21 Novembro 2017
“Uma das tarefas em torno de Medellín, parece-me, é recuperar os artífices de Medellín, seu perfil, sua contribuição. Isso nos levará a tocar com a mão aqueles que viveram e foram significativos na Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Assim, entenderemos melhor a importância que Medellín teve como recepção crítica e criativa do Vaticano II em nosso continente”. A reflexão é de Juan Manuel Hurtado López, teólogo mexicano, em artigo publicado por Amerindia, 16-11-2017. A tradução é de André Langer.
"Dom Samuel, juntamente com bispos como dom Hélder Câmara... dom Leonidas Proaño... dom Paulo Evaristo Arns... dom Oscar Arnulfo Romero..., faz parte de uma brilhante página da Igreja Latino-Americana". [1]
Muitas são, sem dúvida, as maneiras de abordar a celebração dos 50 anos de Medellín que vamos realizar no próximo ano. Com esta motivação várias instituições, redes, universidades, coletivos e grupos planejam realizar atividades para comemorar tão fausto acontecimento. A Amerindia também está organizando um congresso teológico a ser realizado na pátria de dom Romero, ícone dos mártires da América Latina e do Caribe.
Uma das tarefas em torno de Medellín, parece-me, é recuperar os artífices de Medellín, seu perfil, sua contribuição. Isso nos levará a tocar com a mão aqueles que viveram e foram significativos na Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Assim, entenderemos melhor a importância que Medellín teve como recepção crítica e criativa do Vaticano II em nosso continente.
Quero, então, referir-me a dom Samuel Ruíz García, bispo de San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, no sudeste do México, com quem tive a graça e a oportunidade de trabalhar um pouco mais de dois anos.
Quando dom Samuel chegou a Medellín, trazia em seu coração e em sua responsabilidade o cuidado pastoral de uma das dioceses com o maior número de indígenas do país. Além disso, dom Samuel teve o privilégio de ser padre conciliar nas quatro sessões do Concílio Vaticano II. De lá, trouxe ares frescos de renovação da Igreja que tinha começado com o Concílio.
Mas também durante o Concílio, dom Samuel conseguiu trocar experiências com os bispos africanos sobre o tema da evangelização dos povos, especialmente os indígenas. Como ele mesmo nos contava, isso mudou radicalmente a sua percepção do que significava evangelizar em terras de missão. Dom Samuel chegou a Medellín com a visão do Vaticano II e com a vontade, já nessa época, de aplicá-lo na vida da diocese.
Na Conferência de Medellín, de 26 de agosto a 7 de setembro de 1968, dom Samuel foi participante e palestrante. Mais tarde, mediante nomeação do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), dom Samuel seria o responsável pelo Departamento de Missões – para a pastoral indígena – e também presidente desse departamento na Conferência dos Bispos do México.
Dom Samuel foi um pastor e um profeta. Acompanhou uma diocese muito grande, com poucas estradas, com vários grupos étnicos indígenas e várias línguas, com uma grande pobreza e marginalização, com muitos problemas de terra, saúde, educação e trabalho. É aqui que enraizou o seu ministério pastoral e profético.
São muitas as frentes de pastoral que ele abriu na diocese à luz do Concílio Vaticano II e de Medellín. Dom Samuel promoveu as escolas de catequese – até o presente, existem mais de 8 mil catequistas de adultos nas comunidades –, o ecumenismo, o estudo e a tradução da Bíblia para as línguas indígenas, o diaconado indígena permanente, os direitos humanos, a mulher, as vocações autóctones, o Povo Crente como um sujeito empenhado na luta pela justiça e a libertação do povo, o estudo das culturas maienses, o apoio a milhares de refugiados guatemaltecos que fugiam da guerra, a Teologia Índia, a construção de uma Igreja ministerial com serviços e ministérios autóctones, a abertura do Seminário Regional do Sudeste (SERESURE) com as dioceses vizinhas para a formação sacerdotal, a relação com as Igrejas da América Latina e do Caribe através da UMAE, a promoção de organizações em defesa dos povos indígenas da região, a mediação para a paz quando eclodiu o conflito armado em 1994 entre o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e o governo mexicano. Em San Cristóbal de Las Casas, ele abriu uma casa para cuidar de mulheres indígenas abandonadas, que queriam ter seus bebês em condições seguras.
Em 1974, coube à diocese de San Cristóbal de Las Casas, com dom Samuel à frente, a organização do Congresso Indígena para comemorar os 500 anos do nascimento de Frei Bartolomé de Las Casas. Este congresso foi decisivo na história recente da diocese. Em 1975, na Assembleia Diocesana, dom Samuel assumiu publicamente a opção pelos pobres e convidou todos os agentes de pastoral presentes a fazerem o mesmo. E sua grande obra, o III Sínodo Diocesano de 1995 a 1999, que atualmente orienta a vida da diocese.
A isso se soma o seu grande contato com as Igrejas da América Latina, tornando-se presente em congressos, reuniões e estudos.
Como Amós e Isaías, dom Samuel mostrou sua vocação profética, fez grandes e fortes denúncias proféticas contra um sistema de morte que oprimia os indígenas através dos agricultores e dos pecuaristas e com a discriminação racial, sobretudo na cidade de San Cristóbal. É muito conhecida a sua excelente Carta Pastoral Nesta Hora de Graça, em que dom Samuel faz uma denúncia profética das graves injustiças que afligem a sociedade e, acima de tudo, os pobres, os indígenas, e qual é a vontade de Deus e a tarefa da Igreja nesta hora.
Isso lhe valeu ataques de todos os tipos: calúnias, acusações, perseguições e tentativas de assassinato. Mas a cruz que dom Samuel carregou não era apenas aquela promovida pelo governo ou pelos proprietários de terra, mas também por alguns de seus irmãos no episcopado mexicano que se prestavam às intrigas do governo e das classes ricas e abastadas do país. Eles chegaram inclusive a pedir a sua expulsão do país. Só que a notícia se espalhou rapidamente e a sociedade civil, nacional e internacional, pressionou tanto que o governo teve que desistir. Em várias ocasiões, eles queriam removê-lo da diocese, mas, graças ao apoio da sociedade civil e de alguns bispos, a medida nunca pôde avançar.
Dom Samuel tem frases chocantes. À pergunta, em uma situação delicada, de se sua vida estava em risco, ele disse aos indígenas: "Irmãos, vocês sofrem muito e por isso queremos acompanhá-los neste sofrimento; mas percebemos que vocês e nós estamos correndo um sério risco. Queremos correr todo o risco que vocês queiram correr...". [2]
A um padre espanhol, que insistiu em acompanhá-lo nessa situação, ele disse: "Não, pode ser que no trajeto nos matem, e por que você precisa acabar aqui quando não tem nada a ver com tudo isso...". [3]
Outra frase que reflete muito bem o seu pensamento é a seguinte. Eles lhe perguntaram muitas vezes se ele tinha inimigos. Dom Samuel respondeu: "Eu não tenho inimigos; são os pobres que têm inimigos, porque são os pobres que incomodam o sistema injusto". [4]
Termino com a afirmação feita por dom Raúl: "Dom Samuel, um Pai da Igreja Latino-Americana", um profeta e pastor que marcou a Segunda Conferência Episcopal Latino Americana em Medellín.
Notas:
[1] VERA LÓPEZ, Raúl. Don Samuel Ruíz García, uno de los padres de la Iglesia Latinoamericana. In: HURTADO LÓPEZ, Juan Manuel. Don Samuel profeta y pastor. México, D. F.: Razón y Raíz, S.C., 2016. Pág. 9.
[2] Idem, p. 19.
[3] Id, p. 21.
[4] Id, p. 27.
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50º aniversário de Medellín e dom Samuel Ruiz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU