29 Agosto 2020
Lideranças religiosas australianas levantaram objeções a uma potencial vacina contra a covid-19 em desenvolvimento na Universidade de Oxford com base na preocupação de que ela contém linhagens celulares “de fetos humanos abortados seletivamente”. As objeções foram enviadas em carta ao primeiro-ministro, Scott Morrison, semana passada, assinada em conjunto pelo arcebispo católico de Sydney, Dom Anthony Fisher, pelo arcebispo anglicano de Sydney, Rev. Glenn Davies, e pelo arcebispo ortodoxo grego da Austrália, Dom Makarios Griniezakis.
No entanto, os cientistas dizem que este processo de desenvolvimento é um método comprovado e que as prioridades religiosas deveriam ser a de garantir a saúde pública contra o coronavírus. O próprio Vaticano já lançou, no passado, um documento em que permite o uso de vacinas com base em linhagens celulares fetais caso não haja alternativas disponíveis. Tais objeções religiosas ocorrem depois que Morrison anunciou um acordo com a Universidade de Oxford, a qual entregará 25 milhões de doses de sua potencial vacina de covid-19, caso aprove nos testes.
Então, por que estes líderes eclesiásticos estão questionando essa vacina em especial, e há alguma alternativa?
A reportagem é de Mostafa Rachwani, publicada por The Guardian, 26-08-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O que é a linhagem celular e como é feita?
Essencialmente, uma linhagem celular são células cultivadas para uso médico e de pesquisas, com algumas modificações de forma a se multiplicar indefinidamente. Nesse exemplo, elas são usadas como um veículo para o desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus. A linhagem celular em questão, a HEK293, foi desenvolvida na década de 1970 e é comumente empregada no desenvolvimento de vacinas e pesquisas médicas.
A HEK293 deriva de células de embrião de rim humano e é hoje a segunda linhagem celular mais frequentemente utilizada em biologia e biotecnologia. Linhagens celulares humanas têm a vantagem de poder produzir proteínas as mais parecidas com as que são produzidas naturalmente pelos seres humanos.
Quais as objeções morais religiosas à vacina de Oxford?
O foco da carta recai sobre o uso de uma linhagem celular cultivada a partir de um feto abortado seletivamente no começo da década de 1970. “Acenamos que qualquer vacina de covid-19 cultivada com base em uma linhagem celular fetal levanta sérias dúvidas de consciência entre uma parcela da nossa população”, diz a carta. Na terça-feira, Davies contou à agência de notícias ABC que “o uso deste tecido pela ciência é repreensível”. Os ensinamentos da Igreja Católica nessa área estão contidos na instrução Dignitas Personae: sobre algumas questões de bioética, documento de 2008 emitido pela Congregação para a Doutrina da Fé[1].
A Igreja afirma que os pesquisadores têm o dever ético de não usar “‘material biológico’ humano de origem ilícita”, o que, segundo ela, inclui qualquer linhagem celular fabricada a partir de fetos abortados seletivamente, não importa há quanto tempo. A doutrina, no entanto, qualifica a proibição total, dizendo que pode haver situações nas quais “razões graves poderiam ser moralmente proporcionadas para justificar” a utilização de tais vacinas. “Assim, por exemplo, o perigo para a saúde das crianças pode autorizar os pais a utilizar uma vacina, em cuja preparação foram usadas linhas celulares de origem ilícita, permanecendo firme o dever da parte de todos de manifestar o próprio desacordo em matéria e pedir que os sistemas sanitários disponibilizem outros tipos de vacina”.
O que os especialistas em ética médica dizem sobre o uso destas vacinas?
O Dr. Diego Silva, professor de bioética na Universidade de Sydney, acredita que os líderes religiosos têm ignorado um outro dilema moral importante. “Temos a responsabilidade de refletir sobre as nossas obrigações éticas com o restante dos australianos também”. Silva diz que a vacina sendo desenvolvida é eticamente correta e que a prioridade deve ser a de “minimizar o dano em curso, a morbidade e a mortalidade associadas com a covid-19”.
As lideranças religiosas precisam pensar a saúde da comunidade como um todo, acrescentou Silva, quando da avaliação de uma vacina. “Parte do problema é que a Igreja Católica interpreta como uma questão de ética médica, como se fosse somente entre a pessoa e o médico. Quando, na verdade, o dilema é um dilema ético de saúde pública. Tem a ver com o que devemos à nossa comunidade. O que devemos uns aos outros enquanto comunidade? Portanto, acho que a questão está mal colocada”.
Na segunda-feira, 24 de agosto, Robert Booy, professor de vacinologia da Universidade de Sydney, contou ao jornal Guardian Austrália que as vacinas vêm sendo desenvolvidas a partir de fetos abortados há 50 anos e que grupos cristãos já haviam aceito este uso pela “grande distância entre a linhagem celular e a vacina final”.
Como outras religiões veem essa questão?
Outros grupos religiosos não se uniram às objeções levantadas. Embora tenham organismos centrais e mundiais representativos, as comunidades islâmica, budista, hindu e judaica não levantaram objeções no passado contra outras vacinas nem contra os processos de desenvolvimento de vacinações. Houve quem debateu em torno da gelatina de porco ou bovina usada em certas vacinas, mas sem haver uma resposta coordenada no estilo da carta enviada ao primeiro-ministro.
Como a vacina de Oxford é produzida?
A vacina desenvolvida em Oxford utiliza uma versão grandemente alterada de um vírus geneticamente modificado que provoca a gripe comum em chimpanzés. Os cientistas alteraram o vírus modificado para fazê-lo parecer como as células do coronavírus, adicionando os seus “picos de proteínas” (protein spikes) distintivos. A ideia é que a vacina ensine o sistema imunológico a atacar o vírus. O professor Stephen Turner, coordenador do programa de microbiologia da Universidade Monash, em Melbourne, disse que a decisão de empregar linhagem celular se baseia na maneira como o vírus funciona. “Um dos motivos de terem escolhido a linhagem celular humana para a produção da vacina é porque a plataforma da vacina é o próprio vírus. Os vírus não codificam as informações exigidas em si mesmas para de fato replicarem-se, na verdade elas precisam sequestrar os processos celulares”.
Os cientistas vêm usando as células HEK293 como “fábricas” para a vacina, já que é fácil inserir novos genes virais nelas. Elas também produzem grandes quantias de proteínas virais, as quais são essenciais para o desenvolvimento de uma resposta imunológica. Turner explicou que a linhagem celular é um conhecido “burro de carga” e é um método aprovado para o desenvolvimento de vacinas com eficácia. “Esse método produz, na verdade, uma grande quantidade do vírus, e isso é importante, já que estamos pensando em produzir bilhões de doses”.
Há alternativas?
A Organização Mundial da Saúde identifica 169 vacinas potenciais em desenvolvimento no mundo, pelo menos até o último dia 20 de agosto. Dessas, trinta estão em avaliação clínica, incluindo a vacina de Oxford. Algumas dessas vacinas não exigem uma célula viva e, portanto, não usam uma linhagem celular, com algumas empregando processos sintéticos. Outras utilizam linhagens celulares de animais como hamsters.
Até agora, Morrison não mencionou nenhum acordo com os desenvolvedores das outras vacinas. Alocaram-se, no entanto, 5 milhões de dólares para a vacina desenvolvida pela Universidade de Queensland, a qual se encontra na fase de testes. Turner crê que, com o passar do tempo, haverá uma escolha entre as vacinas disponíveis. “Penso que no futuro haverá uma infinidade de vacinas entre as quais poderemos escolher”, completou. Porém, com o número mundial de mortes pelo coronavírus chegando a um milhão, Silva defende que a prioridade urgente seja, neste momento, produzir uma vacina segura e eficaz. “O que precisamos é ir atrás da melhor vacina, e não necessariamente nos preocupar sobre se ela vem de linhagens celulares ou não”.
[1] Disponível aqui.
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Por que líderes religiosos australianos opõem-se à vacina de Oxford contra a covid-19? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU