21 Mai 2021
"As escolas jesuítas continuam em todo o mundo, mesmo sem a retórica ciceroniana e o latim, a tratar de leitura e compreensão da realidade sociopolítica, a ensinar a ponderação do juízo e o equilíbrio nas escolhas, a estimular a ambição, a estar prontas para gerir o poder. Continuam a medir-se com a realidade, sem medo de modelá-la", escreve Claudio Ferlan, historiador italiano e pesquisador do Instituto Histórico Ítalo-Germânico da Fundação Bruno Kessler, em Trento, Itália. Em português, é autor de “Os jesuítas” (Ed. Loyola, 2018). O artigo foi publicado por Domani, 20-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há (quase) quinhentos anos existe motivo para falar da Companhia de Jesus, imaginem agora que o papa é um jesuíta, o primeiro da história. Nos últimos tempos, ganhou destaque que tanto o primeiro-ministro Mario Draghi quanto a recém-nomeada chefe dos serviços secretos italianos, Elisabetta Belloni, estudaram no jesuíta Liceu Massimo em Roma. Estes são os dois últimos exemplos de uma longa série, tanto que nos perguntamos: por que das escolas da Companhia parecem sair pessoas particularmente habilidosas para gerir o poder? Estudando com os Jesuítas: uma escola de adaptação?
Fundada por Inácio de Loyola e poucos outros em 1540, a ordem foi imediatamente vista com suspeita pelo nome escolhido, aquela "Companhia de Jesus" julgada pelos contemporâneos como um manifesto de arrogância e suposto luteranismo, dada a referência direta e exclusiva ao Filho de Deus. A desconfiança se reforçou com o tempo e, quando se trata dos jesuítas, muitas vezes acontece ainda hoje ouvir histórias construídas a partir da reserva inesgotável de clichês. São ambíguos, falsos, mentirosos, vigaristas ... mas o que a história nos diz? Inácio não ensinava "dizer a verdade mentindo e mentir dizendo a verdade", mas pedia para agir com o coração, com o espírito e com a prática ("o nosso modo de proceder"). Eram palavras de Jerónimo Nadal, um dos seus primeiros companheiros. O que significa? Antes de se pôr à obra, explicava Nadal, é preciso encontrar a combinação certa entre a rígida observância das normas e a conduta flexível recomendada pelo viver cotidiano.
A adaptação às circunstâncias é muito jesuítica e não é dado como certo que seja sempre uma questão de engano: o voto de pobreza individual foi confrontado com a necessidade de gerir escolas e aldeias inteiras; a independência teve que se adaptar a estreitas conexões com o poder secular; a proibição de aceitar cargos eclesiásticos sem a permissão do papa quase parece uma piada, hoje que um jesuíta é papa. O caso das escolas explica bem a flexibilidade do “modo de proceder”. Originalmente, Inácio havia excluído explicitamente o empenho com o ensino, mas as demandas de seu tempo o levaram a reconsiderar e a fortuna da Companhia de Jesus foi construída em grande parte sobre bancos de escolas e cátedras universitárias. Poderíamos ver isso como uma contradição, mas provavelmente estaríamos mais corretos inclinando-nos para a capacidade de adaptação.
O núcleo original dos futuros jesuítas foi conhecido estudando em Paris e daquela experiência Inácio se inspirou para construir, não sozinho e por tentativa e erro, um novo sistema educacional. Demorou muito para encontrar a quadratura do círculo, aconteceu em 1599 com a Ratio studiorum Societatis Iesu (Ordenamento dos estudos da Companhia de Jesus), publicada quando seus criadores haviam desaparecido já há tempo, substituídos por uma segunda e uma terceira geração de coirmãos. Tratava-se de um elaborado regulamento destinado a disciplinar por mais de dois séculos uma atividade escolar concentrada sobretudo naquelas que para nós são as escolas secundárias. Eles preferiram deixar o ensino fundamental para outros, exceto nos casos em que não era possível encontrar um professor. Aquela universitária estava prevista, mas considerada uma consequência natural do que se fazia anteriormente nos colégios. Foram preciso cinquenta anos para organizar o ordenamento, ou seja, a pressa não está nas características de suas ações.
A escolha fundamental foi a de abrir suas salas de aula gratuitamente não só aos aspirantes a membros da Companhia, mas também aos jovens, todos do sexo masculino, que desejassem garantir para si uma educação sólida, adequada à formação das elites. Aparentemente funcionou. O sistema da Ratio previa apenas professores jesuítas e visava fornecer as ferramentas necessárias para escrever um latim correto e elegante, para conhecer e usar a retórica ciceroniana da melhor maneira possível. Ficavam satisfeitos com a perfeição. Ser capaz de persuadir a plateia com argumentos refinados era uma habilidade indispensável não só para aqueles que na vida adulta se dedicavam à pregação e ao ensino, mas também para aqueles que se imaginavam destinados a governar. No entanto, não era suficiente. Para temperar os líderes do futuro, também era necessário estimular a competição. O calendário escolar era pontuado por desafios e apresentações públicas pensadas a destacar e recompensar as capacidades individuais. O regime de punições baseava-se em boa parte na denúncia e na observação mútua dos estudantes. Os melhores em conduta podiam punir os outros.
Os maiores problemas surgiram sobretudo na França no confronto com a cultura jansenista e iluminista. Nos colégios jesuítas estudaram Descartes, Molière, Voltaire, Diderot e até Robespierre. Muitas vezes foram os próprios ex-alunos que colocaram na berlinda a proposta cultural oferecida nas escolas que eles bem conheciam; suas opiniões se espalham por toda parte, focalizando principalmente dois aspectos. Em primeiro lugar, eram rotulados como anacrônicos o monopólio dos textos clássicos gregos e latinos e a escolha do latim como língua principal (em muitos casos, a única) nos programas de ensino. Em segundo lugar, ainda mais do que no passado, se sentia o a insistência na autoridade de Aristóteles em metafísica, lógica e física: o avanço dos conhecimentos científicos garantido por cientistas como Galileu e Newton havia demonstrado com inquestionável autoridade a necessidade de superar o aristotelismo.
Alguns jesuítas avançaram de forma praticamente independente no caminho da ciência, mas seu gênio pessoal não estava em condições de desequilibrar os fechamentos da ordem, que, como vimos, antes de mudar pensava a respeito por décadas. Como explicar essa dupla trilha, essa distância entre posição rígida institucional e livre busca individual?
O Jesuíta é frequentemente retratado como o porta-estandarte da obediência. Em sua abundante correspondência, Inácio escreveu que, no sistema hierárquico da Companhia, o inferior em posição deve se deixar guiar pelo superior perinde ac cadaver, quase como se fosse um cadáver. Não é o que parece. Os slogans ajudam a memorizar conceitos, mas não dizem tudo e Inácio afirmou muitas outras coisas, indispensáveis para circunstanciar uma expressão tão forte. Obedecer, esclarecia, não significa renunciar completamente ao exercício da própria vontade e da capacidade de compreender. Antes de obedecer, é lícito discutir, vivendo uma experiência espiritual inspirada na realidade. Sempre a realidade, esta é a referência constante do jesuíta. Ele a chamava de "discernimento" e pedia aos seus seguidores que fossem "contemplativos na ação". Isso certamente não indica a disponibilidade de se deixar levar pelo vento sem ter uma linha de conduta, mas a de confronto e mediação, com os outros e consigo mesmo. Atitude que custou aos jesuítas má fama, acusações de camaleonismo e até mesmo sua supressão, sancionada pelo Papa Clemente XIV em 1773.
A reconstrução seguiu após quarenta anos, decidida por outro papa (Pio VII, 1814). O renascimento foi seguido também pela atualização da Ratio, sempre com ritmos nada rápidos (1832) e com formas não definitivas, adequadas aos tempos. Ninguém mais acreditava na homogeneidade absoluta dos estudos; tendo se tornado um dos principais interesses dos governos seculares, era necessário saber se acomodar. A renovação teve (e ainda tem) as consequências mais relevantes nos Estados Unidos, onde os jesuítas fundaram e dirigiram importantes escolas e universidades, onde a ideia de educação gratuita foi amplamente superada. Mas as escolas jesuítas continuam em todo o mundo, mesmo sem a retórica ciceroniana e o latim, a tratar de leitura e compreensão da realidade sociopolítica, a ensinar a ponderação do juízo e o equilíbrio nas escolhas, a estimular a ambição, a estar prontas para gerir o poder. Continuam a medir-se com a realidade, sem medo de modelá-la.
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As escolas jesuítas ensinam como medir-se (e intervir) sobre a realidade. Artigo de Claudio Ferlan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU