02 Dezembro 2020
A corrida pela vacina contra a Covid revela a preponderância das empresas de biotecnologia, as start-ups do setor farmacêutico, na pesquisa e seu modelo hiperfinanceirizado.
A reportagem é de Justin Delépine, publicada por Alternatives Économiques, 30-11-2020. A tradução é de André Langer.
A corrida pela vacina Covid-19 está entrando num dos seus últimos estágios, e as equipes de pesquisa estão se superando nos anúncios sobre a sua “taxa de eficácia”. Em meados de novembro, o laboratório americano Pfizer e a empresa alemã de biotecnologia BioNtechPlus reivindicaram uma eficácia de mais de 90% para sua vacina desenvolvida em conjunto. Poucos dias depois, a Moderna, por sua vez, afirmou que sua vacina teve uma eficácia de 94,5%, enquanto a AstraZeneca anunciou 70% para a sua.
Embora essas taxas sejam promissoras, elas devem ser consideradas com cautela. Elas foram observadas em pequenos contingentes de pessoas, além disso, com muito pouco tempo retrospectivo, e a totalidade dos dados ainda não foi comunicada às autoridades sanitárias.
Acima de tudo, esses anúncios mostram qual equipe de pesquisa está mais à frente, liderando o esforço de pesquisa na indústria farmacêutica. No entanto, não encontramos nesta lista os gigantes do setor, como Sanofi, Roche ou Novartis, mas nomes até então desconhecidos do grande público: Moderna ou BioNTech. Se a gigante Pfizer está associada à Moderna, é esta última que realmente traz inovação e pesquisa, cabendo à Pfizer principalmente o fornecimento da capacidade de produção, ou seja, as fábricas.
Tanto a Moderna como a BioNTech são excelentes exemplos do lugar que as empresas de biotecnologia ocuparam. Estas são estruturas pequenas e relativamente jovens. A primeira tem apenas dez anos e emprega pouco mais de mil pessoas, ao passo que a segunda foi criada em 2008 e conta com 1.300 funcionários. Nada a ver com os líderes do setor, as “Big Pharma”, esses laboratórios com décadas de existência e que empregam dezenas de milhares de pessoas.
Grandes start-ups de um lado e multinacionais de outro: “É uma boa ilustração de como a inovação farmacêutica funciona atualmente”, disse Els Torreele, pesquisadora em saúde global, membro do Institute for Innovation and Public Purpose (IIPP) e ex-chefe da campanha de acesso a medicamentos da Médicos Sem Fronteiras. “Os grandes laboratórios terceirizaram sua pesquisa para essas pequenas empresas de biotecnologia”.
O que poderia ser considerado o negócio principal da indústria farmacêutica agora parece muito caro e arriscado aos olhos dessas grandes empresas. “A biotecnologia tornou-se o coração da P&D no setor farmacêutico”, chega a se orgulhar Franck Mouthon, presidente da France Biotech, a associação das empresas do setor de start-ups.
Mas por que chegamos a isso? “A financeirização das grandes firmas pressiona pela terceirização dessas atividades”, analisa Mathieu Mathalban, economista da Universidade de Bordeaux e membro do grupo Les Économistes Atterrés. “Os grandes laboratórios que desejam salvar seu patrimônio tendem a assumir pequenas participações nessas empresas de biotecnologia em vez de financiar diretamente a pesquisa e, muitas vezes, comprá-las assim que houver uma perspectiva de mercado, ou seja, uma inovação comprovada”.
Mas para que essa organização econômica funcione, é preciso que durante anos, ou melhor, uma década na prática, ou seja, o tempo de fazer a pesquisa, essas jovens empresas sejam financiadas com prejuízo.
“O modelo das biotecnológicas envolve empresas cujos produtos ainda estão em fase de desenvolvimento: a Moderna, por exemplo, ainda não vendeu um único tratamento. Portanto, elas acumulam perdas financeiras durante anos”, resume Mathieu Montalban.
Portanto, há a intervenção de atores do capitalismo de risco, cujo papel é investir em empresas com alto potencial. Eles aportam a liquidez necessária para suportar as perdas durante anos e, principalmente, o risco de falência, que é muito alto. A esmagadora maioria das empresas de biotecnologia, como as start-ups em geral, vai à falência alguns anos após sua criação. O grau de risco e incerteza é particularmente alto no campo médico, e mais ainda no campo das vacinas.
“Há a necessidade de uma empresa biotecnológica de sucesso para compensar o investimento nas outras dez que fracassaram”, diz Mathieu Montalban. O capital de risco, portanto, requer um alto retorno do investimento para a empresa cuja inovação resultou em um tratamento ou vacina. Esse retorno do investimento pode se traduzir em uma margem significativa retirada do produto assim que ele for comercializado, mas também em uma forte valorização da empresa para permitir que o ator do capital de risco revenda suas ações a um preço alto. Na verdade, não se pretende permanecer por muito tempo no capital dessas empresas de biotecnologia, e muitas delas são, portanto, adquiridas por grandes laboratórios farmacêuticos.
Estes diferentes mecanismos tendem, assim, a financeirizar pesadamente estas jovens estruturas: por exemplo, sem nunca ter comercializado um único produto, a Moderna já se encontra na Bolsa. Para aumentar sua lucratividade e tornar rentável seu investimento, a principal ferramenta à disposição dessas empresas de biotecnologia, uma vez que sua inovação esteja operacional, é a patente de sua invenção.
“O objetivo da inovação farmacêutica é ter o monopólio, o que permite estabelecer margens muito confortáveis”, diz Els Torreele. Esse poder de mercado, materializado pela patente, pressiona ainda mais para cima os preços dos tratamentos e das vacinas. Um preço pago por organizações de reembolso, como a Seguridade Social francesa. Obviamente, este não é o único fator que pressiona a inflação dos preços desses produtos, mas a financeirização dessas jovens estruturas contribui para isso.
Nesse caso, a Moderna e a BioNtech estão avançando os preços situados em torno de 25 dólares a dose para sua vacina contra Covid-19. Sabendo que as duas vacinas candidatas requerem duas doses, o custo de cada vacina pode ultrapassar os 50 dólares. Dado o tamanho da população a ser vacinada, a conta para o erário público de cada país provavelmente será alta.
“Os preços das vacinas estão geralmente bem abaixo de um dólar a dose, mas a indústria atualmente está empurrando a lucratividade desse mercado, até então um mercado de valor agregado relativamente baixo, para um negócio muito lucrativo”, explica a cientista Els Torreele.
Embora as economias de escala devam puxar os preços para baixo, em particular no caso da Covid, onde os volumes de doses a serem produzidos podem chegar a bilhões.
Este nível de preços é ainda mais surpreendente dado que as autoridades públicas têm apoiado amplamente a pesquisa desta vacina, seja através de encomendas de doses ou de mecanismos de apoio à pesquisa, específicos para o combate à Covid-19 ou não.
“As empresas de biotecnologia também são geralmente construídas a partir de inovações realizadas na universidade, acrescenta Els Torreele. A plataforma RNA, que está por trás da vacina candidata da Moderna, vem do Instituto Nacional de Saúde (NIH) americano”.
Finalmente, a terceira fase clínica de pesquisa da vacina, em andamento e que consiste em testá-la em dezenas de milhares de pessoas para medir sua eficácia, está sendo realizada em hospitais. São eles que cuidam dos pacientes e não os grandes laboratórios ou as pequenas empresas de biotecnologia.
Curiosa lógica econômica, que vê o poder público intervir em cada etapa do desenvolvimento da vacina, responsabilizando-se por parte significativa do risco financeiro inerente à sua pesquisa, e, no entanto, pagar um alto preço por esta vacina...
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Vacinas: o modelo hiperfinanceirizado de pesquisa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU