“É preciso um jejum de combustíveis fósseis”. Entrevista com Cecilia Dall’Oglio

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22 Março 2022

 

Cecilia Dall’Oglio é diretora associada dos programas europeus do Movimento Laudato si’ e faz parte do Comitê Ecumênico Tempo da Criação. Ela também colabora com o Escritório Justiça e Paz da Conferência Episcopal Italiana.

 

A reportagem é de Giordano Cavallari, publicada em Settimana News, 21-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

Do Movimento Católico Global pelo Clima ao Movimento Laudato si’: por quê?

 

Desde o ano do seu nascimento – 2015 – o movimento não fez nada além de se inspirar na Laudato si’ de Francisco, trabalhando sobre o nexo imprescindível entre o “grito dos pobres” e o “grito da terra”. Embora, prioritariamente, tratemos da “justiça climática”, aumentou a consciência de termos que lidar integralmente com a justiça planetária. A mudança de nome, portanto, serve simplesmente para evidenciar justamente esse aspecto, mas em plena continuidade de ação.

 

A organização permaneceu a mesma?

 

Certamente. O movimento é determinado pela soma de mais de 800 formações católicas no mundo. No comitê de acompanhamento, há um grupo de cardeais que representam os vários continentes. Trabalhamos com o Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano e em colaboração com o Dicastério para a Comunicação. O Movimento Laudato si’ nada mais é do que a confluência de um importante fluxo de energias eclesiais.

 

Como está indo a campanha pelo desinvestimento em combustíveis fósseis?

 

A campanha pelo desinvestimento em combustíveis fósseis – promovida tanto por organizações seculares quanto religiosas ao mesmo tempo – é até anterior ao movimento. Nós a apoiamos e a estamos assumindo plenamente, convidando todas as Conferências Episcopais e, portanto, as dioceses, as universidades, os hospitais e todas as instituições católicas a desinvestirem – em primeiro lugar o seu próprio dinheiro – no emprego de combustíveis fósseis, para uma virada ecológica verdadeira, ética e o mais rápida possível.

 

O que significa o “jejum de gás” que o movimento propõe nesta Quaresma?

 

O convite a jejuar de gás – e não de plástico ou de outra coisa – nesta Quaresma significa, acima de tudo, uma espiritualidade de marca franciscana. Não é por acaso que todas as manhãs, nestes dias de Quaresma, as famílias religiosas franciscanas rezam em Assis em apoio aos animadores da Laudato si’ que estão levando a proposta às dioceses e paróquias.

 

O significado – espiritual, mas muito concreto – é bem compreensível, especialmente nestes dias de guerra. Significa, por exemplo, aceitar ficar um pouco no frio para compartilhar um pouco o frio que a população ucraniana, sem gás, sem energia elétrica, sem água, está experimentando nas cidades sitiadas. Significava e ainda significa sentir um pouco o frio dos pés congelados dos irmãos e das irmãs que, como refugiados, estão percorrendo a rota balcânica rumo à Europa, ou o frio dos corpos imersos na água ao longo da rota de fuga das atrocidades no Mar Mediterrâneo.

 

Significa ainda sentir o vento e a neve nas barracas ou nas cabanas habitadas pelos deslocados sírios nos países do Oriente Médio, além dos afegãos no Afeganistão e de tantos outros pobres em muitas outras partes do mundo.

 

Pois bem, o jejum de gás significa um calor que é compartilhado, que migra a partir de fontes distantes e chega a novos destinatários: um calor dos corações e dos lares domésticos que possa ser perceptível a muitos que estão com muito, muito frio. Pensemos nas centenas de milhares de refugiados que também estão chegando à Itália para encontrar um pouco de calor humano. E, de fato, encontram-no nas famílias italianas que os estão acolhendo!

 

Não há dúvida de que o clima de guerra amplificou todos os significados possíveis e também a intensidade do significado global do jejum de gás. O tempo favorável para a conversão e a mudança é este!

 

Concretamente, qual é a proposta?

 

Diminuir a temperatura das nossas casas, consumir menos água, especialmente água quente, usar menos energia elétrica, evitando sobretudo o desperdício, deslocar-se de bicicleta e de transporte público em vez de carro etc. Enquanto isso, podemos cobrir e isolar melhor as nossas casas do frio, tanto meteorológico quanto espiritual. Defender a fragilidade, resistir: como sabemos, já é possível fazer muito nesse sentido.

 

Além disso, como mencionei, é possível formular, de imediato, o pedido às Conferências Episcopais, às dioceses, aos bispos e aos ecônomos, às paróquias e às realidades católicas para que desinvistam nos combustíveis fósseis (veja mais aqui, em português), para que mais esse dinheiro não acabe nos bolsos das empresas multinacionais e também locais de energia, que poluíram e exploraram o mundo criado com os seus povos. Claramente, essa ação pode e deve ser desejada por cada um de nós e pelas nossas famílias, cada um ou cada uma com suas próprias economias.

 

Não subestimamos o poder e a relevância de uma ação “de baixo para cima” ampla e disseminada. Isso assusta os poderosos da terra mais do que se possa pensar.

 

Essa é a exemplificação da justiça integral que você mencionou no início?

 

Exatamente. Esse é o caminho organizado, não violento e resistente que – integralmente – leva tanto à paz quanto à virada ecológica. Esse é o caminho da transição energética verdadeiramente verde, ou seja, limpa da poluição e do sangue dos mortos, civis – mulheres, crianças, idosos – e soldados.

 

Penso neste momento na minha colega Svitlana Romanko, responsável pela Campanha Zero Combustíveis Fósseis, na Ucrânia. Agora, ela está refugiada na Alemanha com o seu filho, enquanto o seu marido ficou na Ucrânia. Nestes dias, ela teve a força de participar dos encontros mensais dos animadores do movimento, quase implorando que todos nós jejuemos do gás, com estas palavras: “Conhecemos as especulações que existem em torno do gás, e por isso estou fazendo o meu apelo à ação e à solidariedade pelo meu povo: vamos jejuar do gás! Teremos um mundo mais limpo dos gases de efeito estufa e das guerras!”.

 

É um apelo também a abrir mão do gás extraído na Rússia?

 

Importamos companheiros de viagem com uma adequada preparação científica e técnica que estão nos dizendo que é possível – até o início do próximo inverno [europeu] – reduzir para metade a dependência por parte da Europa do gás da Rússia, sem, para isso, voltar a queimar carvão. Isso é possível com um mix de ações de economia e a adoção da produção de energias renováveis. Um documento muito sério foi elaborado a esse respeito (disponível em italiano aqui).

 

O movimento está assumindo uma posição específica – sobre gás e energia nuclear – em relação à União Europeia. Qual?

 

Estamos pedindo aos representantes políticos – no Conselho e no Parlamento europeus – que rejeitem o ato delegado sobre a taxonomia complementar ao clima, o que significa simplesmente retirar tanto o gás quanto a energia nuclear da lista de fontes de energia consideradas sustentáveis. Essa taxonomia ou classificação é muito importante, porque serve para dar indicações para quem investe no setor de energia. O investidor privado deve ter bem claro o que efetivamente serve ao ambiente e ao desenvolvimento humano integral e o que não serve. É absolutamente necessário evitar as operações de green washing que as grandes empresas multinacionais e as várias sociedades anônimas estão tentando realizar, ou seja, fazer passar por verde aquilo que absolutamente não é verde nem benéfico para o ambiente e para a humanidade!

 

Se for aprovada a linha expressada pela taxonomia recentemente redigida, isso também significará usar os fundos do PNRR [Plano Nacional de Retomada e Resiliência] – também na Itália – de forma incorreta, ou seja, de forma não alinhada com as mesmas – e novas – finalidades para as quais esses fundos foram alocados.

 

Não podemos permitir que o gás e a energia nuclear passem como o novo paradigma da sustentabilidade: esse ainda é o velho modelo – extrativista –, e não o novo que estamos pedindo!

 

Outro problema importante e urgente que estamos levantando à União Europeia é o da burocracia. Na Europa, há uma boa disponibilidade dos cidadãos de se emanciparem dos combustíveis fósseis, seja economizando energia, seja instalando sistemas limpos nas próprias casas. Uma pesquisa que será publicada em breve fala de 46% dos italianos já orientados nesse sentido. Mas é claro que essa orientação deve ser incentivada e, sobretudo, desburocratizada e tornada o mais simples e praticável possível.

 

Será possível manter os propósitos sobre o clima expressados pela COP-26 em Glasgow, apesar do que está ocorrendo?

 

Devemos absolutamente manter os propósitos. Todo o mundo deve fazer isso. Um recente relatório da ONU descreve os cenários ambientais se for superado o limiar – reafirmado em Glasgow – de mais 1,5 graus Celsius de aumento médio da temperatura. No Vaticano, foram feitas reflexões importantes sobre esse documento. O Movimento Laudato si’ dedicou um webinar de escala mundial a ele. De todas as partes – especialmente das áreas mais pobres – recebemos relatos e testemunhos comoventes: pobreza, fome, doenças, devastações e mortes ocorrem – há muito tempo – devido às mudanças climáticas. Enquanto as multinacionais continuam enriquecendo sobre a pele dos povos. Tudo isso não é mais tolerável.

 

A Igreja italiana está se envolvendo?

 

Posso citar dois eventos recentes e importantes da Igreja italiana: o primeiro, a Semana Social de Taranto, em outubro passado, na qual se fez um grande esforço para induzir estilos de vida pessoais e comunitários cada vez mais sustentáveis, ou seja, marcados pela economia de recursos vitais e voltados à transição das fontes de energia.

 

O segundo, o encontro dos prefeitos e dos bispos do Mediterrâneo, em memória de Giorgio La Pira e David Sassoli, em Florença, cujas conclusões evidenciam com clareza o nexo entre a proteção do ambiente, a paz e a cooperação entre os povos a fim de resolver dicotomias.

 

Está crescendo o número e a influência dos animadores do Movimento Laudato si’ nas dioceses e nas paróquias italianas?

 

Eu diria que sim. No início desta Quaresma, abrimos as inscrições para o novo curso anual (em italiano, aqui) organizado com o escritório da Pastoral Social da Conferência Episcopal Italiana e com a ajuda de muitas organizações pastorais e não pastorais.

 

O curso terá início na primeira semana da Páscoa, portanto, à luz da ressurreição e sobre as asas da esperança de um mundo melhor. Esta terrível guerra só poderá dar mais impulso aos propósitos e aos anseios. O curso é oferecido na Itália, mas será acompanhado, em várias línguas, em muitas partes do mundo.

 

A importância do tema – a gravidade e a urgência – de que tratamos aqui já é perceptível, mas precisa ser constantemente acompanhada. Os animadores servem para isso. Eles falam às comunidades cristãs e às pessoas nas paróquias. Vão falar com os bispos, com os ecônomos, com os escritórios de assuntos econômicos. Pedem escolhas específicas. Formam o carisma para a criação e, ao mesmo tempo, para a paz.

 

O movimento está dentro do caminho sinodal?

 

Posso dizer que o Movimento Laudato si’, pela sua origem e pela sua natureza, é um movimento sinodal mundial, pelo que foi dito. Escuta, diálogo, discernimento compartilhado fazem parte do método constitutivo. Trabalhamos duro para dar voz também a quem não tem voz. Por uma Igreja que seja sacramento de cuidado.

 

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