10 Dezembro 2020
Pazuello ameaça retardar por 60 dias aprovação de imunizante do Butantã; e depois inventa números sobre as doses de que o ministério disporá. Anvisa sugere que está acima da lei. Governadores começam a recorrer ao STF.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outra Saúde, 09-12-2020.
Pressionados pelas campanhas de vacinação que começaram ou estão prestes a acontecer em outros países, governadores cobraram ontem do Ministério da Saúde definições mais concretas sobre datas, logística e compra de imunizantes. As respostas de Eduardo Pazuello conseguiram ser ao mesmo tempo reveladoras e confusas.
Do bate-boca entre o general e João Doria (PSDB), ficou a impressão de que o governo federal descartou a compra de doses da CoronaVac. O governador de São Paulo estava ansioso para confrontar o ministro da saúde, e chegou a acusá-lo de censura já que desde o início da reunião pedia a palavra, mas não era atendido. Quando enfim falou, Doria foi direto e perguntou: “Seu ministério vai comprar a vacina CoronaVac sendo aprovada pela Anvisa? Sim ou não?”
A resposta de Pazuello foi a seguinte: “O Butantan, quando concluir seu trabalho e tiver vacina registrada, avaliaremos a demanda. Se houver demanda, e houver preço, vamos comprar.”
Mais tarde, em um evento no Palácio do Planalto, o ministro deixou mais clara a posição do governo federal ao não contabilizar as 46 milhões de doses da vacina produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a empresa chinesa Sinovac em suas contas de quantos imunizantes estarão disponíveis em 2021.
Nessas contas, aliás, apareceu um número que precisa ser destacado. Pazuello afirmou que o país já tem garantidas 300 milhões de doses para o ano que vem. E 260 milhões desse total seriam da vacina de Oxford/AstraZeneca. Essa cifra surgiu na imprensa no final de novembro, quando o laboratório divulgou a eficácia de 90% na aplicação de uma dose e meia do imunizante. Mas esse resultado foi contestado pela comunidade científica, já que a empresa fez uma grande confusão, misturando estudos distintos, voluntários com idades diferentes, etc. ao invés de seguir um protocolo único (como já explicamos e abordaremos mais adiante, na próxima nota). O que está preto no branco, escrito no contrato firmado entre Fiocruz e AstraZeneca, é uma quantidade de 100,4 milhões de doses – que podem render mais ou menos, dependendo do regime de aplicação a ser adotado por aqui.
A conta de Pazuello também soma as 42 milhões de doses contratadas por meio do consórcio Covax Facility – doses de uma vacina que não sabemos qual será, nem quando chegará, mas provavelmente será aplicada em duas doses, garantindo proteção para 21 milhões de brasileiros.
A respeito desse acordo, aliás, surgiu mais uma peça para o quebra-cabeça da atuação do governo federal nessa crise: o jornalista Jamil Chade apurou que o país optou pela cobertura mínima. Em uma janela que variava de 10% a 50% da população, ficamos com a primeira opção. A pasta confirmou a informação.
O outro foco de incerteza que apareceu ontem tem a ver com a Anvisa. Pazuello primeiro fez uma defesa cartorial do prazo máximo da agência, que prevê 60 dias para avaliar a solicitação de registro – considerado excessivo pelo ex-presidente da agência Willian Dib. Diante disso, os governadores começaram a falar abertamente que pretendem fazer valer a previsão da lei 13.979, que prevê a liberação de vacinas aprovadas em outros países.
Para se ter uma ideia, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), ingressou na segunda-feira com uma ação no Supremo solicitando que o estado seja autorizado a criar seu próprio programa de vacinação e a adquirir imunizantes que tenham sido aprovados em outro país. “Objetivo é que estados possam adquirir diretamente vacinas contra o coronavírus autorizadas por agências sanitárias dos Estados Unidos, União Europeia, Japão e China. Com isso, estados poderão atuar, se governo federal não quiser”, escreveu ele.
Ontem, os governadores parecem ter arrancado de Pazuello o compromisso de que o ministro apoiará essa atuação. Segundo o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), o general concordou que caso uma vacina seja aprovada nas agências reguladoras previstas na lei (a agência britânica que já aprovou a da Pfizer não está entre elas), a Anvisa tem até 72 horas para contestar essa aprovação. Caso não consiga dar essa resposta nesse prazo, o imunizante entra automaticamente para o portfólio brasileiro. E, de acordo com essa lógica, poderia ser comprada pelo governo federal e incorporada ao PNI – caso Pazuello consiga cumprir a promessa feita aos governadores.
Os dados da vacina da Pfizer enviados ao FDA, agência dos EUA, foram publicados ontem. E a CoronaVac deve ser aprovada pela agência chinesa. Os próximos capítulos dessa trágica novela não tardam.
E para complicar a trama, a Anvisa divulgou ontem uma nota em que diz que as autorizações emergenciais concedidas por países estrangeiros não se enquadram na lei. A agência brasileira também disse que é sua prerrogativa analisar e autorizar as vacinas no país, mesmo considerando a legislação. E deu uma provocada, afirmando que pode decidir não autorizar a entrada de um produto no país.
“A esta altura, parece só restar uma saída para vencer o boicote do governo: mobilizar a própria sociedade e pressionar as instituições. Há meios e precedentes para isso. A luta em defesa da Saúde foi capaz, mesmo em tempos sombrios de ditadura, de sensibilizar a população (em especial, as periferias). O SUS surgiu, em grande medida, como fruto deste combate”, defende Antonio Martins, no Outras Palavras.
Pela primeira vez, dados de fase 3 de uma vacina contra a covid-19 foram publicados em uma revista científica, com revisão de pares: os resultados do imunizante de Oxford/AstraZeneca saíram no periódico The Lancet. Parte das informações do artigo já haviam sido divulgadas via comunicado à imprensa (aquele que acabou gerando mais dúvidas do que certezas). O imunizante mostrou um perfil de segurança aceitável e apresentou uma eficácia média de 70,4% para proteger contra a doença; ela foi de 62,1% no subgrupo que recebeu duas doses padrão e de 90% entre os voluntários que receberam meia dose seguida de uma dose completa. Um dado novo é que o imunizante protegeu contra casos graves: ao todo, dez voluntários foram hospitalizados, mas todos faziam parte do grupo que recebeu o placebo.
Há uma novidade preocupante. Em ambos os regimes de doses, não houve dados suficientes para avaliar a eficácia em pessoas com 56 anos ou mais, que são justamente as que têm mais chances de morrer. Para calcular essa eficácia, seria necessário ter um número significativo de infectados nessa faixa etária. Mas os mais velhos entraram mais tarde no estudo e, com isso, das 131 infecções analisadas, só cinco foram entre eles. “Temos que esperar mais para ter dados suficientes para fornecer boas estimativas de eficácia da vacina em subgrupos menores”, diz Merryn Voysey, um dos autores do artigo.
No caso do Brasil – onde essa é a única vacina com acordo de compra já acertado pelo governo federal – a ideia é começar a vacinação justamente pelos idosos; agora há que se pensar o quanto a informação poderia mudar os planos e/ou atrasar ainda mais o já tímido cronograma. Isso porque a liberação do uso do produto nos mais velhos depende da comprovação de que funciona para este público, como lembra a reportagem da Folha.
Um detalhe chamou particularmente a nossa atenção: a aplicação de apenas uma dose conferiu eficácia de 64.1%, medida após 21 dias. É claro que não dá para saber o quanto essa proteção duraria caso não houvesse a dose de reforço, porque isso não foi testado. Mas o número salta aos olhos.
Outro ponto positivo é que o regime de baixa dosagem foi cerca de 60% eficaz na redução de infecções assintomáticas; isso indica que a vacina pode ter um papel importante (ainda que não determinante) para conter as transmissões. Só que, como observa a Nature, não ficou claro se o regime em duas doses também reduzia significativamente essas infecções. Junto com o baixo preço e as condições mais simples de armazenamento e transporte, essa pode ser uma boa vantagem sobre concorrentes como a Pfizer e a Moderna, em que tal potencial não foi avaliado (só os ensaios de Oxford/AstraZeneca testaram seus voluntários em busca de infecções assintomáticas).
Talvez o cenário ideal fosse o de cada governo ter vacinas com perfis diferentes para atingir públicos-alvo distintos: imunizantes altamente eficazes entre idosos poderiam ir para esses grupos, enquanto os que demonstram reduzir a transmissão poderiam ser administrados a trabalhadores que têm contato com muita gente. Mas não há cenários ideais, ao menos por aqui. Neste momento, a vacina de Oxford/AstraZeneca – possivelmente menos eficaz, porém mais simples e barata – está sendo aventada como a melhor opção para os países de baixa e média renda (que são também os que dificilmente conseguirão vacinar suas populações inteiras tão cedo).
No mais, os questionamentos em relação a como os dados foram coletados, reunidos e analisados permanecem basicamente os mesmos que pontuamos aqui: eles não se referem a um grande ensaio único, com um único protocolo, mas a um combinado de estudos independentes. E as diferenças entre eles ficaram ainda mais evidentes no artigo de ontem. Por exemplo: os dois grupos não tiveram apenas uma diferença na dosagem, mas também no intervalo entre as duas doses. Poderia ser esse o motivo da eficácia distinta? Não há como saber sem mais estudos. Inicialmente, os pesquisadores da AstraZeneca disseram que pretendiam continuar os ensaios com mais voluntários. Mas agora não há mais muita certeza: Mene Pangalos, um dos vice-presidentes executivos da farmacêutica, disse ontem que a empresa ainda está deliberando sobre isso.
Os dados de Oxford/AstraZeneca já estão sendo enviados a agências reguladoras de todo o mundo por submissão contínua. Em alguns países, porém, autorizações emergenciais ainda podem demorar. A farmacêutica espera, por exemplo, que a FDA exija a conclusão dos testes que estão em curso nos EUA. E a agência reguladora daquele país não tem confiado muito na AstraZeneca há alguns meses, narra o New York Times. A sucessão de bolas-fora teria começado no dia 8 de setembro, quando a imprensa divulgou a interrupção dos ensaios clínicos devido a um evento adverso grave; o problema é que a farmacêutica havia concluído uma reunião com a FDA horas antes, sem mencionar o problema.
Por aqui, Lily Yin Weckx, coordenadora dos testes, disse que com as últimas informações já será possível solicitar uso emergencial à Anvisa. Mas reiteramos a ressalva sobre a indefinição quanto à eficácia em idosos. O guia da Anvisa para a aprovação emergencial diz que as empresas devem definir, em seus pedidos, qual é o público-alvo da vacina, e que essa definição precisa ser feita com base nas informações advindas dos testes.
Quem estava curioso para ver os dados completos da Pfizer e da BioNTech, que foram enviados para avaliação da FDA, teve ontem um dia cheio. A agência americana publicou um documento de 92 páginas com as informações entregues pelas empresas e ainda um relatório, de 52 páginas, com sua própria análise dos dados. Está definitivamente verde o sinal para a aprovação, que deve vir muito em breve: amanhã um grupo de consultores da FDA vai se reunir novamente e, depois de alguns dias, devem anunciar uma decisão.
Embora a agência do Reino Unido já tenha dado sua autorização emergencial e a vacinação tenha começado por lá, a posição da FDA é considerada muito importante porque os reguladores britânicos se fiaram mais fortemente na análise de dados fornecida pela própria empresa. O relatório da FDA é a avaliação independente mais completa até o momento. Seus pesquisadores confirmaram a eficácia de 95% da vacina após duas doses, administradas com três semanas de intervalo. E eles também encontraram evidências de que há eficácia aceitável (52%) após uma única dose. Além do mais, a vacina funcionou bem independentemente do grupo étnico, peso ou idade dos voluntários.
O relatório traz ainda um exame minucioso sobre os efeitos colaterais. Reações no local da injeção ocorreram em 84,1% dos voluntários, fadiga em 62,9%, dor de cabeça em 55,1%, calafrios em 31,9% e febre em 14,2%. Reações graves ocorreram em 2,8% dos voluntários com mais de 55 anos e em 4,6% daqueles com menos de 55 anos. Já os efeitos adversos graves (piores do que as reações graves) ocorreram em 0,5%, mas apareceram na mesma proporção entre os grupos que tomaram a vacina ou o placebo. Mas um efeito particular, a paralisia de Bell (uma fraqueza muscular ou paralisia temporária), foi encontrado em quatro voluntários do grupo vacinado, e em nenhum do grupo placebo. Os reguladores recomendam monitorar as pessoas para identificar especificamente esse problema. Além disso, houve no grupo da vacina 64 casos de linfadenopatia, um inchaço dos gânglios linfáticos, contra seis no grupo do placebo.
Em uma reunião da comissão externa da Câmara que discute o enfrentamento à covid-19, o presidente da Pfizer no Brasil, Carlos Murillo, disse que a empresa conseguiria entregar quatro milhões de doses ao Brasil no primeiro trimestre do ano que vem – estaria mantido o compromisso de entregar 70 milhões até o fim do ano. Mais cedo, Eduardo Pazuello afirmou que no primeiro semestre o país poderia receber 8,5 milhões de doses, suficientes para vacinar 4,2 milhões de pessoas. É pouco: só os profissionais de saúde somam 5,8 milhões.
Dilma Miranda aguardava há 12 dias uma vaga num leito de UTI. Ficou metade desse tempo ‘internada’ em uma cadeira no Hospital do Andaraí, administrado pelo governo federal. O quadro da senhora de 61 anos piorou e ela foi intubada em uma enfermaria da própria unidade, onde permaneceu outros seis dias. Enquanto isso, sua família travava uma disputa judicial para conseguir uma vaga no SUS que garantisse o tratamento intensivo de que ela precisava. Ela morreu ontem, durante a transferência para outro hospital.
Tudo isso aconteceu no Rio de Janeiro, onde governador interino, o atual prefeito e também o que foi eleito afirmam que não vão decretar medidas de isolamento social porque ‘a população não vai cumprir’. A covardia das autoridades é combinada pela dissimulação do colapso da saúde, já que a capital fluminense tem uma curiosa contagem: cerca de 250 pessoas esperam por vaga em UTI, mas a ocupação dos leitos ontem era de 92%.
Enquanto a imprensa no mundo todo repercutia entrevistas com a senhorinha inglesa que foi a primeira a ser vacinada no Reino Unido e comemorou muito porque poderia passar o Natal com os netos, por aqui a família de dona Dilma assistia a sua morte. Vai atravessar as festas em luto – e, infelizmente, não será a única.
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A vacina transtorna o governo Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU