20 Setembro 2020
Para infectologista Raquel Stucchi, vacina é única possibilidade de combate real à covid-19. “Mas não deve estar disponível antes de março”.
A entrevista é de Eduardo Maretti, publicada por Rede Brasil Atual - RBA, 19-09-2020.
O Brasil tem cerca de 15% dos casos de contaminação e de mortes causadas pelo novo coronavírus em todo o mundo – embora tenha apenas 2,8% da população. Na opinião da infectologista Raquel Stucchi, da Unicamp, a falta de planejamento e de políticas sérias, baseadas em protocolos científicos, pode ter feito a população, pelo menos de algumas cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, ter adquirido algo próximo ao que se convencionou chamar de “imunidade de rebanho”. Imunidade de rebanho é quando o nível de contágio diminui depois de o vírus infectar uma grande quantidade de pessoas.
“Não tivemos política. Foi um desastre em termos de planejamento. Hoje, na minha avaliação, o que parece é que o fato de a gente não ter tido um planejamento, não ter feito isolamento adequado, pode ter favorecido um número maior de pessoas expostas, com quadros leves ou assintomáticos, e que possa conferir por um período essa imunidade de rebanho. Mas o preço que nós pagamos foi o número de óbitos”, diz.
Atualmente, duas vacinas são consideradas mais próximas de se tornar realidade no Brasil: a da empresa chinesa Sinovac e a da universidade britânica de Oxford, desenvolvida em parceria com a empresa farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca. Na semana passada, o otimismo em relação à segunda sofreu um baque, quando se deu o caso de um efeito colateral grave em um dos voluntários. Nesta semana, os testes foram retomados, para alívio dos otimistas. Porém, a infectologista da Unicamp é cautelosa, embora considere que não há outra solução para a pandemia no horizonte a não ser uma vacina.
“A vacina, sem dúvida, parece, é a única coisa que vai conseguir fazer com que a gente possa ter uma vida como em 2019. Agora, sobre a expectativa de que tenhamos uma vacina, ela não deve estar disponível antes de março, abril do ano que vem.”
Raquel comentou também, em entrevista à RBA, o anúncio, pelo governo de São Paulo, da volta às aulas em outubro. Ela avalia a questão sob dois pontos de vista. Sob a ótica sanitária, acha que já há condições de retomar o calendário, desde que seja opcional para as famílias e que sejam respeitados novos protocolos. Do ponto de vista social, para ela, “as famílias que precisam devem ter o direito e a possibilidade de levar os filhos à escola”, considerando a realidade brasileira, para garantir a muitos a única refeição do dia.
Raquel Stucchi. (Foto: Reprodução/RBA)
Como avalia a previsão de volta às aulas em São Paulo a partir de 7 de outubro?
Do ponto de vista sanitário, estamos em condições de voltar às aulas, na minha opinião. Acho que tem que ser opcional, mas as famílias que precisam devem ter o direito e a possibilidade de levar os filhos à escola. Em termos de socialização das crianças e adolescentes é importante, e também garantir para muitos a única refeição do dia.
Uma coisa que me preocupa muito, além da socialização e refeição para muitas crianças que a escola oferece, é que muitas pessoas que precisam sair para trabalhar, que se reuniram, estão deixando as crianças em locais quase clandestinos, sem nenhum protocolo. Teoricamente, esses locais não existem. Uma coisa é pensar “eu trabalho numa empresa, a empresa me colocou em home office, e dou um tablet para cada um dos meus filhos”. Mas isso não é a realidade da maior parte da população.
E os professores, que vão ficar expostos?
Nós já estamos na fase amarela na maior parte do estado de São Paulo. Já abriu comércio, restaurantes, bares, academias. Os professores saíram de casa, não para atividades profissionais. E as crianças também. A chance de já terem entrado em contato com o novo coronavírus é muito grande, porque os pais e os avós já saíram, e essas crianças não estão quietinhas em casa, nem mesmo os adolescentes, a maior parte deles. Assim como em todas as outras atividades profissionais, que já estão na rua, muitas em ambientes fechados. Sinceramente, não acho que o risco seja aumentado. Na maioria dos locais onde teve abertura de escolas, no mundo todo, com exceção de Israel, não teve nenhum grande problema, se bem que não dá pra comparar com a Europa, porque o Brasil flexibilizou em um momento muito diferente do que a Europa fez.
Claro que, assim como as outras atividades que fecharam e reabriram, todas tiveram que se adaptar aos novos protocolos. Não vai abrir como era antes. O hospital, o escritório, o supermercado, a farmácia, todo mundo teve que fazer isso. E as escolas também, tanto públicas quanto privadas, e todas tiveram tempo para isso.
Duas semanas atrás houve aquela invasão das praias. Foi observada alguma repercussão, duas semanas depois?
Por enquanto ainda não, pelo menos nenhuma divulgação. Na minha região, Campinas, a gente não teve aumento de internação, estamos numa situação confortável, entre aspas, na região. Claro que o vírus continua, a gente tem que continuar com os cuidados, a gente já sabe que ele gosta do verão também, a Europa nos mostrou isso. Até a semana que vem a gente tem um prazo ainda, dos 14 dias, pra ver se teria uma repercussão maior (decorrente do feriado de 7 de setembro).
Você acredita em imunidade de rebanho?
Olha, para várias doenças de transmissão respiratória isso existe, para outras doenças virais, mas bacterianas também, como pneumonia, meningite. Para o novo coronavírus, a impressão que eu tenho, baseada nos locais que já flexibilizaram há mais tempo, é que por um período de tempo é possível que tenha imunidade de rebanho.
A gente flexibilizou tudo, até mesmo na cidade de São Paulo, quando a curva estava subindo, de casos e óbitos ainda, o que não aconteceu na Europa. Lá, eles começaram a flexibilizar quando já tinham mais de duas semanas de estabilidade lá embaixo, quase no pé da curva de casos e óbitos. A gente tendo flexibilizado antes, a chance de exposição de um maior grupo de pessoas ao novo coronavírus é muito grande. Talvez isso explique – pensando até em imunidade de rebanho, que não tenha tido um rebote importante de casos em São Paulo, na capital, e Rio de Janeiro, capital, onde não teve uma explosão do número de casos.
O fato de a gente não ter tido um grande rebote nessas cidades que eu citei fala um pouco a favor da imunidade de rebanho, sim, às custas de a gente nunca ter tido um isolamento de fato, como a ciência falava que tinha que ter.
O governo da Grã-Bretanha alertou que poderá retomar o confinamento na Inglaterra, depois de aumentar o número de casos…
Também na França… Mas veja. Lá, o planejamento de controle da pandemia foi muito diferente. Reino Unido, França, Espanha, as pessoas ficaram trancadas em casa por quase oito semanas de fato, com taxa de isolamento muito alta, de quase 70% mesmo. Aqui a gente não teve isso em nenhum momento, nem quando se decretou lockdown no Norte do país. Como a gente não fez isolamento direito, deve ter um número muito grande de pessoas que já se expuseram, e maior até do que os inquéritos sorológicos podem mostrar, em função até da ineficácia dos testes rápidos e o que se usa para fazer esses inquéritos. Na Europa, realmente, eles ficaram em casa e teve um número menor de pessoas expostas na primeira onda, vamos dizer, e agora tem medidas muito diferentes da flexibilização. Muitos países flexibilizaram sem indicar uso de máscaras, e agora estão retomando essas medidas.
E, em comparação, a política do governo brasileiro frente à pandemia?
Não tivemos política. Foi um desastre em termos de planejamento. Hoje, na minha avaliação, o que parece é que o fato de a gente não ter tido um planejamento, não ter feito isolamento adequado, pode ter favorecido neste momento um número maior de pessoas expostas, com quadros leves ou assintomáticos, e que possa conferir por um período essa imunidade de rebanho. Mas o preço que nós pagamos foi o número de óbitos.
O número de óbitos e de casos no Brasil, pelos números que se tem, são cerca de 15% do mundo. Um número gigantesco…
Sim, foi o que a gente pagou por não ter um planejamento de controle de pandemia, em todas as esferas. Isso começou na federal, mas se manteve nos estados e muitos municípios, cada um fazendo como queria. Por isso mantivemos e ainda mantemos um platô muito alto de casos e óbitos. É que a gente se acostuma, não é? “Ah, era mil, agora são oitocentos, então ok.” De média móvel são 700? Mas isso é um absurdo, em termos de mortes diárias. Está assim há duas semanas. A população se acostuma com isso, está meio cansada, e como não tem alguém que mostre o perigo da doença, em termos de liderança no país, as pessoas acreditam no que é mais conveniente para elas.
Uma vacina pode ser uma solução em curto, médio, longo prazo?
A vacina, sem dúvida, parece, é a única coisa que vai conseguir fazer com que a gente possa ter uma vida como em 2019. Agora, sobre a expectativa de que tenhamos uma vacina, ela não deve estar disponível antes de março, abril do ano que vem. E mesmo assim, neste primeiro momento, não vai ser para todo mundo. O que aconteceu na fase três da vacina de Oxford, uma reação grave, deve ter convencido a todos de que, quando a gente fala de vacina, não se pode pular etapas. Na fase três tem que ter um tempo de observação pra ver se a vacina protege, e ver se não tem efeito adverso, ou, se tem, qual a magnitude disso. Se é um caso para um milhão ou para dez mil pessoas. Isso muda muito.
O teste PCR é o único que tem credibilidade?
Muitos gestores, inclusive na Unicamp, fazem o teste como critério para retorno de atividades. Mas isso só tem sentido se você conseguir fazer testes semanalmente de todos. Testar com PCR é o mais importante, é o único modo, que se saiba até agora, que foi efetivo para controle da epidemia nos países que fizeram, Japão, Coreia, que não tiveram muitos óbitos, porque faziam diagnósticos logo no início, na fase pré-sintomática. Mas faziam milhares, milhões de testes semanalmente.
Você vai testar hoje, sexta-feira? Tem que testar sexta-feira que vem. O teste realmente faz o diagnóstico de ter o vírus, mas o teste negativo pode dar uma falsa sensação de segurança, que “não tenho, não preciso me cuidar tanto com máscara, distanciamento social, higienização de mãos”.
Pode não ter hoje e pegar amanhã…
Pegar amanhã… O exame tem 30% de falso negativo. Fazer para retomada de aula… Tem gestor falando isso, todo mundo vai ficar contente e achar que isso é uma medida importante de prevenção, mas do ponto de vista científico, isso não se justifica. E fazer teste em todo mundo em seis meses? Não fizemos nem no auge na pandemia, e não temos condições nem de logística, nem de oferecer testes pra todo mundo. O que tem que ter é a garantia de que todos os envolvidos na educação tenham o teste disponível se tiverem sintomas que possam se associados à covid.
Sobre uma questão de teste e sintomas, a perda de olfato é um sintoma decisivo para diagnosticar a covid?
Hoje em dia, se você pegar o manual do ministério – e eu acho que, nisso, está correto –, perda súbita de olfato é critério de diagnóstico de covid. Ponto. Vai fazer o exame, e se der positivo, confirmou. Se der negativo, é covid e ponto (se o paciente teve perda súbita de olfato). Você tem o falso negativo do exame. Mas não tem nenhuma outra doença que dê perda súbita de olfato. Em doenças neurológicas, normalmente vai piorando devagar, em algumas doenças neurológicas mais raras. Mas perda súbita de olfato, de paladar, é o coronavírus que dá. Não precisa nem ter febre nem tosse. Isso quase que faz o diagnóstico clínico de covid, mesmo que o exame venha negativo.
A perda de olfato tem que estar associada à perda de paladar ou não?
Não. Pode ser independente. Pode ter só perda de olfato, só perda de paladar ou os dois.
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Brasil tem cerca de 15% dos casos de contaminação e de mortes em todo o mundo, embora tenha apenas 2,8% da população - Instituto Humanitas Unisinos - IHU