação de formas contratuais cada vez mais precárias. Nesse conjunto, é sintomático o silêncio sobre taxação das grandes fortunas, prevista na Constituição e pendente de regulamentação desde 1988. São propostas em debate entre a equipe econômica e o Congresso, em que a premissa básica é facilitar a vida das empresas, reduzindo a força de trabalho a uma mercadoria, resultante da dinâmica econômica. Vale dizer que a referida proposta não é objeto de consenso entre Governo e Congresso Nacional, que tem tido diálogo difícil com o ministro Guedes.
Embora essas duas grandes linhas de atuação governamental (medidas de amparo à situações de emergência e aprofundamento da agenda neoliberal) possam parecer opostas e possam parecer servir a interesses e destinatários distintos (respectivamente, a população mais pobre e vulnerável, com fins eleitorais, e o mercado, com garantia da implantação de sua agenda), uma leitura ampla do quadro atual permite vislumbrar uma conduta unívoca: a desconstrução da sociedade salarial, por meio de uma ação pública concertada para garantir a sobrevivência dos mais pobres, numa perspectiva estritamente assistencial, que desconstrói a linguagem dos direitos, aliada à flexibilização cada vez mais ampla das relações de trabalho, com submissão dos assalariados à concorrência no mercado.
Essa tendência é reforçada com as iniciativas de enfraquecer e até inviabilizar o movimento sindical, implantadas por meio das disposições da reforma trabalhista e das medidas provisórias que a seguiram, obstaculizando o financiamento sindical, bem como pela tendência recente de afastamento do sindicalismo em relação às negociações, que passam a acontecer de forma individualizada. A fragilização das instituições de representação social pode levar a termos uma sociedade com crescente déficit de democracia, pior distribuição da riqueza gerada e ausência de um desenvolvimento sustentável.
Conjugado o conjunto das iniciativas, caminha-se no sentido de redefinir um lugar para o trabalho na sociedade brasileira – precário, mercantilizado e vulnerável – ao passo que a afirmação de algumas políticas sociais de emergência, alcançando os extremamente vulneráveis, se dá sem reversão do cenário de negação de uma cidadania social como responsabilidade do Estado e direito dos trabalhadores.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o ciclo de palestras A Renda Básica Universal (RBU) para além da justiça social, a ser realizado de 14 de outubro a 09 de novembro de 2020, na modalidade EAD. As atividades serão transmitidas ao vivo através da plataforma Microsoft Teams e do YouTube. Mais informações sobre a programação e inscrições podem ser consultadas aqui.
A Renda Básica Universal (RBU) para além da justiça social
[1] Conferir uma análise das medidas em Biavaschi e Vazquez, 2020. Disponível aqui.
[2] Em São Paulo – que é uma economia mais estruturado comparada com o restante do país – 55% dos ocupados com até 2 salários mínimos tiveram perda de renda durante a pandemia. Entre os autônomos foi ainda maior: 66%. Cf. uol. Acesso 28/09/2020. Disponível aqui.
[3] Waltenberg, Fábio; Kerstenetzky, Celia; Silva, Sandro Pereira. Abono salarial e renda básica. Folha de São Paulo. 18 ago. 2020. Disponível aqui.
[4] Ver Agenda Legislativa 2020 da CNI.
[5] Ver nota da REMIR sobre a MP 936 e a ADI 6363. Disponível aqui.
[6] DRUCK, Graça; REIS, Samara; LEONE, Emannuel. Uma “reforma” para devastar o serviço público. In: Outras Palavras. 21 set. 2020. Disponível aqui.
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A desconstrução da sociedade salarial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU