07 Março 2022
“Na era nuclear, o papel que um movimento antibélico deve desempenhar é o de ressaltar as alternativas a uma escalada militar que pode, com muita rapidez, levar ao aniquilamento da civilização humana”, escreve Owen Jones, comentarista e ativista político britânico, em artigo publicado por El Diario, 02-03-2022. A tradução é do Cepat.
Aprenderemos alguma vez? Vladimir Putin se une a um elenco de monstros, de Saddam Hussein a Muammar Kadafi, que já foram abençoados pelo apoio do Ocidente. Seu regime se forjou nas ruínas de Grozny (Rússia) e se legitimou com o dinheiro dos oligarcas que têm propriedades nos bairros londrinos Highgate e Chelsea.
Há 23 anos, o então desconhecido Putin surfou uma onda nacional de jingoísmo para se tornar o sucessor de Boris Yeltsin, depois que uma série de supostos atentados terroristas em edifícios de apartamentos russos serviram de pretexto para a segunda guerra contra a Chechênia. Não importa a existência de provas convincentes de que os serviços de segurança russos realizaram esses atentados para proporcionar um casus belli para a invasão, não importa que dezenas de milhares de chechenos tenham sido massacrados em meio a atrozes crimes de guerra. Putin foi elogiado e aceito.
Richard Dearlove, ex-chefe do MI6 [Serviço Secreto de Inteligência do Reino Unido], expressou em 2018 seu arrependimento pelo papel desempenhado pelos serviços de segurança britânicos na ascensão de Putin ao poder, incluindo a ocasião em que o então primeiro-ministro, Tony Blair, se ofereceu para uma sessão de fotos propagandísticas com Putin, em 2000.
No ano seguinte, Blair estabeleceu paralelismos entre a Chechênia e a “guerra contra o terrorismo” do Ocidente. A queda de Putin em um autoritarismo sem paliativos não levou Blair a reconsiderar suas opiniões, mas, ao contrário, instou o Ocidente a deixar de lado seu descontentamento com a anexação da Crimeia, em 2014, para se aliar a Putin contra o “islamismo radical”, um pedido que se repetiu em 2018, apenas três meses após os envenenamentos de Salisbury.
Hoje, a conivência está presente em grande medida nas fileiras dos conservadores. Os cofres do partido governante do Reino Unido estão cheios de dinheiro ligado a Putin. Segundo uma carta escrita por David Lammy e Rachel Reeves, “os doadores que recebem dinheiro da Rússia ou que possuem supostos vínculos com o regime de Putin doaram 1,93 milhões de libras ao Partido Conservador ou para associações conservadoras individuais, desde que Boris Johnson assumiu o poder em julho de 2019”.
A Rússia de Putin foi um dos países receptores de armas britânicas que violam os direitos humanos. Quando Nigel Farage, como tantos de seus irmãos populistas de direita no mundo ocidental, declarou sua admiração por Putin, estava realmente tão distante da corrente principal?
Um modelo econômico forjado pelo thatcherismo transformou Londres em um dos principais paraísos fiscais do mundo e em um centro para o “dinheiro sujo” procedente da Rússia e de outros violadores dos direitos humanos. Não é por acaso que tantos oligarcas estejam acumulando patrimônio imobiliário em Londres e nos condados do Leste e Sudeste da Inglaterra, próximos da capital. Não é exagero afirmar que as elites russas e britânicas estão profundamente entrelaçadas, com vínculos que vão dos clubes de futebol aos jornais, passando pelas partidas de tênis para arrecadar dinheiro, com o primeiro-ministro como jogador (contra a esposa do ex-ministro da economia russo).
Por esse motivo, é necessário um movimento antibélico que reivindique sem complexos um mundo que não seja um playground para as grandes potências brutais. No aqui e agora, isso significa focar na agressão russa. Apesar de algumas afirmações, a esquerda do Reino Unido não sente uma grande simpatia por Putin. Não é comum encontrar uma atitude insolvente como a que perdoou a invasão soviética da Hungria, em 1956, e que levou o correspondente do Daily Worker, Peter Fryer, a abandonar o Partido Comunista e denunciar o estalinismo como “um marxismo com o coração partido, desumanizado, seco, congelado, petrificado, rígido, estéril”.
É verdade que os manifestantes contra a guerra – seja no Reino Unido ou na Rússia – são os que mais têm influência sobre as ações de seus próprios governantes, mas deveriam apoiar as alternativas pacíficas à escalada militar, incluindo sanções e freios ao “dinheiro sujo” de Estados agressores como a Rússia e a Arábia Saudita.
Os ativistas contra a guerra não devem se confundir: a guerra de Putin não responde a uma provocação e não existem circunstâncias atenuantes. Isso não significa que não devamos refletir sobre como chegamos a esse ponto.
Deveríamos entender por que tantos europeus do Leste veem a OTAN como um baluarte indispensável contra a Rússia, que compreensivelmente temem mais do que o Ocidente. Também deveríamos entender como Putin explorou o evitável sentimento de humilhação dos russos, após o colapso da União Soviética, e deveríamos ser capazes de discutir as credenciais em matéria de direitos humanos de uma OTAN entre cujos membros está a autoritária Turquia, que trava uma guerra contra os curdos.
Na era nuclear, o papel que um movimento antibélico deve desempenhar é o de ressaltar as alternativas a uma escalada militar que pode, com muita rapidez, levar ao aniquilamento da civilização humana, acima de tudo, uma ordem internacional baseada em normas compartilhadas, diplomacia e cooperação. Isso implica ser coerentes.
David Miliband, o ex-secretário de relações exteriores trabalhista, tem razão ao condenar uma invasão que descumpre a Carta da ONU e que mata civis violando o direito internacional como uma “volta à idade das trevas”, mas deveria refletir sobre seu próprio voto a favor de uma guerra no Iraque na qual morreram centenas de milhares de civis, que foi condenada pelo então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, por descumprir a mesma Carta. O descumprimento das normas internacionais pelas grandes potências legitima a anarquia violenta.
O movimento antiguerra luta por um coração em um mundo sem coração. Resiste a uma narrativa racista resumida por um correspondente de notícias estadunidense: “Isso não é o Iraque ou Afeganistão... Isso é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia”. Ressalta que a invasão da Ucrânia importa porque é um povo atacado, não porque seja europeu, e que essa empatia deve ser aplicada de forma mais universal.
Também é preciso exigir o cumprimento universal das normas. Se nos opomos a um agressor, devemos nos opor a todos. A defesa da coerência nos assuntos internacionais é muitas vezes tachada como “whataboutism” (“e o que há de...?”), mas no fundo é a crença de que todas as vítimas de injustiças têm o mesmo valor.
Se entendemos o direito dos ucranianos de resistir à ocupação, deveríamos estender essa deferência aos palestinos. Se nos enoja a matança de crianças na Ucrânia, deveríamos nos sentir igualmente horrorizados pelo bombardeio saudita de crianças com bombas ocidentais e deveríamos condenar igualmente as atrocidades cometidas por outros regimes antiocidentais: das bombas de barril de Assad, na Síria, até a opressão dos muçulmanos uigures, na China.
Enquanto Putin trava esta guerra, a necessidade de um movimento antibélico que seja coerente e corajoso é mais urgente do que nunca. No aqui e agora, o movimento antibélico condena um ataque criminoso, defende o direito da Ucrânia de resistir e exige que esses mesmos princípios sejam aplicados universalmente. O movimento não encontrará amigos nos que buscam se beneficiar política ou financeiramente da guerra, mas deve buscar alianças nas bases de cada país. Pode ser que não seja popular, ao menos agora, mas terá razão.
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A agressão de Putin é um argumento a favor de um movimento antibélico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU