Cristofascismo, uma teologia do poder autoritário: a união entre o bolsonarismo e o maquinário político sócio-religioso. Entrevista especial com Fábio Py

O modelo de governança do presidente Bolsonaro é sustentado pelo fundamentalismo religioso, diz o teólogo

Foto: Divulgação

Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos | 01 Julho 2020

O uso da linguagem cristã, a apropriação do cristianismo e o aceno que o presidente Bolsonaro faz a determinados grupos religiosos, especialmente aos evangélicos e aos católicos conservadores que formam a sua base eleitoral, indicam uma novidade em relação a outros momentos em que chefes de Estado e líderes religiosos estiveram lado a lado. O traço distintivo desta relação é que “o bolsonarismo se constrói a partir e junto às máquinas sócio-religiosas” e o “maquinário político sócio-religioso de Edir Macedo, Silas Malafaia, R. R. Soares e Valdomiro Santiago” está voltado às demandas do bolsonarismo, diz o teólogo Fábio Py à IHU On-Line. A partir dessas relações, o presidente instituiu o que Py vem chamando de “cristofascismo”, uma “forma de governança baseada no fundamentalismo que pratica o ódio aos diferentes”. 
 
De acordo com o pesquisador, Silas Malafaia, pastor pentecostal da Assembleia de Deus, embora seja um “agente quase desprezado” nas análises sobre o bolsonarismo, é não só o principal articulador do presidente no meio religioso, como alguém que tem o potencial de atrair para a base bolsonarista um público que ainda está distante: os jovens. “No evento The Send Brasil, que é uma reaproximação dos movimentos evangélicos do sul dos EUA com o BrasilMalafaia foi um dos pregadores e Bolsonaro também participou. Este é um evento de renovação espiritual dos jovens brasileiros e ocorreu em três grandes estádios, em três regiões do Brasil, simultaneamente, com mais de cem mil jovens. Imagine o poder desse movimento. Na fala de Malafaia, enfatizou-se que os jovens não deveriam perder de vista a importância de seguir o evangelho de verdade, não se curvando aos humanismos e aos esquerdismos das universidades do Brasil”, relata. 
 
Fábio Py interpreta a presença do bolsonarismo entre evangélicos e católicos conservadores como uma consequência do afastamento e da recusa de incluir a religião no debate público. A aproximação destes grupos com Bolsonaro, menciona, pode ser compreendida como um “pagamento da falta de diálogo”. “A esquerda e grupos de reflexão mais crítica quase sempre desprezaram a religião e, principalmente, os setores evangélicos. Eles são tratados quase sempre como manipulados ou dentro do esquema do senso comum”, afirma.  
 
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, o teólogo também analisa a leitura que os evangélicos fazem da Bíblia, especialmente do Antigo Testamento, e o impacto destas narrativas nas periferias brasileiras. “No cotidiano da periferia é este imaginário que importa: Isaac lutar contra o anjo, e o profeta lutar tanto a ponto de ir contra Deus, porque, ao lutar tanto, ele mobiliza Deus. A Universal usa essa linguagem o tempo todo, dizendo: você vai orar tanto, tanto, tanto, que Deus vai abrir mão e vai permitir... É uma nova forma de acesso. É escandaloso na teologia tradicional protestante, Deus se curva diante da luta das pessoas, mas... Essa caminhada da indicação da guerra cultural e da guerra bíblica é muito importante para a formação social da periferia”. 
 
Apesar da proximidade de líderes religiosos com o presidente, os sinais de desgaste já começaram a aparecer e, desde o início da pandemia de covid-19, alguns grupos estão reavaliando o apoio incondicional a Bolsonaro. “Algumas estruturas tradicionais, como os protestantes tradicionais, já estão fazendo uma crítica do alinhamento com o governo. Os presbiterianos e os metodistas começaram a fazer uma crítica das ações do presidente durante a pandemia, principalmente por não seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde - OMS”, informa. 

Fábio Py (Foto: Arquivo pessoal)

Fábio Py é doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense - UENF. Py é autor de Pandemia cristofascista (São Paulo: Editora Recriar, 2020). O livro online está disponível aqui.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Políticos se utilizam da religião para ampliar sua base eleitoral ou religiosos se aproximam dos políticos por conta dos interesses das suas igrejas? 

Fábio Py – Os dois fenômenos ocorrem. A formação brasileira se deu a partir de um elemento religioso: a Companhia das Índias Ocidentais foi uma megacorporação capitalista que demandou a colonização brasileira, feita pedagogicamente a partir das ordens religiosas católicas. Vale a pena lembrarmos o papel do jesuitismo, do beneditismo, dos carmelitas na formação brasileira. Há um processo que implica no ajustamento da geografia e na instrumentação cultural feita pela Igreja Católica à época.

No meio evangélico isso é mais recente, remonta aos anos 1930, com a Confederação Evangélica Brasileira - CEB, que também tem uma preocupação política. Neste período, surgiram os primeiros religiosos evangélicos que pleitearam indicações políticas. Um exemplo disso é a eleição de Guaracy Silveira, primeiro evangélico protestante eleito e reeleito para deputado [em 1934 e 1946].

Posteriormente houve um processo de rearticulação da estrutura militar e a eleição de evangélicos ressurgiu na Nova República, quando passa a haver um interesse muito forte das grandes estruturas religiosas evangélicas nas eleições. Nesse contexto, as pautas de religião e política começam a se confundir, embora essas esferas nunca tenham sido separadas, como os pensadores da modernidade cismam em traçar.

A partir da Nova República [1988], as grandes estruturas evangélicas – os pentecostalismos e os protestantes tradicionais, como os batistas – começaram a se preocupar com as eleições. [Nilson] Fanini teve uma preocupação muito clara em eleger Arolde de Oliveira, que é um magnata da comunicação evangélica. O bispo Macedo também começou a se preocupar com as eleições a partir de 1988. Então, as relações religiosas e políticas nunca foram separadas, elas estão ligadas umbilicalmente.

IHU On-Line – Considerando que estas relações são históricas, a aproximação e o aceno que políticos como Trump e Bolsonaro fazem a grupos religiosos representam uma continuidade destas relações ou alguma novidade?

Fábio Py – São as duas coisas: existe uma continuidade – Macedo foi ligado às bases do petismo e a Universal foi uma das últimas instituições da sociedade civil a se desvencilhar de Dilma Rousseff –, mas também existe uma novidade.

 

Máquinas sócio-religiosas pró-Bolsonaro

 

O bolsonarismo se constrói a partir e junto às máquinas sócio-religiosas e a Universal tornou-se uma máquina sócio-religiosa pró-Bolsonaro. Ele recorre ao maquinário político sócio-religioso de Edir Macedo, Silas Malafaia, R. R. Soares e Valdomiro Santigo e, hoje, todas essas engrenagens estão voltadas às demandas do bolsonarismo. É nesse contexto de articulação cristã que se deve reconhecer que nunca na história do Brasil um governo se assumiu “extremamente cristão”. Bolsonaro diz que o “Brasil é laico, mas o presidente é cristão”, o que é um acinte. Esse discurso é muito pouco problematizado em termos oficiais e nas instituições do Estado brasileiro. Atualmente, isto chama atenção: o governo Bolsonaro traz para si só a sua base social, que é absolutamente religiosa. Nesta base estão os cristãos católicos conservadores, representados pelo padre Paulo Ricardo, e os evangélicos que também compartilham das mesmas pautas, como o pastor da Michelle [Bolsonaro], Josué Valandro Jr., de formação batista.

 

Campanhas de jejum

 

Estamos desprezando o fato de que pessoas ligadas ao presidente, como Valandro Jr. e Malafaia, estejam promovendo campanhas de jejum nas redes sociais. Eles não se mobilizam via discussão política comum, ou das humanidades, mas sim, via religião. Isso pode ser exemplificado quando se percebe que o governo Bolsonaro se sustenta em cima de muitas campanhas de oração desses grupos que o apoiam.

O que o Partido Republicano Progressista - PRP fez na campanha eleitoral de 2018 foi impressionante. Em Campos dos Goytacazes, colocavam entre 200 e 300 pessoas, por dia, distribuindo panfletos pró-Bolsonaro e [Wilson] Witzel no Rio de Janeiro. Em um município de 500 mil habitantes, imagine o impacto disto: no mês das eleições, diariamente duzentas pessoas se espalhavam pela cidade distribuindo panfletos de campanha. Os partidos conseguem no máximo 50 pessoas por dia; eles, pelo acesso da IURD [Igreja Universal do Reino de Deus], conseguiram centenas. Ou seja, existiu um grande maquinário eleitoral pró-Bolsonaro junto às estruturas religiosas que o apoiaram.

Nesse caso não estou me referindo às pequenas estruturas, que não estão assim tão ligadas ao bolsonarismo. O meio católico e, especialmente, o meio evangélico, que é muito malvisto pelos analistas, não são coesos. As grandes estruturas estão juntas com o bolsonarismo, mas nas igrejas comunitárias, das roças e favelas, essa vinculação é mais complexa.

IHU On-Line – O que explica a adesão desses grupos religiosos ao projeto político do presidente?

Fábio Py – Há um ajuste de pautas. Acompanho Bolsonaro há algum tempo, dentro do Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense - UENF, e investiguei a dinâmica religiosa em torno dele ao longo dos quatro anos que antecederam as eleições. Neste período, ele foi fazendo um ajustamento religioso: batizou-se no Jordão, casou-se com uma religiosa batista, e foi ganhando características mais próximas ao público evangélico.

Ele diz que é católico, mas que se converteu, ou seja, foi se ajustando tanto ao público católico conservador como aos evangélicos, porque esses grupos estão cada vez mais nas mídias, nas grandes cenas, porque têm TVs. Ele compreendeu esse lugar como sendo um espaço de construção da sua candidatura, da sua eleição e do seu próprio governo. Bolsonaro sempre foi tratado como alguém da extrema direita e, ao longo do tempo, foi se ajustando às pautas evangélicas.

Esse ajuste tem a ver com as negociações que desenvolveu ao longo da campanha com essas estruturas. Lembro que na semana anterior à eleição de 2018, no domingo, o bispo Macedo disse que iria votar em Bolsonaro; na segunda-feira, os metodistas falaram que iriam votar nele; depois os batistas e assim foi durante a semana toda. Na sexta-feira antes da eleição, a grande maioria das estruturas evangélicas se posicionou a favor de Bolsonaro.

Então, há um acoplamento parcial entre as pautas do bolsonarismo e esse setor conservador evangélico e católico; contudo, a história nos mostra que esse ajuste é tênue, pois essas estruturas já se vincularam ao petismo e agora se vinculam ao governo Bolsonaro. Edir Macedo é um grande articulador político e creio que eles querem ter um projeto de poder, e o Crivella significa isso.

IHU On-Line – Como foi no petismo ou agora a relação é diferente?

Fábio Py – Sim, como foi no petismo, mas esse encaixe atual é mais denso com as estruturas religiosas porque, no petismo, algumas dessas estruturas não estavam tão juntas. Por exemplo, os batistas (da CBB - Convenção Batista Brasileira) não assumiram as pautas de Lula e Dilma, tampouco o presbiterianismo (IPB - Igreja Presbiteriana do Brasil). Contudo, hoje pode-se dizer que ambas as estruturas se relacionam de alguma forma com o governo Bolsonaro. O secretário executivo da CBB, Sócrates Oliveira, que é o grande mobilizador institucional dos batistas, frequenta atualmente a igreja de Bolsonaro e Michelle. Ou seja, essas relações são muito próximas.

No processo eleitoral também houve uma mudança em relação ao apoio a Bolsonaro: nas eleições anteriores, se fazia um processo denso de quem seriam os candidatos, mas na última eleição os líderes evangélicos esperaram o último momento – e isso foi genial – para intensificar a campanha eleitoral. O processo padrão era intensificar a campanha um ou dois meses antes e, com isso, as pessoas tinham tempo para ler sobre os candidatos, conversarem, e a consequência era não aderirem necessariamente às indicações dos bispos, pastores ou apóstolos. Mas, como os pastores intensificaram a campanha mais fortemente na semana da eleição, o eleitor das igrejas não teve um momento para formular uma crítica.

Por que Witzel foi eleito? De forma geral, porque na semana anterior à eleição houve, nas igrejas, uma grande operação de campanha com seu nome. Ora, eles treinaram 20 anos para fazer isso e conseguiram: elegeram Crivella, Witzel, Bolsonaro. Ninguém conhecia Witzel, mas eles ajudaram significativamente a elegê-lo. O que acontece é que as estruturas religiosas entraram na última hora e por isso tiveram mais fôlego em relação ao que estava sendo feito antes. Se essa hipótese estiver certa, não se pode negar que nesta eleição houve um toque de genialidade política dessas estruturas.

IHU On-Line – O recente encontro entre Crivella e Bolsonaro e a postura do prefeito do Rio de Janeiro em relação à pandemia indicam uma parceria para promover a reeleição de Crivella?

Fábio PyDurante a pandemia, Edir Macedo se reajustou com Bolsonaro e reforçou seu apoio. Quando ele reforça o apoio, toda a estrutura da Universal o acompanha, porque sua gestão é absolutamente centralizadora. Macedo é um grande articulador político e o seu sobrinho [Crivella] sempre se manteve ligado à estrutura, logo, vinculado ao seu tio. Então, entendo que houve um ajuste com Bolsonaro via Universal.

Bolsonaro sempre obtém 30% dos votos nas pesquisas. Com a aproximação, Crivella está querendo se garantir para as próximas eleições, e com o apoio de Bolsonaro, ele conseguiria, no Rio de Janeiro, pelo menos 30% dos eleitores desde o início. Desde que Crivella voltou de Brasília, ele assumiu todas as pautas de Bolsonaro: começou a parte da ação com a relativização da quarentena e reabertura do comércio. Ele vem operando um reajustamento mais claro com as pautas do presidente.

IHU On-Line – Em que consiste a ideia de cristofascismo? Quais as bases teóricas desse conceito e de que forma o cristofascismo tem se manifestado na conjuntura brasileira?

Fábio Py – Li textos da Dorothee Solle pela indicação nas aulas da querida professora Maria Clara Bingemer (PUC-RIO). Quando Bolsonaro começou a falar em “Deus acima de todos”, percebi a linha de discursos de traços autoritários que estavam sendo proferidos por ele. E, com a expressão acima, ele está se apropriando do cristianismo, tal como se teceu na época do nazismo. Inspirei-me nos textos de Dorothee Solle, uma teóloga que escreveu nos anos 1970 e 1980, lembrando como era na época do nazismo, ao descrever os fenômenos neonazistas nos EUA, quando lecionou na Universidade de Columbia, em Nova York. Contudo, ela é uma teóloga mística e não estava tão preocupada com as descrições. As minhas pesquisas estão mais preocupadas em descrever, a partir da Ciência Política, Ciências Sociais e História, a apropriação que Bolsonaro faz da teologia evangélica fundamentalista expressa pelo texto bíblico: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Ora, deve-se lembrar que esse fragmento bíblico é simbólico, pois é o jargão das igrejas protestantes de evangelização no Brasil e nas Américas.

Cristofascista, e-book recém-lançado pelo teólogo Fábio Py (Foto: Divulgação)

Os evangélicos do sul dos EUA, que são ligados historicamente aos grandes latifúndios e ao racismo e vieram evangelizar o Brasil, usam esse texto há muitos anos. As igrejas batistas e metodistas, chamadas de protestantes tradicionais, também usam esse texto. Assim, quando Bolsonaro faz uso do texto bíblico, ele está dialogando com o setor, sinalizando que está alicerçado num conjunto de práticas e ações políticas do cristianismo ao longo da história do Brasil e do mundo.

 

Cristofascismo

 

Nessa linha, o cristofascismo seria a apropriação de uma teologia fundamentalista pelo governo autoritário, que tem práticas de desprezo pelos pobres, de defesa da família idealizada cristã, de contrariedade em relação às políticas de esquerda e em relação aos setores ditos minoritários. Deve-se ressaltar, novamente, que Bolsonaro está apoiado sobre uma lógica fundamentalista (evangélica) que tem como sua base social e hermenêutica de argumentação a ideia de família.

Há todo um discurso de acoplamento e de relacionamento do governo atual com o fundamentalismo brasileiro. Isto seria o cristofascismo: a partir da plataforma cristã, da linguagem cristã e da forma discursiva cristã, se constrói uma governança dos corpos e das vidas que está baseada desde ações para se instituir um dia de jejum, até disparar elementos cristãos nas redes sociais para recuperar a base social que estava sendo perdida. Então, cristofascismo seria uma forma de governança baseada no fundamentalismo que pratica o ódio aos diferentes, às minorias e aos pobres. É uma guerra cultural. Ou, como Michael Löwy afirma, está se praticando no Brasil uma “guerra dos deuses” contra as demais divindades afro, indígenas e do cristianismo ecumênico, que aceita as outras tradições em diálogo. Então, o cristofascismo seria esta plataforma: uma intensa “teologia do poder autoritário”.

IHU On-Line – Esse conceito se aproxima do conceito tradicional de fascismo de algum modo?

Fábio Py – De forma nenhuma. Quando falo de fascismo, não estou considerando que exista uma etapa fascista, mas, sim, que o fascismo faz parte da sociedade democrática liberal desde a formação das sociedades liberais. Assim, existem territórios onde continuamente, desde a colonização brasileira, se espalham táticas fascistas. Sempre é bom lembrar o que o poeta popular grafou: “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. Assim, nas favelas, o estado de sítio é completado por meio das políticas do Estado que não permitem às pessoas circularem. Seus agentes são os algozes que matam, violentam famílias e encarceram seus filhos.

Então, quando falo de cristofascismo, estou usando a noção de fascismo de Walter Benjamin, de que não se trata de uma etapa, mas de uma estrutura dentro do capitalismo atual. Ao mesmo tempo, estou intuindo a noção de neofascismo de Michael Löwy, quando diz que o neofascismo não é mais representado por uma pessoa, mas por práticas de subordinação ao neoliberalismo na sociedade atual, que constrói uma pauta autoritária, a partir do cristianismo, para poder construir e consolidar uma agenda castradora necropolítica, tal como descreve Achille Mbembe.

Não há somente um cristofascismo no Brasil, mas um cristofascismo do Sul, que está se desenvolvendo agora na Bolívia. Também, não podemos deixar de destacar a operação no governo Trump, nos EUA.

IHU On-Line – Que ameaças o cristofascismo representa à democracia?

Fábio Py – Ele é uma ameaça e percebemos isso ao ver a existência de um grupo chamado 300 do Brasil, que esteve acampado em Brasília, fazendo ameaças à democracia, ameaçando juízes, desembargadores, os ministros do STF, enquanto Bolsonaro tenta desarticular o tempo todo a estrutura do Estado brasileiro. Ele declara guerra, constrói linchamentos públicos aos prefeitos e governadores que não aceitam a sua deliberação de quarentena vertical. Lembre-se de que Bolsonaro foi “treinado” desde sua juventude na ditadura civil-empresarial brasileira, desabrochou seu autoritarismo nos mandatos parlamentares e solidificou o desprezo pela morte dos pobres agora que está na presidência.

Também, estamos assistindo a um aumento drástico de crimes nas roças brasileiras em prol dos latifúndios, com grilagens, assassinatos, queimadas e deliberações contra os índios. Nesse sentido já estamos vivendo uma nova forma de expressão do fascismo brasileiro que se criou a partir da memória da Ditadura Civil-Empresarial-Militar no Brasil de 1964.

O governo Bolsonaro promove violências, racismos e eugenias a partir das grandes estruturas religiosas cristãs: evangélicas e católicas. Além de grupos organizados, como o 300 do Brasil, deve-se destacar os vínculos da família Bolsonaro com setores das milícias do Rio de Janeiro. Há também uma caça aos jornalistas e às expressões das mídias. Não se fala isso, de forma tão direta, nas mídias, mas já estamos vivendo um clima tórrido de formas ditatoriais.

IHU On-Line – Quais são as consequências da apropriação do cristianismo pela política para a participação das religiões no debate público? Há muitos anos se percebe, em diferentes grupos, uma recusa ao discurso feito por grupos religiosos distintos.

Fábio Py – A esquerda e grupos de reflexão mais crítica quase sempre desprezaram a religião e, principalmente, os setores evangélicos. Eles são tratados geralmente como manipulados ou dentro do esquema do senso comum. A presença do bolsonarismo nesses meios é um “pagamento desta falta de diálogo” com esses que são taxados de pouco letrados. Os ditos setores críticos permitiram a construção do bolsonarismo e também internalizam a lógica da elite intelectual brasileira que abusa das artimanhas racistas com esse discurso aos evangélicos, em geral. Isso porque o evangélico, hoje, nada mais é do que o retrato das periferias. Assim, o que acontece é uma nova face do racismo brasileiro a partir do meio letrado, que é dito ser tão aberto às pluralidades e liberdades, mas que tem problemas de diálogo com as comunidades, roças e favelas.

 

A religião não foi discutida

 

O fato de não trazer a religião para o debate público fez com que ela não fosse discutida! Não foi apresentada outra narrativa a partir da religião, que não fosse a narrativa das grandes corporações religiosas. E isso é um problema. Não se construíram espaços para tensionar as grandes estruturas. Alguns setores evangélicos e católicos tentam fazer isso, mas eles estão ligados também a certo elitismo da intelectualidade brasileira, o que é outro problema. Ou seja, não trouxemos a religião para dentro da arena pública e nos recusamos a discuti-la. Logo, entregamos isso na mão das grandes corporações religiosas e esse foi um pontapé do autoritarismo atual.

Quero “testemunhar” que certa vez fiz uma pregação numa área periférica do Rio de Janeiro a convite de um amigo pastor. À época, soube que a comunidade, majoritariamente, tinha votado em Crivella. Quando perguntei às pessoas por que haviam votado nele, responderam: “Ora, mandaram um ativista político aqui para distribuir panfleto antes das eleições, mas a Universal está aqui há dez anos fazendo trabalho social. Em quem nós vamos confiar?”

Então, há um desprezo pelas linguagens da população periférica, que é, sobretudo, evangélica. Se não soubermos discutir com eles seguiremos entregues ao poder autoritário dos novos cristofascismos. No geral, interessa a eles a discussão da batalha espiritual. Para essa camada sócio-religiosa, a preocupação é pelo pão do dia seguinte. Eles e elas têm de lutar para comer e beber. Logo, essa linguagem de paz e amor pouco diz. O barulho das barrigas é mais forte do que a paz social. Como se vai falar sobre paz, se não se tem o que comer? Por isso, colam o discurso da guerra, da guerra espiritual. Ali é onde eles têm condição de lutar, até, com Deus. É isto que não se entende. Nossas teologias empacam com o grito da fome, da miséria. Quem melhor assimilou esse sintagma foram as grandes corporações evangélicas pentecostais. Temos um problema epistêmico aí. A classe média religiosa está preocupada em falar de paz, contudo os periféricos querem falar de guerra, e da vitória de ter o que comer, de tirar o filho da prisão. Assim, podemos explicar o ajustamento do discurso com a figura de Bolsonaro. Bolsonaro evoca quase sempre o clima de guerra.

IHU On-Line – O Papa fala em uma Igreja mais pastoral e aberta aos pobres. Isso daria conta de acessar as periferias?

Fabio Py – Tem que apostar num diálogo mais amplo a partir de práticas caritativas, como as das pastorais católicas, que sempre tiveram essa preocupação. Mas é preciso entender que aí existe um conflito: a estrutura religiosa que mais cresce, porque admite dentro de si a dinâmica do conflito, é a evangélica. O catolicismo no geral também está muito preocupado com a paz, em trazer a paz interior – não que o evangélico não esteja –, mas o que importa atualmente é o conflito.

O Vaticano II e os grandes concílios católicos indicaram a Bíblia como uma forma de dialogar, de conversar, de sentar ao lado. Trazer os enredos bíblicos e mostrar o que eles dizem para a vida das pessoas pode ser uma forma de diálogo. Portanto, é preciso que se foque no elemento comum entre as tradições religiosas cristãs: a Bíblia. Nunca se precisou tanto dos debates e estudos teológicos. No ano passado, nas noites de quarta-feira, eu ia fazer estudos bíblicos em Santa Rosa, uma comunidade de Campos dos Goytacazes, na Assembleia de Deus do bairro, a pedido das senhoras.

IHU On-Line – Quais são as diferenças centrais na interpretação da Bíblia entre alguns pentecostais e outros grupos religiosos? Por que os pentecostais leem bastante o Antigo Testamento?

Fábio Py – Porque tem guerra, porque no cotidiano da periferia é este imaginário que importa: Isaac lutar contra o anjo, e o profeta lutar tanto a ponto de ir contra Deus, porque, ao lutar tanto, ele mobiliza Deus. A Universal usa essa linguagem o tempo todo, dizendo: você vai orar tanto, tanto, tanto, que Deus vai abrir mão e vai permitir... É uma nova forma de acesso. É escandaloso na teologia tradicional protestante, Deus se curva diante da luta das pessoas, mas...

A questão da batalha é muito forte, e no Antigo Testamento isso é mais interessante ainda. No Novo Testamento também tem esse elemento, quando se pensa a relação de Jesus, Pedro e a luta dos apóstolos contra os fariseus. Essa caminhada da indicação da guerra cultural e da guerra bíblica é muito importante para a formação social da periferia. Quem conduz as famílias nas periferias são as mulheres periféricas, que têm cinco ou seis filhos, mais a mãe. Imagine se para essa mulher, que todos os dias levanta às 5 horas da manhã, dá comida para os filhos e pensa na comida do dia seguinte, essa discussão de paz e amor funciona. Aí que está a questão: esse discurso está desconectado dessa realidade. Tal como uma senhora da Assembleia de Deus em Santa Rosa me confessou: “meu filho, a vontade que tenho é de dar na cara de Deus, tacar fogo no mundo, aí, venho aqui, orar para que ele volte logo”.

IHU On-Line – Que leituras do cristianismo outros grupos religiosos poderiam oferecer como alternativa?

Fábio Py – Esta é a grande questão. Talvez trazer para a arena a dinâmica da justiça, destacando que as pessoas não têm o que comer porque está faltando justiça no lugar onde elas moram. É preciso raciocinar munido de outros textos bíblicos. A racionalidade evangélica e católica conservadora pensa a partir do sagrado, isto é, hoje em dia, “com a Bíblia na mão”.

Quando se discutiu a maioridade penal no Rio de Janeiro, muitas igrejas chamaram pessoas para tratar do tema e uma vez me convidaram para participar de um debate sobre a temática. Os dois preletores que falaram antes de mim eram a favor da redução da maioridade penal e citaram textos bíblicos para explicar as razões. Eu lembrei do texto de Josué para tratar a mesma questão, mostrando que Josué só assumiu o reinado com 18 anos, depois de ter sido treinado, educado.

Precisa-se aprender uma forma de dialogar com o setor e isso influencia o catolicismo em alguma medida, que também está baseado em leituras do Antigo Testamento. Devemos tentar entender como essa racionalidade opera. Como já disse, não acho que a discussão de prática do amor resolva a questão. Muito pelo contrário, porque ela é ligada a um discurso de classe média que está preocupada em manter a família; a tão importante: “vida segura da classe média”. As populações mais periféricas não têm tempo de pensar na família. Não que não seja importante. Mas a miséria das favelas e das roças obriga a outras prioridades.

A forma de se expressar nesse contexto é evocar as lutas do Antigo Testamento. Ora, devamos encontrar mais textos dentro dessa lógica, entender, fazer cursos e formações que apresentem uma visão diferenciada e conflitante com esta. Este é um desafio fundamental para a teologia, dos estudos de religiões. Como a teologia pode nos ajudar agora em termos das políticas das bases? No mínimo, apresentando outras narrativas.

Durante um período, tivemos no Rio de Janeiro um coletivo que fazia mensagens com outras narrativas, ocupávamos as praças públicas e apresentávamos cristãos que eram favoráveis ao diálogo inter-religioso, incentivávamos as pessoas a conhecerem outras religiões, como as afro-brasileiras. Mas esse movimento é feito por um setor de classe média, que tem oportunidade de ir à universidade. Como vamos construir outras possibilidades narrativas, é a grande questão. Primeiro, precisamos ouvir o pessoal da periferia. Por agora, segue-se surdo a eles, os silenciados, com a desculpa de sua falta de estudo ou pelos funks que escutam.

IHU On-Line - O apoio religioso que Bolsonaro tem recebido permanece o mesmo ou foi se modificando ao longo do mandato?

Fábio Py – A base evangélica e católica conservadora continua sendo a base do governo, tanto é que Bolsonaro posta, em suas redes, convocatórias para vigília em dias de oração. No início do mandato, Bolsonaro havia diminuído o discurso religioso. Contudo, quando iniciou a investigação do seu filho no caso da “rachadinha”, começou a perder apoio popular. A saída que encontrou foi a reutilização de memes da campanha, de que ele é um ungido de Deus, que vinha para defender a nação, ou seja, houve um novo direcionamento. Ele tentou se descolar um pouco do setor religioso, porque não é possível governar apenas com esse setor, mas depois retomou a aproximação e, em função das crises geradas pela pandemia, retomou ainda com mais força essa aproximação religiosa.

O vínculo do bolsonarismo com os setores religiosos é uma constante, no entanto, parece ser mais impulsionado quando começam a brotar pesquisas sobre a diminuição de sua popularidade e, nesse contexto, seus intelectuais apostam em energizar sua base religiosa evangélica e católica. Na Páscoa, por exemplo, ele lançou uma série de memes e dizeres bíblicos para o seu público perceber que ele é cristão. Esta é uma questão importante para Bolsonaro, porque precisa provar que sabe mais do que aquele texto que ele sempre cita: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Uma questão para o seu público é saber se ele é realmente evangélico ou católico, porque precisam se reconhecer nele. Muitos dizem que Bolsonaro não é cristão de verdade e, diante das dúvidas, ele sempre tenta se realinhar.

IHU On-Line – Quais são os interesses que unem, mas também dividem, o presidente e os líderes religiosos da sua base eleitoral? Em que pautas eles estão unidos e quais são os pontos de divergência?

Fábio Py – Um ponto problemático de Bolsonaro em relação aos evangélicos é a pauta do armamento. No geral, o público das igrejas batistas e presbiterianas não aceita essa pauta, como também, para alguns estratos dos pentecostais, essa agenda é um problema. Historicamente, existe um apelo evangélico contra o armamento e essa é uma questão séria em que não há conexão direta entre Bolsonaro e os representantes das grandes corporações católicas e evangélicas.

Agora, o interesse das grandes corporações em apoiar Bolsonaro é simples: elas visam baratear e renovar as concessões públicas de canais de comunicação de rádio e TV. A Canção Nova está rediscutindo seus contratos e apoiando Bolsonaro; Edir Macedo está fazendo a mesma coisa, rediscutindo seus contratos de permissão pública, assim como R.R. Soares. Ou seja, no curto prazo, há o interesse pragmático de beneficiar essas corporações. Vale lembrar que muitas igrejas recebem financiamentos para o desenvolvimento de projetos sociais e ganham dinheiro com isso. Por exemplo, a Primeira Igreja Batista de Curitiba se desenvolveu assim e muitas igrejas fazem acordos com as prefeituras para prestar serviços sociais. Também, a Igreja Católica historicamente faz isso. Existem interesses midiáticos claros nesses acordos de apoio político.

 

Frente Parlamentar Evangélica

 

É importante destacar que a grande base política do governo Bolsonaro é a Frente Parlamentar Evangélica, que se diferencia da Bancada Evangélica. A Bancada Evangélica é formada pelos deputados eleitos que compõem essa bancada política. A Frente Parlamentar Evangélica é composta de mais ou menos 200 pessoas que não necessariamente são evangélicas, mas se identificam com pautas conservadoras dos evangélicos, que envolvem basicamente questões ligadas à formação das famílias. Bolsonaro se mobiliza a partir dessa base e participa, com alguma frequência, dos cultos da Frente Parlamentar Evangélica nas quartas-feiras pela manhã. Portanto, existe uma conexão umbilical entre esse setor evangélico fundamentalista e o catolicismo conservador político e Bolsonaro. A Frente Parlamentar Evangélica é hoje o braço político com mais intenso diálogo com Bolsonaro.

IHU On-Line - O senhor declarou recentemente que o apoio de Malafaia a Bolsonaro é de grande importância para o projeto político do presidente. Pode explicar essa ideia? Qual é o projeto de Bolsonaro e como Malafaia pode ser uma chave importante no seu desenvolvimento?

Fábio PyBolsonaro precisa de um articulador mais jovem: Macedo tem 75 anos e Malafaia tem por volta de 60 anos, mas nos últimos anos ele passou a raspar o bigode para parecer mais jovial para o público. Malafaia é um agente quase desprezado, mas tem aproximadamente dois milhões de seguidores nas redes sociais, e o atual presidente da Frente Parlamentar Evangélica, Silas Câmara, foi eleito a partir da campanha feita por Malafaia.

Malafaia tem um faro midiático impressionante e, por dia, publica de dois a três vídeos com comentários. Normalmente faz um sobre algum tema religioso, outro sobre alguma programação de sua igreja e outro sobre alguma questão política. Esses vídeos são compartilhados entre duas e três mil pessoas. Ora, se ele faz isso todos os dias, é algo impressionante – isso dificilmente é dito nos textos científicos sobre religião.

Por volta dos anos 2000, Malafaia se notabilizou quando falava diariamente nas rádios evangélicas do Brasil, que têm as maiores audiências do país, como a rádio Melodia e a 93FM. Nas duas emissoras há debates ao meio-dia e Malafaia fez seu nome a partir desses debates, porque ele começava a discutir temas teológicos, falar sobre igreja, diariamente, de segunda a sexta, e isso deu a ele muita visibilidade. Ele tem uma capacidade midiática diferente da do bispo Macedo, que prega no domingo de manhã e tem uma voz mais mansa. Malafaia prega como os grandes evangelistas americanos e fala através do conflito e das polêmicas.

Se não me engano, ele foi a primeira pessoa com quem Bolsonaro falou depois da eleição. Bolsonaro o indagou sobre a sua eleição e Malafaia respondeu: “Deus gosta de coisas doidas”. No geral, não se percebe a importância de Malafaia para o atual governo, mas ele sempre está presente nos eventos convocados pelo presidente. Já Macedo, nunca está – ele tem outro perfil, que também é de apoio, mas o faz mais pela via institucional. Malafaia é aquele que aparece mais, faz vídeos, grita, xinga, falando sobre política. Quando [Sérgio] Moro saiu do governo, o pastor fez vídeos falando mal de Moro durante duas semanas. Quando Mandetta saiu, ele fez vídeos dizendo que o ex-ministro não era um bom médico. Então, há uma relação umbilical entre Malafaia e Bolsonaro. Ele fez o casamento de Bolsonaro e Michelle, que frequentaram a sua igreja por um tempo. Além disso, Malafaia atrai um público que Bolsonaro não tem: os jovens evangélicos e católicos.

No evento The Send Brasil, que é uma reaproximação dos movimentos evangélicos do sul dos EUA com o BrasilMalafaia foi um dos pregadores e Bolsonaro também participou. Este é um evento de renovação espiritual dos jovens brasileiros e ocorreu em três grandes estádios, em três regiões do Brasil, simultaneamente, com mais de cem mil jovens. Imagine o poder desse movimento. Na fala de Malafaia, enfatizou-se que os jovens não deveriam perder de vista a importância de seguir o evangelho de verdade, não se curvando aos humanismos e aos esquerdismos das universidades do Brasil.

IHU On-Line – Como outros grupos religiosos podem fazer frente a esse fenômeno?

Fábio Py – Não sei. De forma sistêmica, precisamos buscar outra forma de fazer a discussão sobre religião nas escolas, por pessoas que tenham formação em Ciências da Religião. Talvez esse seja um caminho, assim como outras formas de narrar a religião. Esse caminho não pode ser feito só por historiadores e antropólogos; tem que ser feito por alguém que entende internamente a linguagem da religião, que saiba o seu modus de pensar, que compreenda as narrativas das religiões e que saiba trabalhar os textos sagrados. Novamente, gostaria de repetir: se deixarmos os textos sagrados somente nas mãos de alguns líderes religiosos, eles vão transformar tudo isso em guerra cultural, em disputa de deuses, em disputa por dinheiro.

IHU On-Line - Vê possibilidade de a base religiosa que sustenta o presidente hoje se descolar do governo, como ocorreu no governo Dilma? Já há sinais disso?

Fábio Py – Sim, e algumas estruturas tradicionais, como os protestantes tradicionais, já estão fazendo uma crítica do alinhamento com o governo. Os presbiterianos e os metodistas começaram a fazer uma crítica das ações do presidente durante a pandemia, principalmente por não seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde - OMS. Eu tenho amigos pastores batistas que apoiavam Bolsonaro e voltaram atrás após o discurso dele sobre a pandemia ser apenas “uma gripezinha”.

Quero crer que essa crítica vai ocorrer. Aos poucos, as grandes estruturas religiosas protestantes tradicionais estão se descolando do governo. Como disse, a linguagem sobre armas no meio evangélico não é positiva. Do início do ano para cá, setores que antes apostavam em Bolsonaro enfrentam certo desgaste, até por causa do modo como ele interpreta a questão da família: ele tirou o diretor da Polícia Federal do governo para salvar a família dele. Ora, Bolsonaro não pensa numa família idealizada, mas, sim, está defendendo a família dele contra a dos demais. Logo, sua família é o elemento central do governo. Embora sua base social seja densa, aos poucos (ao custo de muitas vidas na pandemia) está acontecendo um exercício de crítica desse processo. O interessante é que a periferia não é pró-Bolsonaro, mas a classe média se interessa pelo discurso anticomunista e pela pauta da segurança pública, que são tendências do bolsonarismo.

IHU On-Line - Que cristologia seria capaz de responder ao cristofascismo à brasileira?

Fábio Py – Atualizações e releituras da teologia da libertação latino-americana são traços interessantes. Cristo foi um pobre e fez parte do grande movimento daqueles que não eram vistos no Império Romano; ele constitui ações de insurgência contra o movimento romano. Logo, o movimento de Cristo foi um movimento dos insubordinados ao Império. É preciso reassumir essa razão da cristologia, fincada nas bases sociais, para denunciar os crimes de autoritarismo, assumindo que Cristo foi contra as estruturas governamentais da época. Da mesma forma, ele se preocupou com a construção de uma nova ordem, de uma nova lógica de mundo.

Neste caso, a forma de condução é reafirmar o projeto das teologias da libertação latino-americanas, assumindo Cristo como sendo sujeito das camadas mais baixas, que foi contra o Império, e mostrar que fez parte da luta dele construir um novo projeto de vida. Bradou que a “paz dele não” era do mundo romano, mas sim, de outro mundo, no qual tem pão, comida e vida para todo mundo. É preciso reafirmar as bases sociais do cristianismo, de uma teologia política a partir dos pobres. Isso é fundamental. Como podemos fazer isso? Dialogando. Para isso, precisamos sair do nosso âmbito acadêmico, intelectual e de formação de classe média e se colocar junto, percebendo que só assim se pode construir uma nova lógica de mundo.

Precisamos reafirmar quem é Cristo, que figura é essa. Uma cristologia que vai fazer frente à cristologia de Bolsonaro é aquela que afirma Jesus entre os que buscam organizar a vida na lógica do repartir o pão, caminhar junto.

 

Bibliografia

 

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