A extrema-direita católica e a aliança com o governo Bolsonaro. Entrevista especial com Romero Venâncio

Do ponto de vista político, a extrema-direita católica é bolsonarista porque Bolsonaro atende ao que ela quer ideologicamente. Teologicamente, a extrema-direita é contra o Concílio Vaticano II e o Papa Francisco, resume o pesquisador

Foto: Fábio Rodrigues Pozzembom | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin e Pedro de Brito | 29 Novembro 2021

 

Desde o início do pontificado do Papa Francisco, em 2013, Romero Venâncio pesquisa a atuação de movimentos católicos e youtubers de extrema-direita nas redes sociais, com destaque para o Instagram e o YouTube. Entre eles, está o "pop star dos youtubers", padre Paulo Ricardo, que é acompanhado por mais de 1 milhão e 300 mil pessoas no Instagram.

 

Além do crescimento da popularidade das redes sociais nos últimos anos, o professor da Universidade Federal de Sergipe - UFS atribui a expressiva audiência dos youtubers ao abandono na formação de base do catolicismo. "O povo, a rigor, ficou, como diz o Evangelho, ovelha sem pastor. A segunda hipótese é mais grave: o clero brasileiro se tornou muito desqualificado e despreparado. A formação intelectual nos seminários caiu muito e a CNBB sabe disso. Os estudantes são tradicionalistas por falta de opção. A formação, nos últimos 30 anos, gerou padres muito fracos, despreparados, inclusive para o trabalho pastoral. Consequentemente, houve uma fragilidade muito grande na formação do povo na Igreja e as redes sociais compensaram isso", disse na entrevista a seguir, concedida via Zoom ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Na avaliação dele, o ponto comum que une a extrema-direita católica teologicamente é a recusa ao Concílio Vaticano II e ao Papa Francisco. Politicamente, é a adesão a políticos de extrema-direita, como o presidente Bolsonaro.

 

Venâncio Romero analisa especificamente o movimento Sedevacantista, os Arautos do Evangelho e o Centro Dom Bosco - CDB. "A grande novidade dessa extrema-direita católica é que ela tem uma cosmovisão católica. Os três grupos afirmam isto: eles pararam na visão de Pio XII. Eles não aceitam o Papa João XXIII nem o Papa Paulo VI por conta da missa, que eles chamam de 'missa de Paulo VI', e acabaram criando problemas com o Papa João Paulo II porque ele puniu Marcel Lefebvre com a excomunhão. Eles também tiveram problemas com o Bento XVI porque, no final de seu papado, antes da renúncia, Bento reafirmou o Concílio Vaticano II. Esses grupos têm horror ao Concílio Vaticano II e se opõem ao Papa Francisco porque ele é a síntese de João XXIII, Paulo VI e João Paulo II".

 

A seguir, ele também comenta as relações da extrema-direita católica com o governo Bolsonaro. "A extrema-direita católica é anterior ao bolsonarismo. Antes de Bolsonaro ser o que era, a extrema-direita católica já fazia suas atividades nas redes sociais ou fora delas. Com Bolsonaro, ela foi potencializada. Se Bolsonaro morresse hoje, não mudaria nada, porque o ideário está colocado".

 


Romero Venâncio (Foto: Arquivo Pessoal)

Romero Venâncio é graduado em Teologia pelo Instituto de Teologia do Recife - ITER, em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB, mestre em Sociologia pela mesma universidade e doutor Interinstitucional em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Atualmente, leciona na Universidade Federal de Sergipe.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Quais grupos católicos de extrema-direita você tem analisado? Qual é a origem deles e quais seus valores e crenças?

 

Romero Venâncio – Minha pesquisa vai de 2013 a 2021, e não pesquiso todos os grupos; pesquiso apenas três, os mais importantes, os mais sérios, os mais agressivos e os que sabem o que querem do ponto de vista da formação teológica: o movimento Sedevacantista, que vem da Associação São Pio X, do movimento do arcebispo dom Marcel Lefebvre, de 1970; os Arautos do Evangelho, de São Paulo; e o Centro Dom Bosco - CDB, que é do Rio de Janeiro. Escolhi esses grupos porque eles têm um projeto teológico, político e arquitetônico – eles gostam de construir espaços públicos grandes para formação.

Também pesquiso quatro youtubers, que são os mais acessados e os mais famosos: padre Paulo Ricardo, Bernardo Küster, Diogo Rafael Moreira, teólogo e historiador ligado ao movimento Sedevacantista, e Conde Loppeux, que é o pseudônimo de Leonardo Bruno Oliveira.

 

Origem

 

Eu faço uma diferenciação entre origem cronológica e teológica: cronológica é a data em que os movimentos nasceram e teológica é forma como eles estão trabalhando a experiência de fé. A origem teológica deles está no início do pontificado de Francisco, em 2013. Eles se originam numa disputa contra o Concílio Vaticano II e contra o Papa Francisco. Quando uso a palavra contra, não estou fazendo eufemismo. Eles são contra mesmo, abertamente contra o papa e o Concílio.

Eles não atuam somente nas redes sociais; estão publicando livros com editoras próprias. O pessoal do movimento Sedevacantista de São Paulo tem uma editora e está publicando dois livros voltados para o tema da liturgia. O pessoal do CDB também está publicando livros, além de organizar semanalmente cursos de formação com pessoas que chamo de intelectuais católicos de direita. Esse centro, apesar de ter o apoio de alguns padres, é formado por leigos. O movimento Sedevacantista, não. Quem está à frente do movimento é um padre que estranhamente virou bispo aos 37 anos e foi ordenado na Flórida, nos EUA. Os Arautos do Evangelho foram aceitos pelo Papa Bento XVI em 2011 e são uma associação com caráter pontifício. Atualmente, eles estão sob intervenção do Papa Francisco.

 

 

IHU – Por que eles se opõem ao pontificado do Papa Francisco?

 

Romero Venâncio – O Papa Francisco tem expressões que nós chamaríamos, em teologia e política, de progressistas. Então, o problema já começa aí. Quando chamo de progressista, estou me referindo, por exemplo, ao tema da primeira encíclica do Papa Francisco, que foi sobre as questões ambientais, que são altamente sensíveis à extrema-direita, que é negacionista. Essa é uma marca em todos eles.

Eles têm uma cosmovisão e não apenas uma leitura pontual de alguns pontos. A grande novidade dessa extrema-direita católica é que ela tem uma cosmovisão católica. Os três grupos afirmam isto: eles pararam na visão de Pio XII. Eles não aceitam o Papa João XXIII nem o Papa Paulo VI por conta da missa, que chamam de “missa de Paulo VI”, e acabaram criando problemas com o Papa João Paulo II porque ele puniu Marcel Lefebvre com a excomunhão, assim como também excomungou Antônio de Castro Mayer, bispo da Diocese de Campos, no Rio de Janeiro, que era lefebvriano. Eles também tiveram problemas com o Bento XVI porque, no final de seu papado, antes da renúncia, Bento reafirmou o Concílio Vaticano II.

Esses grupos têm horror ao Concílio Vaticano II e se opõem ao Papa Francisco porque – e nesse ponto eles têm razão – ele é a síntese de João XXIII, Paulo VI e João Paulo II. O pessoal do movimento Sedevacantista diz que o Papa é a preparação para o anticristo na Igreja. Eles estão lendo o livro O papa e o anticristo: A crise atual da Santa Sé à luz da profecia, do Cardeal Henry Edward Manning, de 1861. 

 

IHU – Qual é a relação deles com Pio XII? Por que esse é o último papa reconhecido por eles?

 

Romero Venâncio – Pio XII tem três características com as quais eles se identificam.

Primeiro, a missa tridentina. Pio XII reafirma a missa tridentina, que eles chamam de “a missa como de sempre”, aquela missa em que o padre celebra voltado para o altar e para o sacrário, de costas para as pessoas, com todo o rito todo em latim e apenas os informes no vernáculo próprio.

Segundo, porque Pio XII tem uma crítica muito forte a um tema sobre o qual eles adoram falar: “o modernismo”. Eles condenam tudo que é modernismo. Tem horas que não se sabe mais do que eles estão falando porque tudo é modernismo. Por exemplo, se você usar óculos com o nome “Jesus”, isso é modernismo. O Papa Pio XII condenou, especificamente, o modernismo em uma de suas encíclicas. O modernismo estava muito associado ao existencialismo, ao liberalismo e ao marxismo. Além disso, o Papa Pio XII é anticomunista. Foi ele quem, inclusive, expressou a ideia de que é incompatível alguém ser católico e ser comunista. Essas três características são comuns a todos os grupos de extrema-direita. Por isso Pio XII é absolutamente fundamental para eles.

 

 

IHU – O senhor faz distinção entre grupos católicos de direita e de extrema-direita? Em que consiste?

 

Romero Venâncio – Sim, até porque os grupos que estou estudando são de extrema-direita. Já me perguntaram por que eu não uso somente a palavra “direita” em vez de “extrema-direita”. Para mim, a palavra “extrema”, em extrema-direita, tem dois sentidos: um, político, e outro, teológico.

O sentido político é que eles apoiam abertamente políticos de extrema-direita. O site The Intercept Brasil fez uma matéria, em agosto, provando que a origem do bolsonarismo é a extrema-direita católica, que trouxe um espanhol para o Brasil para treinar um grupo de católicos contra a ideologia de gênero. Do ponto de vista político, eles apoiam todas as políticas da extrema-direita: são contra o feminismo, contra a pauta homossexual e LGBT como um todo e, principalmente, contra qualquer perspectiva socialista ou liberal. Eles não são apenas contra o PT; eles odeiam o PT e a esquerda como um todo. Mas, para eles, Fernando Henrique [Cardoso] é de extrema-esquerda. São de extrema-direita teologicamente porque são sectários, tradicionalistas, e representam uma reação direta ao Concílio Vaticano II.

Um grupo de direita que não é de extrema-direita, por exemplo, é a Renovação Carismática Católica. Primeiro, ela aceita o Papa Francisco, mesmo tendo reservas quanto a algumas ações dele. O Papa é a unidade da Igreja, e a Renovação Carismática não coloca em risco a unidade da Igreja. Em segundo lugar, ela aceita o Concílio Vaticano II, inclusive dizendo que é preciso fazer reparos. A Renovação propôs outro Concílio para fazer reparos ao Vaticano II. 

 

 

IHU – Grupos católicos de direita e de esquerda se identificam com quais pontificados?

 

Romero Venâncio – A Renovação Carismática chama – e é verdade – João Paulo II de santo. João Paulo II é o papa preferido da Renovação Carismática. Independentemente de concordarmos com ele ou não, João Paulo II representa uma expressão do Concílio Vaticano II. Ele nunca renegou o Concílio Vaticano II. Inclusive, quando ele puniu Marcel Lefebvre, o puniu com a excomunhão. Ele cobrou diálogo de Lefebvre, mas ele não quis dialogar e chegou a ordenar dois bispos. Então, o papa o puniu com a excomunhão.

Outro grupo que considero conservador, mas não é de extrema-direita, é o Movimento dos Focolares. Trata-se de um movimento de classe média, de caráter europeu, que tem um vínculo com o Concílio Vaticano II. O movimento critica o comunismo e o liberalismo, mas mantém diálogo com o papa.

O Movimento de Cursilhos de Cristandade também sempre foi de classe média e adepto a pautas conservadoras, mas não é de extrema-direita. É um erro sociológico e ideológico classificar esses movimentos como extrema-direita. Eles não são violentos. Nunca vi o incentivo à violência no site da Renovação Carismática como vejo no site do CDB. O Centro Dom Bosco sugere abertamente o boicote a sites "heréticos". A teoria da conspiração também é muito comum na extrema-direita. Dizem que há grupos infiltrados na Igreja, que os jesuítas são traidores ou devotos do papa. Esse tipo de comportamento não está nos Focolares, nos Cursilhos e na Renovação Carismática.

 

Esquerda católica

 

Há uma figura que os grupos de extrema-direita odeiam, que não é uma figura revolucionária; é uma figura discreta, mas, ao mesmo tempo, muito fina e coerente nas redes sociais: Dom Vicente [de Paula Ferreira], bispo auxiliar de Belo Horizonte. O prazer da extrema-direita é “bater” nele todos os dias nas redes sociais. Acompanho Dom Vicente no Instagram. É um dos bispos abertamente contra Bolsonaro. É um dos maiores aliados do Papa Francisco no Brasil, mais do que muitos bispos que são de esquerda. Dom Vicente é associado ao que a extrema-direita chama de extrema-esquerda, mas ele é um retrato de um paradigma moderno de esquerda dentro da Igreja.

Eu venho de um Instituto de Teologia muito vinculado à esquerda católica em Recife, fundado por Dom Hélder Câmara, chamado Instituto de Teologia do Recife. Sempre acompanhei o que chamo de esquerda católica: a teologia da libertação, que viveu transformações, agressões, embates e recuos nos últimos 50 anos da Igreja na América Latina. Ela não morreu; sobreviveu se renovando. Por isso, tomo Dom Vicente como um exemplo de renovação da teologia da libertação. Dom Vicente mantém as vestes episcopais, é um homem branco, um homem claramente de classe média, muito político, educado. Ele não é, certamente, um Dom Pedro Casaldáliga, mas eu diria que Dom Vicente é um homem renovado na teologia da libertação a partir de pautas modernas.

 

IHU – Quais?

 

Romero Venâncio – As pautas modernas de Dom Vicente e do que eu chamo de esquerda católica no Brasil são, por exemplo, a pauta ambiental. Dom Vicente defende integralmente e é um dos maiores propagadores da Laudato si’ e da Fratelli tutti, do Papa Francisco. Ele também é um homem muito antenado às pautas de costume. Você não o verá dizendo termos homofóbicos. Não é que ele diga que homossexuais devam ser padres; ele não vai entrar nesse mérito. O que ele vai fazer é não ser homofóbico, e quando uma pessoa trans for agredida, é possível que ele a defenda pela solidariedade cristã. Isso é o que eu chamo de uma pauta moderna da teologia da libertação.

Dom Vicente também mantém integralmente os postulados do Concílio Vaticano II e das Assembleias Gerais dos Bispos Latino-Americanos e tem um vínculo a partir da palavra “inculturação”. É isso que eu chamo hoje de esquerda católica, que é o máximo até onde ela vai. Ele é um homem de valores democráticos e a esquerda católica defende instituições e valores democráticos, a vida democrática. A Igreja católica de esquerda hoje é contra a ditadura, contra a tortura, a pena de morte, contra a política de armas. 

 

Padre Paulo Ricardo dá aula de todos os assuntos que você puder imaginar sobre teologia. É um tradicionalista. O papel dele é desconstruir as teologias liberais, progressistas e a teologia da libertação - Romero Venâncio

 

IHU – Como os youtubers de extrema-direita atuam na internet e qual é o objetivo político e teológico deles?

 

Romero Venâncio – Acompanho quatro deles, porque não tenho condições de acompanhar todos: padre Paulo Ricardo, de Campo Grande, do Mato Grosso, que é o mais importante, Bernardo Küster, Diogo Rafael Moreira, que é do Rio de Janeiro, mas está em São Paulo, e Conde Loppeux.

Escolhi quatro homens de propósito porque o âmbito da extrema-direita é muito machista. Escolhi esses porque são os mais vistos, entendem de teologia, de história da Igreja. O padre Paulo Ricardo é o pop star dos youtubers. No Instagram, ele era acompanhado por 1 milhão e 300 mil pessoas dois meses atrás. Ele é o youtuber católico de direita mais acompanhado do Brasil – e desconfio que da América Latina também. Ele posta pedaços de missas, aulas, textos. O estúdio dele é cinematográfico e o som dos vídeos é absolutamente perfeito. Ele dá aula de todos os assuntos que você puder imaginar sobre teologia. É um tradicionalista. O papel dele é desconstruir as teologias liberais, progressistas e a teologia da libertação. Para ele, teologia da libertação é heresia, cisma, erro e apostasia. A preferência dele é pelos papas Pios: ele adora Pio X, Pio IX, Pio XII.

O segundo youtuber que analiso é Bernardo Küster, um leigo católico, ligado ao Centro Dom Bosco. Ele adora tirar fotos com cardeais de direita, mas é um militante, uma “macaqueação” de Olavo de Carvalho. Ele usa o vocabulário do Olavo de Carvalho e é o que chamo de leigo desqualificado. Agora, ele estuda teologia e conhece teologia tradicional, isso eu tenho que reconhecer. Por exemplo, ele conhece os documentos dos papas, que é uma coisa que esse pessoal adora, como um documento que Pio IX escreveu em 1840. Diferentemente do padre Paulo Ricardo, que tem uma postura elegante, ele não tem compostura: “vai para cima”, agride, xinga, usa palavrões etc.

O terceiro é Diogo Rafael Moreira, um rapaz de aproximadamente 30 anos. Ele é obcecado. A extrema-direita católica tem paranoias obsessivas gravíssimas. Ela vive um gozo errado. Esse rapaz fica destilando ódio contra João XXIII ou defendendo documentos do papa Bonifácio IV. Ele é ligado ao movimento Sedevacantista e é formado em História.

O último é Conde Loppeux, que é o mais pernicioso. Ele briga com protestantes e judeus, defende o Concílio de Trento e a missa em latim e diz um monte de palavrões. Todos eles são, de algum modo, vinculados ao Olavo de Carvalho, com exceção do Diogo Rafael Moreira, que não gosta do Olavo porque ele é liberal pelo fato de aceitar a missa no vernáculo. Olavo de Carvalho defende a tese de que deveriam existir as duas missas, em latim e no vernáculo local.

 

 

IHU – A que atribui a audiência desses youtubers?

 

Romero Venâncio – Eu tenho uma hipótese não comprovada e uma certeza. A hipótese é a seguinte: a esquerda católica, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, os progressistas católicos abandonaram a formação de base do catolicismo. O povo, a rigor, ficou, como diz o Evangelho, ovelha sem pastor. A segunda hipótese é mais grave: o clero brasileiro se tornou muito desqualificado e despreparado. A formação intelectual nos seminários caiu muito e a CNBB sabe disso. Os estudantes são tradicionalistas por falta de opção. A formação, nos últimos 30 anos, gerou padres muito fracos, despreparados, inclusive para o trabalho pastoral. Consequentemente, houve uma fragilidade muito grande na formação do povo na Igreja e as redes sociais compensaram isso.

A prova disso é o que faz o padre Paulo Ricardo: ele dá uma tentativa de formação integral para o católico. Ele fala de missa, filma missa, faz orações, segue o dia dos santos; ele tem uma pauta da temporalidade litúrgica e percebe que nas paróquias não estão fazendo isso. Então, nesse sentido, minha hipótese é a de que a má formação do clero contribuiu muito para a popularidade desse pessoal.

A segunda razão, obviamente, é o sucesso das redes sociais. Uma pesquisa do professor Sérgio Amadeu mostra que 92% dos brasileiros estão no WhatsApp. Para fazer uma média, acima de 50% dos brasileiros estão nas redes sociais. Quem está no WhatsApp e no Facebook também está no YouTube. Não é à toa que essas pessoas migraram para canais do YouTube. O sucesso das redes sociais levou as pessoas a organizarem sua fé católica na internet.

 

 

IHU - O que aconteceu ao longo dos últimos 30 anos que levou à má formação do clero e dos fiéis, que o senhor menciona?

 

Romero Venâncio – Os seminários caíram muito em termos de formação. Os professores que ensinam em seminários são muito fracos. Eu digo isso porque eu fui de seminário, fiz teologia. A formação dos padres seculares também caiu muito. O padre secular é aquele que vai trabalhar diretamente com o povo. Esse padre está muito despreparado intelectualmente, contemporaneamente. Paralelo a esse fracasso, tem o aumento considerável dos casos de pedofilia e isso não acontece somente no Brasil. Observe: a maioria dos casos de pedofilia estão associados a padres e não a freiras.

Vamos ser sinceros: o povo percebe isso. O povo pode não dizer nada, fica calado, mas percebe os casos. E o que o povo faz? Vai para a internet. Para essa tragédia que o povo vive nesse sentido, tomo a frase do Evangelho: a quem mais é dado, mais é pedido. Então, as responsabilidades maiores são do clero fraco, desequilibrado, despreparado moralmente, afetivamente.

 

 IHU – Que riscos e possibilidades o senhor vê na relação entre teologia e política?

 

Romero Venâncio – A extrema-direita católica é anterior ao bolsonarismo. Antes de Bolsonaro ser o que era, a extrema-direita católica já fazia suas atividades nas redes sociais ou fora delas. Com Bolsonaro, ela foi potencializada. Se Bolsonaro morresse hoje, não mudaria nada, porque o ideário está colocado. Eu concordo com as teses defendidas pelo Fábio Py, de que existe um fundamento teológico no bolsonarismo – só que ele estuda o lado protestante. Mas existe também uma fundamentação teológica católica de extrema-direita no bolsonarismo e isso é um perigo.

Isso não significa que o padre não deva fazer política ou tomar posição política, mas a posição da extrema-direita católica é perigosa porque é violenta. A extrema-direita política é violenta, belicosa e niilista. Acredita em arma, dinheiro etc. Pega mal para um movimento religioso se associar a isso.

 

 

IHU – Sobre o Concílio Vaticano II, há muitas opiniões: alguns concordam integralmente, outros discordam, outros concordam e propõem revisões. Que leitura o senhor faz do Concílio hoje à luz do pontificado de Francisco e da atuação da extrema-direita?

 

Romero Venâncio – O Concílio Vaticano II é o pomo da discórdia de toda a extrema-direita católica. Se há uma unidade na extrema-direita católica, é ser contra o Concílio Vaticano II. Todos os grupos de extrema-direita católica que conheço e estudo são contra o Concílio. Esse é o ponto comum entre eles.

O Concílio Vaticano II tem que ser entendido historicamente: ele surge a partir de uma profunda crise em que Pio XII deixou a Igreja, completamente fechada e encalacrada em si mesma. O grande drama do Papa João XXIII foi exatamente fazer com que a Igreja dialogasse com o mundo moderno. Ele não era um homem comunista, liberal; era um pastor, um bispo, um cardeal. Ele não tinha nada a ver com a esquerda, mas percebia que a Igreja estava em uma situação em que estava perdendo a fé – a preocupação maior dele era com a Europa.

 

 

Concílio Vaticano II – um aggiornamento

 

O Concílio Vaticano II vem justamente no sentido daquilo que os italianos chamam de “aggiornamento”, uma modernização, uma atualização. A ampliação do Concílio vai se dar nas Américas por conta da Conferência Episcopal de Medellín e a de Puebla, dez anos depois. Mas a ideia de as igrejas locais reafirmarem o Concílio e tentarem tirar as consequências pastorais variou: a Igreja da América Latina avançou um pouco mais, a da África também. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II era muito preocupado com a Igreja na Europa e as contradições que tinham lá.

O Concílio deve ser – e aí entra a minha opinião –, num primeiro momento, reafirmado, e, num segundo momento, ampliado. É isso que o Papa Francisco está fazendo. O tema da sinodalidade é o grande sinal de que Francisco percebe que o Concílio deve ser ampliado. Essa foi a prova definitiva. Ele percebeu uma coisa importante: é preciso uma perspectiva sinodal na Igreja. Francisco encarnou o horizonte que João XXIII não poderia encarnar em 1958, 1960. A busca por uma Igreja sinodal é uma ampliação do Concílio Vaticano II e concordo integralmente com a lógica do Papa Francisco.

 

 

IHU – Como garantir a unidade da Igreja diante de tantas disputas políticas e teológicas?

 

Romero Venâncio – Se você me perguntar isso no ano que vem, talvez eu mude, mas hoje estou um tanto pessimista com a unidade da Igreja – talvez eu esteja influenciado porque estou mergulhado em acompanhar a extrema-direita católica. Tem dias em que acordo e penso que estamos à beira de um cisma. Veja a maneira com que esses grupos falam: eles não dizem mais "papa"D; eles falam de “a Igreja de Bergoglio”. Não há mais papa. Eu até diria que a Igreja só não viveu um cisma por conta de eles serem minoria. No dia em que essa gente se tornar maioria, a Igreja estará dividida. Por enquanto, eles têm um foco na Flórida, nos EUA, na França, na Austrália, com um padre, dois padres. No caso dos EUA e da Inglaterra, recebem o apoio de dois bispos.

Vejo com certo pessimismo a unidade da Igreja. O Papa Francisco faz um esforço homérico para manter a unidade. Mas ele está perdendo terreno porque existe um fenômeno novo que não existia na época de João XXIII, que é as redes sociais. Com as redes sociais, as coisas se espalham com uma velocidade impressionante. Pelas redes sociais, em um dia, eu consigo saber dos Sedevacantista, do Centro Dom Bosco, dos Arautos do Evangelho. Os Sedevacantista fizeram um congresso no Paraguai, em Assunção, para discutir os destinos da Igreja. No mesmo dia, o pessoal dos Arautos do Evangelho concedeu uma entrevista para a rede Globo sobre a morte de uma moça. No mesmo dia, à noite, o CDB promoveu uma palestra com um psicólogo que defende uma psicologia cristã. Ele disse publicamente que Tomás de Aquino era o maior psicólogo e que as psicologias modernas são atrasadas, cientificistas e desconhecem Tomás de Aquino. Ele defendeu que o caminho da psicologia é o cristianismo. 

 

IHU – Esses grupos divergem em algum aspecto?

 

Romero Venâncio – Sim, eles têm algumas divergências. Por exemplo, o mais radical de todos é o movimento Sedevacantista porque eles são filhos de Marcel Lefebvre. O líder deles é o padre Rodrigo da Silva. Ele tem 38 anos e foi nomeado bispo nos EUA. Ele não tem paróquia, não tem diocese; é bispo de um seminário que tem 14 seminaristas, um padre e eles são ligados ao Ministério da Flórida. Eu fico pensando como a Igreja se permite uma loucura dessas. Eles são muito radicais e criticam o pessoal do CDB pelo fato de ser formado por leigos. O único padre que apoia o CDB é o Paulo Ricardo, mas tudo no CDB é conduzido pelos leigos.

Os membros do Sedevacantista criticam o protagonismo dos leigos porque acham que lugar de leigo é escutar padre. O movimento também tem normas sobre como homens e mulheres devem se vestir para ir à missa e defende que homens sentem de um lado e mulheres do outro. O pessoal do CDB já não entra nesse detalhe. Para eles, na missa tridentina, todos estão juntos. A divergência é isso. No fundo, divergência teológica não há: todos são contra o Concílio Vaticano II, contra o papado de Francisco, a qualquer renovação na Igreja, a ordenação de mulheres.

 

 

IHU – Como essas divergências afetam os católicos num ponto que é reiterado frequentemente pelo Papa Francisco: o querigma, o encontro pessoal e comunitário de cada um com Cristo?

 

Romero Venâncio – O Papa Francisco é jesuíta há 50 anos. 50 anos de exercícios espirituais inacianos deixam uma marca indelével para sempre na pessoa. O Papa é um jesuíta e  todo jesuíta é um estrategista, desde Inácio de Loyola. Jesuíta não faz algo para o qual não veja o projeto. O Papa Francisco é um homem muito marcado pelos exercícios espirituais, um homem de uma fé inabalável do ponto de vista da convicção pessoal. Ele defende isso porque acredita.

A extrema-direita católica não tem esse aspecto do fundamento da fé porque ela defende mais a tradição do que a convicção pessoal. Isso é uma coisa muito visível nos seus membros. Por exemplo, os documentos da Igreja são mais importantes para eles do que o que diz o bispo ou o padre. É muito importante aquilo que eles chamam de magistério da Igreja.

 

 

Mediação entre convicção pessoal e prática pastoral coletiva

 

O Papa Francisco quer fazer a mediação entre a convicção pessoal que cada um tem enquanto fé, o encontro pessoal com Deus, e a prática pastoral coletiva. É o que ele chama de dimensão comunitária da fé. Teologicamente, ele não separa a convicção querigmática pessoal da dimensão comunitária da fé. Esse é o ponto de equilíbrio mais importante da história da Igreja, e isso, para mim, era o núcleo da teologia da libertação. A extrema-direita católica quebra com isso. Os integrantes da extrema-direita católica também adoram chamar o Papa Francisco de protestante, um “travestido de luteranismo”.

 

 

IHU - Como esses grupos católicos de extrema-direita estão se relacionando com grupos de fora do país? Que figuras políticas de fora têm recebido apoio deles? Há alguma influência externa e pautas comuns?

Romero Venâncio – Todos eles têm influência externa. O padre Paulo Ricardo tem ligação com [Ignácio] Arsuaga, um leigo católico espanhol que esteve no Brasil um pouco antes das manifestações de 2013 para treinar um grupo de católicos religiosos sobre como combater as posições abortistas da esquerda e como descobrir qual é a pauta de teologia de gênero da esquerda.

Os Arautos do Evangelho já são internacionalistas. O caráter jurídico deles diz que são uma associação internacional de caráter pontifício. Eles têm casas no Brasil e na Europa. A origem do movimento Sedevacantista é Marcel Lefebvre, na França. Eles são ligados à Associação São Pio X, que tem sede na França e na Suíça; são lefebvrianos.

O pessoal do Centro dom Bosco tem um vínculo muito forte com os EUA, principalmente com Steve Bannon, que é católico. No início, eles propagaram essa relação. Depois dos escândalos, recuaram, e agora estão mais discretos.

Todos têm vínculos internacionais; e isso é o pior, porque esta é a primeira vez que a extrema-direita católica tem vínculos internacionais. O Integralismo não tinha, a Tradição, Família e Propriedade - TFP não tinha. O Integralismo tentou, mas Plínio Salgado sempre foi um nacionalista e Plinio Corrêa de Oliveira também. As organizações que nasceram no final dos anos 1990 e de 2000 para cá têm alguma relação internacional, inclusive de receber recursos internacionais. O pessoal do Sedevacantista recebe ajuda internacional do monsenhor Daniel Dolan no Seminário São José, em São Paulo.

 

 

IHU - De que modo a extrema-direita católica corrobora, adere ou participa do projeto político do presidente Bolsonaro? Como isso se manifesta, por exemplo, nas redes sociais e articulações políticas?

Romero Venâncio – Se manifesta abertamente. Não há meio termo, não há dúvidas. Os grupos de extrema-direita participam, colaboram e ajudam. Quase toda semana, o Centro Dom Bosco faz um programa defendendo Bolsonaro, chamando-o de “nosso presidente”.

 

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