“Se és tentado a pensar que, ao confirmar tua missão e não aceitar tua demissão, este Bispo de Roma (teu irmão que te ama) não te compreende, pensa no que Pedro sentiu diante do Senhor quando, à sua maneira, apresentou sua renúncia” colocando-se como um pecador e ouviu como resposta “cuide das minhas ovelhas”.
Esta imagem conclui a carta com a qual o Papa Francisco rejeitou a renúncia apresentada pelo arcebispo de Munique e Freising, cardeal Reinhard Marx, que em 21 de maio passado escreveu uma carta – posteriormente publicada – explicando as razões de seu gesto.
Marx havia pedido ao Papa para poder deixar a condução da Arquidiocese alemã por causa do escândalo de abusos na Alemanha e da resposta por ele julgada insuficiente do episcopado.
O Papa, na missiva publicada em espanhol e alemão pela Sala de Imprensa da Santa Sé, agradece a Marx pela “coragem cristã que não teme a cruz, que não teme ser humilhado diante da tremenda realidade do pecado”.
A carta é publicada por Vatican News, 10-06-2021. A tradução da carta é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Querido irmão,
Primeiramente, obrigado por tua coragem. É uma coragem cristã que não teme a cruz, não teme se esvaziar de si diante da tremenda realidade do pecado. Assim fez o Senhor (Filipenses 2, 5-8). É uma graça que o Senhor te deu e vejo que você a quer assumir e custodiar para que dê frutos. Obrigado.
Disse-me que estás atravessando um momento de crise, e não somente você, mas toda a Igreja na Alemanha está vivendo. Toda a Igreja está em crise devido ao assunto dos abusos; mais ainda, a Igreja hoje não pode dar um passo adiante sem assumir esta crise. A política do avestruz não leva a nada, e a crise tem que ser assumida desde nossa fé pascal. Os sociologismos, os psicologismos, não servem. Assumir a crise, pessoal e comunitariamente, é o único caminho fecundo, porque de uma crise não se sai sozinho, mas sim somente em comunidade, e ainda, devemos considerar que de uma crise se sai melhor ou pior, mas nunca igual [1].
Disse-me que desde o ano passado vem refletindo: se pôs em caminho, buscando a vontade de Deus com a decisão de aceitá-la, seja qual for.
Estou de acordo contigo em classificar de catástrofe a triste história dos abusos sexuais e o modo de enfrentá-los que tomou a Igreja até há pouco tempo. Cair na conta desta hipocrisia no modo de viver a fé é uma graça, é um primeiro passo que devemos dar. Temos que nos responsabilizar pela história, tanto pessoal como comunitariamente. Não se pode permanecer indiferente diante deste crime. Assumi-lo supõe colocar-se em crise.
Nem todos querem aceitar esta realidade, porém é o único caminho, porque fazer “propósitos” de mudança de vida sem “colocar a carne sobre a brasa” não leva a nada. As realidades pessoais, sociais e históricas são concretas e não devem se assumir com ideias; porque as ideias se discutem (e tudo bem que seja assim), porém a realidade deve ser sempre assumida e discernida. É verdade que as situações históricas precisam ser interpretadas com a hermenêutica da época em que ocorreram, porém isto não nos exime de nos responsabilizarmos e assumi-las como história do “pecado que nos assedia”. Portanto, pelo meu entendimento, cada bispo da Igreja deve assumir e se perguntar: “o que devo fazer diante desta catástrofe?”.
O “mea-culpa” diante de tantos erros históricos do passado fizemos mais de uma vez ante muitas situações, ainda que pessoalmente não tenhamos participado nessa conjuntura histórica. E esta mesma atitude é a que nos pede hoje. Se nos pede uma reforma, que – neste caso – não consiste em palavras, mas sim em atitudes que tenham a coragem de se colocar em crise, de assumir a realidade seja qual for a consequência. E toda reforma começa por si mesmo. A reforma na Igreja foi feita por homens e mulheres que não tiveram medo de entrar em crise e se deixar reformar a si mesmos pelo Senhor. É o único caminho, do contrário não seremos mais que “ideólogos de reformas” que não colocam em jogo a própria carne.
O Senhor não aceitou nunca fazer “a reforma” (permita-me a expressão) nem com o projeto fariseu, saduceu, zelote ou essênio. Mas a fez com sua vida, com sua história, com sua carne na cruz. E este é o caminho, o que você mesmo, querido irmão, assume ao apresentar a renúncia.
Dizes bem, em sua carta, que nada nos leva a sepultar o passado. Os silêncios, as omissões, dar demasiado peso ao prestígio das instituições, apenas conduzem ao fracasso pessoal e histórico, e nos levam a viver com o peso de “ter esqueletos no armário”, como reza o ditado. Não nos salvarão as pesquisas, nem o poder das instituições. Não nos salvará o prestígio de nossa Igreja que tende a dissimular seus pecados; não nos salvará nem o poder do dinheiro, nem a opinião dos meios de comunicação – tantas vezes somos muito dependentes deles. O que nos salvará será abrir a porta ao Único que pode fazê-lo e confessar nossa nudez: “pequei”, “pecamos”... e chorar, e balbuciar como podemos aquele “afasta-te de mim que sou um pecador”, herança que o primeiro Papa deixou aos Papas e aos bispos da Igreja. E então sentiremos essa vergonha curadora que abre as portas à compaixão e ternura do Senhor que sempre está próxima. Como Igreja devemos pedir a graça da vergonha, e que o Senhor nos salve de ser a prostituta descarada de Ezequiel 16.
Gosto como terminas a carta: “Continuarei com gosto a ser sacerdote e bispo desta Igreja e continuarei a me empenhar a nível pastoral sempre e quando e quanto for sensato e oportuno. Quero dedicar os anos futuros de meu serviço de modo mais intenso à cura pastoral e me empenhar por uma renovação espiritual da Igreja, como Você incansavelmente pede”.
E esta é minha resposta, querido irmão: continue como propõe, mas como Arcebispo de Munique e Freising. E se te vier a tentação de pensar que, ao confirmar tua missão e ao não aceitar tua demissão, este Bispo de Roma (irmão teu que te quer) não te compreende, pense no que sentiu Pedro diante do Senhor quando, à sua maneira, apresentou sua renúncia: “afasta-te de mim que sou um pecador”, e escute a resposta: “cuide das minhas ovelhas”.