02 Julho 2021
"Limitar-se a falar de estruturas é um álibi, isso é verdade; mas remover o tema de sua mudança, refugiando-se na dimensão puramente individual, é moralista. A Reforma protestante entendeu isso e, por isso, mudou a Igreja", escreve Fulvio Ferrario, teólogo italiano, Professor de Teologia Sistemática e Decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado Confronti, julho-agosto de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A carta de demissão do cardeal Reinhard Marx ao cargo de arcebispo católico de Munique me impressionou especialmente do ponto de vista espiritual: ou seja, o texto me pareceu ir além do plano da análise (da crise do cristianismo, da emergência da pedofilia, da resistência aos mecanismos de transparência), para introduzir uma categoria estritamente teológica: aquela da culpa, com a relativa necessidade de conversão.
O ponto original, com respeito a centenas de sermões, incluindo os meus, era que tal apelo não fosse dirigido principalmente a outros: eu falhei, Marx dizia em essência, eu peço demissão.
A grande maioria das interpretações, por outro lado, se colocou diretamente no plano da política eclesiástica.
Alguns viram no gesto uma polêmica, nem tão indireta, com o cardeal de Colônia Rainer Maria Wölki, considerado um baluarte dos chamados conservadores (assim chamados porque não está muito claro quem seriam os "progressistas"): enquanto escrevo isto, a diocese de Colônia é objeto de uma “visita”, ou seja, de uma inspeção, para verificar comportamentos e reações, especialmente sobre a questão dos abusos sexuais: Wölki, porém, não quis saber de dar um passo atrás.
De forma mais geral, muitos analistas leram a renúncia do prelado dentro do caminho "sinodal" da Igreja Católica alemã, que vê pressões bastante fortes sobre aspectos que o próprio Francisco olha com relativa preocupação, por exemplo, na pastoral das pessoas homoafetivas e, por outro lado, uma certa consolidação da frente adversária.
Por fim, há aqueles que simplesmente pensaram em um jogo das partes: o cardeal "francisquista" oferece sua demissão, o papa a rejeita e se recomeça como antes, só com a figura de Marx reforçada por uma nova investidura romana. O fato de que, efetivamente e em tempos curtíssimos, Francisco tenha rejeitado o pedido, convidando o arcebispo a permanecer em seu cargo, reforçou essa leitura.
Seja como for, a linguagem da Igreja (católica, neste caso) é imediatamente reconduzida ao registro da política: a tentativa do cardeal (supondo que realmente tenha sido isso) de se colocar em um plano diferente e de colocar questões distintas a respeito do confronto entre facções e do minueto um tanto desgastado entre os amigos verdadeiros ou supostos de Francisco e seus adversários, não encontrou audiência. A carta com a qual o papa rejeita sua renúncia é, por sua vez, um documento interessante. Alguns observam que o Novo Testamento é citado de uma forma um tanto "livre", em particular justapondo passagens vindas de diferentes diálogos entre Jesus e Pedro.
O ponto mais interessante, no entanto, diz respeito à interpretação do termo "reforma", que em uma ocasião é colocado entre aspas e acompanhado por um "permita-me a expressão", como se fosse inconveniente. A tese do papa é que a "verdadeira reforma" não é um projeto de reestruturação da Igreja, mas o fato que Jesus coloca em jogo a si mesmo na cruz, e a fé é chamada a corresponder a ele por meio da conversão. Alguns comentaristas protestantes observaram que, desta forma, o Papa lança uma flechada tanto às Igrejas da Reforma como ao Catolicismo da mudança. Pode ser e eu não ficaria surpreso: Papado e a Reforma nunca foram amigos.
A contraposição entre a conversão pessoal e a mudança das estruturas, especialmente quando invocada por quem se coloca no vértice da mais poderosa de tais estruturas, não pode deixar de suscitar perplexidade. Querendo, no entanto, se poderia também ler o texto papal em bonam partem, ou seja, no mesmo sentido da exigência expressa por Marx: a comunidade cristã deve resistir à tentação de pensar na mudança apenas através de categorias sociológicas: o fator decisivo é a conversão. Exceto que, e isso é o que Roma não quer ouvir, a conversão dos indivíduos e a conversão das estruturas andam juntas.
Limitar-se a falar de estruturas é um álibi, isso é verdade; mas remover o tema de sua mudança, refugiando-se na dimensão puramente individual, é moralista.
A Reforma protestante entendeu isso e, por isso, mudou a Igreja.
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A propósito de Marx. Artigo de Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU