Para o professor Sérgio Amadeu, doutor em Ciência Política, a estratégia adotada por Jair Bolsonaro na campanha eleitoral de 2018 não é nova. “Enquanto os partidos e os publicitários tradicionais estavam apostando ainda a maior parte de suas fichas na TV, a campanha de ‘Messias Bolsonaro’ há muito tempo já era praticada pelos dutos do WhatsApp”, aponta. Essa tomada dos dutos foi possível, segundo Amadeu, através da expertise de estrategistas que passaram pela experiência norte-americana. “Nas eleições de 2016 nos Estados Unidos havia acontecido um fenômeno semelhante. A diferença está no uso do WhatsApp e na cultura política dos dois países. No Brasil, infelizmente, não acertamos contas com nosso passado escravista, com a violência desmedida das elites econômicas, com os crimes da ditadura militar. Isso permite que a desinformação encontre um terreno mais propício no Brasil”, analisa. Assim, considera que, por aqui, se perdeu o que chama de “parâmetros de realidade”, e notícias falsas assumiram verniz de verdade.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor disseca toda a estratégia da extrema direita de Bolsonaro para chegar à vitória, destacando o papel da internet e das redes nesse processo. Estratégia que deve ser enfrentada com regulação dessas novas tecnologias, mas também com informação acerca das mesmas. “É preciso mostrar as dinâmicas e as finalidades dos sistemas algorítmicos. Esses dispositivos são performáticos e cada vez mais preditivos. Eles alteram os ambientes em que operam. Também se alimentam de dados pessoais em larga escala”, aponta. Além disso, considera essencial trabalhar na formação dos usuários, tirando-os de uma posição de passividade. “É preciso atuar nas redes criando comitês de esclarecimento e de reconstrução da história”, sugere. “Não podemos achar graça, ter pena ou simplesmente sentir raiva de tanta ignorância. Isso é o que a direita alternativa pretende. Precisamos melhorar nosso modo de falar e expor”, aponta.
Amadeu também destaca que esse processo deve continuar sendo combatido, pois a estratégia de Bolsonaro e seus aliados não cessa com a vitória nas urnas. Para o professor, toda a forma de gestão do novo governo vai estar estruturada nas redes e na circulação de informação nas mesmas. “Para aplicar a ‘pinochetização’ da economia brasileira, Bolsonaro precisará continuar a destruir os parâmetros da realidade”, exemplifica. E acrescenta: “ele não conseguirá convencer as pessoas que destruir a Previdência será bom para elas. Uma pessoa com o mínimo de informação não poderá achar bom ter que trabalhar mais 10 anos para receber uma aposentadoria ainda menor. Ele só poderá aplicar a sua agenda criando factoides e acentuando sua estratégia de desvirtuamento e desinformação”.
Sérgio Amadeu (Foto: Agência PT)
Sérgio Amadeu é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo - USP. Participou da implementação dos Telecentros na América Latina e da criação do Comitê de Implementação de Software Livre - CISL. Também foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação - ITI da Casa Civil da Presidência da República. É professor na Universidade Federal do ABC - UFABC. É autor de, entre outros, Software Livre: a luta pela liberdade do conhecimento (São Paulo: Perseu Abramo, 2004) e Comunicação Digital e a Construção dos Commons: redes virais, espectro aberto e as novas possibilidades de regulação (São Paulo: Perseu Abramo, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a adesão massiva dos brasileiros ao WhatsApp? E de que forma ele reconfigura as relações sociais?
Sérgio Amadeu – Já em 2016, a pesquisa realizada pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br) revelou que 51% dos brasileiros conectados acessavam as redes digitais exclusivamente pelo celular contra 43% que acessavam apenas pelo computador e 6% que realizavam o acesso por ambos os dispositivos. A popularização dos aparelhos móveis multimídia, a queda dos preços para adquiri-los, a expansão de áreas com wi-fi aberto, em comparação com os altos custos da banda larga fixa, levaram ao crescente uso da internet pelos aparelhos celulares. Nas camadas mais pauperizadas, por exemplo, 80% das pessoas conectadas do segmento D/E, em 2017, efetuavam o acesso à internet exclusivamente por aparelhos móveis.
Além disso, quando observamos o uso mais frequente ou quais as práticas mais comuns na internet, desde 2014, nos deparávamos com a troca de mensagens instantâneas. Em 2016, a utilização de clientes de comunicação imediata como o WhatsApp era uma prática cotidiana e comum de 89% dos brasileiros conectados. Esse número superava o uso das redes sociais, em 2016, que já era bem alto e atingia 78% das pessoas com acesso à internet.
O uso do WhatsApp era e é extremamente popular por ser muito útil e fácil de utilizar em aparelhos móveis. Grupos de amigos, de familiares, de estudantes de uma disciplina, de funcionários de um setor, de prestadores de serviço. A combinação da ampliação vertiginosa de aparelhos móveis com as facilidades do uso da comunicação instantânea pelo WhatsApp foi um estrondoso sucesso. E cada vez era maior quanto mais funcionalidades eram agregadas ao WhatsApp, tais como o recurso de mensagem de voz e a disseminação de vídeos.
Nas eleições de 2014 foi detectada uma distribuição massiva de informações falsas sobre a então presidente Dilma Rousseff, candidata à reeleição, via WhatsApp. Com o crescimento dessa aplicação, obviamente ela seria a grande ferramenta comunicacional em 2018. E foi. O WhatsApp é uma aplicação comunicacional que combina a mensagem ponto a ponto, privada, com a organização de grupos fechados e com limite de participantes. É diferente de uma rede social que permite a observação das postagens públicas. O WhatsApp é um duto encoberto de compartilhamento de mensagens.
Ao contrário da web e do uso que dela podemos fazer pelo computador, o WhatsApp possui uma arquitetura muito limitada. Ele gera um empobrecimento do uso da Internet, mas é uma pobreza de possibilidades compensada pela velocidade de compartilhamento. Você não pode programar livremente nada dentro do WhatsApp, mas isso é cada vez menos relevante para o discurso oficial das grandes corporações que tentam imbecilizar os usuários, fazendo a tecnologia se parecer com “um passe de mágica”.
IHU On-Line – O WhatsApp pode ser considerado a “grande mídia” das eleições de 2018? Por quê?
Sérgio Amadeu – Conforme argumentei há pouco, se a maioria das pessoas estava utilizando intensamente o WhatsApp, a disputa política caminharia também para lá. Uma disputa invisibilizada pelas características da plataforma. Uma disputa que beneficia a articulação e a distribuição de memes, de mensagens curtas e contundentes. Enquanto os partidos e os publicitários tradicionais estavam apostando ainda a maior parte de suas fichas na TV, a campanha de “Messias Bolsonaro” há muito tempo já era praticada pelos dutos do WhatsApp. Isso ajudava Bolsonaro e seu staff a falar atrocidades que não poderiam ser ditas em um canal aberto, nem em veículos de comunicação com o mínimo de seriedade. Também permitia que os discursos não tivessem a mínima coerência.
Se Bolsonaro, no primeiro turno, tivesse 5 minutos de TV, ele provavelmente seria superado por outro candidato de direita, pois ele não tinha consistência para discursar em muitos programas. No segundo turno, era diferente. A TV foi usada para consolidar a desinformação que havia sido construída pelo WhatsApp e pelos diversos apoiadores no YouTube. Qualquer problema, bastaria apelar para o antipetismo e para o anticomunismo que queria destruir a família e os ditames de Deus. Mas no WhatsApp você pode dirigir uma mensagem para alguns grupos e não para outros.
Bolsonaro é um fenômeno da internet. Sem as redes distribuídas e o WhatsApp, ele teria mais dificuldade para orquestrar a campanha que o levou à presidência. A violência e agressividade vazia, as ideias obscuras e a ignorância em assuntos básicos, assumida abertamente por Bolsonaro, o tornavam uma caricatura do político. Então o que aconteceu? Como pôde vencer as eleições com os votos de tantos escolarizados?
O processo eleitoral não pode ser entendido olhando apenas os meses de campanha. A mídia, em especial a Rede Globo, grupos do Ministério Público e do Judiciário partidarizados e algumas lideranças muito influentes das elites econômicas decidiram promover um processo de exageros e de releitura histórica sem limites, sem respeito aos fatos, para conseguir reconquistar a máquina de Estado para suas velhas elites, embaladas pelo sonho neoliberal. Assim, criaram narrativas inaceitáveis no Estado de Direito para condenar petistas e poupar aliados, mas a cada exagero era a democracia e as instituições que estavam sendo corroídas. Transformaram um partido que havia se tornado palatável às elites no partido “mais corrupto” do país. Aproveitaram a acomodação do PT e sua ilusão com as elites patrimonialistas do Brasil para mostrá-lo como semelhante a políticos como Sarney [1] e Eduardo Cunha [2]. Era muito comum integrantes das camadas médias afirmarem que o PT havia trazido a corrupção para o Brasil, desconsiderando a história.
Esse processo era para destruir a esquerda e levar ao governo as elites políticas de sempre, em especial o grupo do PSDB. Não contavam com o que Foucault [3] chama de acontecimento. Não esperavam que nos Estados Unidos a direita alt-right crescesse tanto e que um Donald Trump, um Robert Mercer [4] e um Steve Bannon [5] pudessem ter interesse direto no Brasil. No processo eleitoral, o WhatsApp disseminou mensagens que acentuaram o processo de destruição dos parâmetros de realidade.
Essa é a estratégia da direita alt-right. O embate é de dogmas. É o “nós” contra “eles”. A síntese disso é a entrevista que Bolsonaro deu à TV Aparecida a poucos dias da campanha. O candidato afirmou que “política não se discute”. Essa aberração sintetizava uma eleição em que não ocorreu debates. Os estrategistas de Bolsonaro lançavam nos dutos do WhatsApp um conjunto assustador de desinformação e promessas contraditórias do seu candidato. Empresários engajados na campanha bolsonarista pagaram pessoas para atuar fora do comitê de campanha e distribuir tais mensagens em milhares de grupos de WhatsApp.
Quando alguém queria discutir com um apoiador de Bolsonaro, o antídoto estava pronto desde antes da campanha e se limitava a três tipos de resposta: primeiro, isso não é verdade, é fake news contra nosso candidato; segundo, isso é coisa do PT, ou a variante, “não importa nada disso, pois nada é pior que o PT”; terceiro, isso é apenas um discurso de campanha, Bolsonaro no governo “não fará nada disso”.
Antes de o candidato eleito ser esfaqueado, muitas pessoas que buscavam debater as eleições diziam que haviam abandonado os seus grupos de família e de velhos amigos, pois ali não adiantava conversar. Foi exatamente nesses grupos de WhatsApp que foi realizada a destruição de parâmetros da realidade e a transformação da política em embate de dogmas. Anular o debate racional era a única chance de Bolsonaro vencer as eleições. O duto oculto do WhatsApp era o dispositivo perfeito para isso.
IHU On-Line – No Brasil, depois de denúncias de disseminação de notícias falsas, o WhatsApp informou que limitou o número de disparos de mensagem. O que isso significa? Qual a eficácia dessa ação para evitar a disseminação das chamadas fake news?
Sérgio Amadeu – O WhatsApp, o Facebook e o Google recentemente divulgaram que Bolsonaro havia gasto poucos reais na sua campanha oficial. A informação das plataformas não está correta, pois se limitou ao comitê do candidato. As principais operações de campanha de Bolsonaro foram realizadas fora do comitê formal de campanha. Não é verdade que o WhatsApp evitou o disparo massivo na campanha. Empresários pagaram disparos massivos que eram realizados a partir da compra de cadastro de empresas aqui no Brasil e no exterior. Várias mensagens enviadas para grupos e pessoas no Brasil vinham de números dos Estados Unidos e da Europa. A Folha de S. Paulo demonstrou claramente o pagamento ilegal efetuado para algumas empresas que usam o WhatsApp para distribuir mensagens massivas [6]. Esses pagamentos foram realizados por empresários bolsonaristas para distribuir desinformação contra o candidato Fernando Haddad.
Mesmo hoje você consegue encontrar, em uma simples busca no Google, inúmeras empresas que vendem ferramentas de disparo massivo no WhatsApp e outras que vendem cadastros de telefone por segmento, cidade e estado. Mas muitas agências possuem banco de dados que permitiam atuar com as técnicas de microtargeting, ou seja, com uma estratégia de marketing que usa dados do consumidor e dados demográficos para identificar o perfil de indivíduos específicos ou de grupos muito pequenos com ideias semelhantes com a finalidade de influenciá-los. Por isso, sua tia só recebia mensagens diferentes falando do “kit gay”. Ela reproduzia, pois temia muito que sua família tivesse um governo que obrigasse suas crianças a se tornarem gays. Outras pessoas recebiam mensagens com a linha “kit vagabundo”, ou seja, pessoas incomodadas com o Bolsa Família, com as cotas étnico-raciais nas universidades. Havia uma segmentação que permitia distribuir com eficácia exageros, opiniões transformadas em fatos, descontextualizações e simplesmente mentiras.
O WhatsApp não pode ser responsabilizado pela existência de grupos que disseminam o discurso de ódio, mas uma vez informado sobre os fluxos de desinformação criminosa, ele deveria agir. Mas não agiu. E não foi para proteger a liberdade de expressão. Devemos impedir a censura, mas não considero possível construir uma democracia com base em valores não democráticos. O discurso de ódio é como um ácido para a democracia. O racismo, a homofobia, a misoginia, valores da direita alt-right norte-americana não podem ser considerados democráticos porque propõem a eliminação do outro, a proibição da diversidade.
Repare que se em 2016 um candidato a prefeito dissesse que “não entende nada de orçamento” como uma vantagem, que iria “matar seus opositores” e que “uma mulher poderia até ser competente”, certamente ele teria muita dificuldade de se eleger. Em dois anos ocorreu uma contaminação da esfera pública. Em 2018, para ser eleito, a campanha de Bolsonaro teve que destruir parâmetros de realidade. E para governar, Bolsonaro deverá continuar com estratégia de desinformação criada pelos teóricos da alt-right. Não é por menos que um dos principais memes que circulam nos grupos de WhatsApp pós-eleições diz que “Bolsonaro irá demorar para consertar o país, pois o comunismo destruiu nossa nação, dominando várias instituições”. Brasil comunista? Sim, a Globo e o conservador The Economist são chamados de comunistas também.
O Brasil não tem nem um Estado de bem-estar social e é qualificado como comunista. Isso não cabe no conceito de fake news, isso é desinformação. Isso precisa ser desmontado com a reconstrução dos parâmetros da realidade. Não podemos ouvir o futuro ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro falar que a “Europa é um vazio cultural” e ficar calados. É preciso mostrar os fatos, separá-los de opiniões, de preferências e de vontades.
IHU On-Line – O que a campanha de Jair Bolsonaro via redes sociais nos incita a pensar acerca da necessidade de regulação dessas novas mídias, especialmente o WhatsApp? E como trabalhar para que essa regulação não se torne cerceamento de liberdade de expressão?
Sérgio Amadeu – As redes sociais on-line e aplicações como WhatsApp precisam ser regulamentadas. Precisamos garantir as liberdades fundamentais, a liberdade de expressão, de opinião, de navegação anônima, de proteção da privacidade. Quem está quebrando essas liberdades atualmente são as plataformas. Elas praticam a censura privada. Não podemos mais aceitar que uma plataforma como o Facebook, que se coloca como universal e como neutra diante dos discursos, que se apresenta como um importante espaço da esfera pública, possa definir regras de debates, bloqueio e remoção de conteúdos, acima da nossa Constituição.
Devemos seguir os princípios do Decálogo do Comitê Gestor da Internet para uma governança democrática da rede. Facebook, Google e demais plataformas precisam ser reguladas publicamente e não privadamente. Devemos ter princípios e mecanismos para bloquear processos de desinformação. Quando vejo uma startup do ódio disseminando um post que afirma que as escolas infantis distribuíram um kit para ensinar as crianças a se tornarem gays, isso não é opinião. Isso é um fato que nunca existiu. Isso é um desvirtuamento da realidade com a finalidade de criar uma adesão política a determinadas posições. Uma vez que o Judiciário determine a retirada desses conteúdos, os algoritmos das plataformas devem ser capazes de removê-los e informar aqueles que compartilharam os motivos da remoção e da desinformação. É preciso realizar um processo democrático de definição da regulação das plataformas.
IHU On-Line – Hoje há empresas especializadas em seguir pessoas nas redes sociais para tentar mapear seus comportamentos. Como funcionam esses sistemas e quais seus efeitos sobre a formação de opinião? Como a legislação brasileira regula esses serviços?
Sérgio Amadeu – As plataformas de relacionamento on-line vivem de dados pessoais. Tudo que fazemos, observamos, escrevemos, apagamos, toda nossa navegação é armazenada, processada e analisada. O objetivo é criar um perfil de nosso comportamento, compreender nossos interesses e vontades para ser o mais preditivo sobre os nossos próximos passos. As plataformas possuem sistemas algorítmicos baseados em aprendizagem de máquina que visam aprender com nosso comportamento para oferecer o que nos agrada e até antecipar os nossos gostos.
Eli Pariser [7] chamou esse processo de bolhas realizadas por filtros, eu prefiro chamar de amostras abertas. O tempo todo, essas informações do nosso perfil são vendidas para empresas e agências que querem modular o comportamento da amostra adquirida. A noção de modulação aqui é fundamental. As plataformas buscam modular o nosso comportamento e para isso precisam nos conhecer cada vez mais. Essa modulação encurta, reduz nossa visão, nossa percepção às alternativas que os sistemas algorítmicos nos oferecem e que foram negociados por brokers de dados.
A voracidade de coleta de dados é tamanha que empresas como Google e Facebook, além dos milhões de gigabytes que possuem de seus usuários, também possuem empresas de rastreamento da navegação dos usuários fora das suas plataformas. Empresas que usam cookies e scripts que são inseridos nas máquinas das pessoas que navegam pela internet.
No Brasil, tivemos um grande avanço ao aprovarmos a Lei de Proteção de Dados, inspirada na legislação europeia. Ela é um avanço, pois exige o consentimento para que nossos dados sejam manipulados. Todavia, o presidente Michel Temer vetou a autoridade que deveria fiscalizar a aplicação da lei. Isso a enfraquece, pois devido à complexidade dos aparatos que utilizam dados, a autoridade especializada na proteção dos dados é fundamental. Todavia, a lei aprovada tem absurdos como a exclusão da necessidade de consentimento para quem coleta dados para a proteção do crédito, ou seja, o sistema financeiro ficaria fora do alcance da lei.
Além disso, a lei de proteção de dados não é suficiente para tratar das especificidades dos sistemas algorítmicos e de processos massivos de desinformação. Por isso, precisamos regulamentar as plataformas on-line seguindo o princípio da transparência, da responsabilidade e da clareza necessária aos seus sistemas algorítmicos.
IHU On-Line – Ao longo da campanha eleitoral de 2018, constatou-se que os grupos de WhatsApp que mais põem em circulação notícias falsas são os grupos familiares. Como compreender esse processo?
Sérgio Amadeu – Conforme relatei antes, os grupos de WhatsApp são dutos fechados. Somente a empresa que controla a plataforma possui o mapa dos fluxos das mensagens. Ela possui os metadados das mensagens enviadas. Os grupos de família eram infectados com desinformação a partir de um ou mais de seus membros. Esses familiares eram atingidos diretamente pelos disparos controlados por agências de microssegmentação ou porque integrava um grupo de apoiadores de Bolsonaro. Diversos grupos de criadores foram pagos para criar os memes, vídeos e mensagens com uma estética específica para parecer que foram produzidas pela minha tia.
Nas eleições de 2016 nos Estados Unidos havia acontecido um fenômeno semelhante. A diferença está no uso do WhatsApp e na cultura política dos dois países. No Brasil, infelizmente, não acertamos contas com nosso passado escravista, com a violência desmedida das elites econômicas, com os crimes da ditadura militar. Isso permite que a desinformação encontre um terreno mais propício no Brasil. Nos Estados Unidos, Trump jamais defenderia uma ditadura militar como solução para a sua nação. Jamais bateria continência para outra bandeira. Isso seria combatido até mesmo por setores da extrema direita norte-americana. Para eles, o modelo autoritário deve ser aplicado na terra dos outros. No Brasil, Bolsonaro cultuava a destruição da democracia, a violência “na ponta da praia” (jargão militar para o fuzilamento de opositores do regime militar) e o entreguismo mais grotesco.
IHU On-Line – Qual a sua avaliação quanto à Lei Eleitoral brasileira, especialmente no diz respeito aos usos e financiamentos do chamado marketing digital?
Sérgio Amadeu – A lei eleitoral brasileira é completamente equivocada e insuficiente para regular a campanha nas redes. Ao permitir o impulsionamento pago de conteúdos nas redes, além de privilegiar as plataformas estrangeiras cujo funcionamento é operado por algoritmos opacos e inacessíveis, favoreceu o poder econômico. A campanha paga na Internet não deveria ser permitida. Isso facilitaria a detecção de irregularidades. A compra de dispositivos e de distribuidores de conteúdos estaria proibida não somente para os candidatos, mas para todos que quisessem interferir nas eleições.
Mais grave que a lei eleitoral é a postura do Tribunal Superior Eleitoral - TSE. Diante de tantas evidências de violações da legislação em vigor, a Justiça Eleitoral manteve a dinâmica de seletividade. O “combate às fake news” proposto pelo próprio TSE não foi feito porque descontentaria setores do Exército. Afinal, o Brasil está já há algum tempo sob tutela militar. Quem praticou a desinformação em massa foi a campanha de um candidato que tem como vice um general da reserva e que é apoiada por militares de alta patente. Isso não apaga o fato de que a campanha de Bolsonaro violou o artigo 57-B, que em seu parágrafo terceiro dizia “é vedada a utilização de impulsionamento de conteúdos e ferramentas digitais não disponibilizadas pelo provedor da aplicação de internet, ainda que gratuitas, para alterar o teor ou a repercussão de propaganda eleitoral, tanto próprios quanto de terceiros”.
IHU On-Line – O senhor tem dito que o debate racional foi suprimido nas eleições de 2018 no Brasil. Por quê? E quais os desafios para restabelecer esse debate?
Sérgio Amadeu – A estratégia de Bolsonaro não é brasileira. Ela vem de fora. Ela segue a estratégia maior da direita alternativa norte-americana, a alt-right. Seus gurus são Richard Bertrand Spencer, líder da supremacia branca, Steve Bannon (ex-diretor da Cambridge Analytica e do Breitbart News), Robert Mercer (megainvestidor financiador da extrema direita e dos neofacistas em todo o planeta), entre outros. Eles pregam a destruição do pensamento crítico, do debate racional com base em fatos e pregam a afirmação de dogmas. Querem anular a história porque defendem que ela só serve aos interesses dos marxistas. Na realidade, defendem a anulação do debate e sua substituição pelas crenças e convicções do homem conservador comum.
No Brasil, conseguiram interditar o debate. Nos Estados Unidos conseguiram parcialmente, em algumas regiões. O candidato vitorioso fugiu de todos os debates e foi orientado a aparecer pouco e em ambientes controlados. Isso é compreensível. Bolsonaro não pode sustentar um debate sobre sua visão econômica, pois não tinha e não tem conhecimentos básicos de economia. Tem apenas crenças. Ele seria uma tragédia discutindo qualquer política pública, até mesmo a política de segurança. Com tão pouco repertório e conhecimento, só restava a Bolsonaro deformar a realidade, lançar ondas de desinformação até desvirtuar completamente o cenário da disputa. Desse modo, destruiu os parâmetros da realidade e, assim, a única coisa que deveria valer seria a crença de cada um. Dessa forma, caberia a ele reforçar os preconceitos e os temores mais profundos.
Isso não acabou com as eleições. Ele continuará mantendo suas equipes de desinformação, principalmente no WhatsApp. Um exemplo importante aconteceu recentemente com sua ofensiva contra os médicos cubanos. Como sabe que o programa atende a população mais carente e que pode ser acusado pelo abandono de 1.600 municípios, Bolsonaro é orientado a falar que libertou os médicos da escravidão de Cuba. Curiosamente, esse mesmo Bolsonaro tentou revogar a emenda constitucional 81/2014, que prevê o confisco de propriedades que tenham mão de obra escrava.
Precisamos gradativamente reconstruir os parâmetros da realidade. É preciso atuar nas redes criando comitês de esclarecimento e de reconstrução da história. Não podemos achar graça, ter pena ou simplesmente sentir raiva de tanta ignorância. Isso é o que a direita alternativa pretende. Precisamos melhorar nosso modo de falar e expor. Não podemos ver um primo, uma irmã ou tio falando que a Klu-Klux-Klan (KKK) é de esquerda sem mostrar que isso não é real. Precisamos fazer pacientemente o esclarecimento necessário, pois trata-se de desconstruir um processo de esquizofrenia coletiva. Se você pegar os vídeos do próprio Richard Bertrand Spencer, líder da supremacia branca, aliada da KKK, você verá que eles se chamam de forças de direita. É preciso calma para desmontar o desvirtuamento da realidade. Será preciso mostrar a fonte original e outras que sejam contundentes. Lembrem-se de que mesmo que o líder da KKK participe de eventos da extrema direita norte-americana, seu familiar não irá aceitar facilmente que ele foi enganado. Mesmo que ele não reconheça, confrontá-lo com a realidade é decisivo.
Para aplicar a “pinochetização” da economia brasileira, Bolsonaro precisará continuar a destruir os parâmetros da realidade. Ele não conseguirá convencer as pessoas que destruir a Previdência será bom para elas. Uma pessoa com o mínimo de informação não poderá achar bom ter que trabalhar mais 10 anos para receber uma aposentadoria ainda menor. Ele só poderá aplicar a sua agenda criando factoides e acentuando sua estratégia de desvirtuamento e desinformação.
IHU on-Line – Quais os desafios para a formação cidadã do usuário de internet, especialmente de redes sociais, para que não se torne refém de mecanismos que o condicionem e limitem sua visão de mundo?
Sérgio Amadeu – É preciso mostrar as dinâmicas e as finalidades dos sistemas algorítmicos. Esses dispositivos são performáticos e cada vez mais preditivos. Eles alteram os ambientes em que operam. Também se alimentam de dados pessoais em larga escala. Grande parte deles quer prever nossos próximos passos, nossos gostos, nossos afetos. Muitas pessoas subestimam essas tecnologias de modulação de comportamento. Precisamos mostrar suas implicações. Acredito em processos de formação e aprendizado que tornem as pessoas mais críticas e menos ingênuas diante das plataformas e seus mecanismos.
Também considero fundamental iniciarmos um amplo processo de regulação dessas plataformas. Devemos envolver todos os segmentos da sociedade neste debate que deve ser democrático e muito além da técnica. Por fim, cada vez mais será fundamental discutirmos a ética. Sistemas sociotécnicos incorporam a ética de seus formuladores. Algoritmos que se alteram e aprendem com os novos dados captados devem ter limites éticos em suas operações. A ética é que colocará parâmetros nesses processos. Caso ela seja descartada, tudo mais falhará.
Notas:
[1] José Sarney [José Sarney de Araújo Costa] (1930): político nascido no Maranhão, 31º presidente do Brasil (1985-1990). Foi governador do Maranhão e presidente do Senado Federal por quatro vezes. No dia 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral elegeu a chapa Tancredo Neves/José Sarney para a presidência da República, encerrando o ciclo militar instaurado com o golpe de 1964. Na semana da posse, Tancredo apresentou quadro inflamatório com dores abdominais, diagnosticado como apendicite. Ele descartou qualquer internação ou intervenção cirúrgica antes da posse. Na noite de 14 de março de 1985, o agravamento do quadro clínico exigiu uma cirurgia de urgência. Sarney tomou posse como vice-presidente, assumindo a presidência da República interinamente em 15 de março de 1985. Tancredo morreu em 21 de abril, e Sarney assumiu oficialmente o cargo. (Nota da IHU On-Line)
[2] Eduardo Cunha (1958): economista, radialista e político brasileiro. É evangélico neopentecostal. Exerceu o cargo de deputado federal entre fevereiro de 2003 e setembro de 2016, quando foi cassado pelo plenário da Câmara dos Deputados. Está sendo investigado pela Operação Lava Jato e foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal. Acusado de mentir na CPI da Petrobras, teve contra si aberto processo de cassação por quebra de decoro parlamentar. Em 3 de março de 2016, o STF acolheu por dez votos a zero, em unanimidade, a denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra Eduardo Cunha por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, tornando-o réu neste tribunal. Em 5 de maio de 2016, o plenário do STF unanimemente manteve a decisão do então ministro Teori Zavascki, que determinou o afastamento de Cunha de seu mandato de deputado federal e consequentemente do cargo de presidente da Câmara dos Deputados. Está preso desde outubro de 2016. (Nota da IHU On-Line)
[3] Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte), situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004; edição 203, de 6-11-2006; edição 364, de 6-6-2011, intitulada 'História da loucura' e o discurso racional em debate; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-9-2010, e edição 344, Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação, Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line)
[4] Robert Mercer (1946): é um cientista da computação nos Estados Unidos que trabalha com inteligência artificial a partir de análises de bancos de dados. A empresa Cambridge Analytica é de propriedade de sua família. (Nota da IHU On-Line)
[5] Steve Bannon (1953): é um assessor político estadunidense que serviu como assistente do presidente e estrategista-chefe da Casa Branca no governo Trump. Como tal, participou regularmente do Comitê de Diretores do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, entre 28 de janeiro e 5 de abril de 2017, quando foi demitido. Antes de assumir tal posição da Casa Branca, Bannon foi diretor executivo da campanha presidencial de Donald Trump, em 2016. (Nota da IHU On-Line)
[6] O IHU, na seção Notícias do Dia em seu sítio, publicou detalhes do caso. Acesse aqui. (Nota da IHU On-Line)
[7] Eli Pariser (1980): é o cofundador e chefe executivo da Upworthy, presidente da MoveOn.org, cofundador da Avaaz.org e autor do best-seller The Filter Bubble. Ele é um ativista político e da internet, e seu último trabalho mostra como a informação é personalizada na internet por filtragens de conteúdo. (Nota da IHU On-Line)