14 Agosto 2020
Fortalecido após insinuar demitir-se, Guedes quer cortes expressivos na Saúde e Educação. Bolsonaro engolirá medidas antipopulares, às vésperas da eleição? Esquerda entrará, enfim, em campo? E mais: o possível tratamento sorológico da Covid.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outras Palavras, 13-08-2020.
O ex-ministro da Saúde, Ricardo Barros, será o novo líder do governo na Câmara. Deputado pelo Progressistas (PP), ele está no sexto mandato e já exerceu esse mesmo cargo no governo tucano, além de ter sido vice-líder em governos do PT. Ele substitui o novato Major Vitor Hugo (PSL-GO), que se tornou o homem errado na hora errada no momento em que, envolto em escândalos, Jair Bolsonaro operou uma guinada das crises institucionais diárias para o pragmatismo. Nas suas palavras, ele era “o líder de um governo que não queria ter uma base”.
Já Barros é um prócer do Centrão. Seu nome já vinha sendo cotado para o cargo – inclusive, como parte de um teste de afinidades com o Planalto que poderia gerar frutos mais graúdos no futuro, como a entrega das chaves do Ministério da Saúde após a saída de Eduardo Pazuello. (Sempre bom lembrar que a secretaria de Vigilância em Saúde já está nas mãos do Centrão, sendo comandada desde junho por um indicado do PL).
Especulações à parte, a mudança na Câmara consolida o poder do bloco de partidos fisiológicos que vende apoio em troca de cargos e tem no governo Bolsonaro um prato cheio. Já são 56 pedidos de impeachment contra o presidente, que no front ofensivo precisa de votações expressivas tanto se quiser continuar na via neoliberal das reformas defendidas por Paulo Guedes, quanto se preferir adotar medidas mais populares, como ampliação da transferência de renda e investimentos em infraestrutura.
No momento, Bolsonaro cumpre intensa agenda de inaugurações em clima de campanha eleitoral – o que não só incomoda governadores atacados pelo presidente nessa pandemia, como ajuda a enxergar com riqueza de detalhes o racha aberto dentro do próprio governo desde que a crise sanitária começou. De um lado, os ministros da Casa Civil, Braga Netto, do Desenvolvimento Regional Rogério Marinho, e da Infraestrutura Tarcísio Freitas defendem o que Flávio Bolsonaro caracterizou de forma singela como um ‘dinheirinho’ para obras públicas.
O outro lado, capitaneado por Guedes, está sangrando – como ficou claro com os pedidos de demissão de Salim Mattar, Paulo Uebel, Rubem Novaes e Mansuetto Almeida. E o processo de debandada parece não ter chegado ao fim: segundo O Globo, fontes ligadas à área política do governo afirmam que mais dois membros da equipe econômica – o secretário de Fazenda, Waldery Rodrigues, e o de Produtividade, Carlos da Costa – poderiam sair, levando a dez o número de baixas.
Ontem, como observou Vinicius Torres Freire, Bolsonaro ‘assoprou’ Guedes: em um pronunciamento ao lado do ministro e de seus rivais (Rogério Marinho e Tarcísio Freitas) falou que respeita o teto de gastos, medida aprovada às custas de muita repressão policial, na contramão da opinião da maioria da população e que vem sendo problematizada durante a pandemia. Nos bastidores, Bolsonaro teria orientado a ala do governo que tenta flexibilizar o teto a suspender temporariamente propostas que desagradem Guedes para evitar que ele seja o próximo a jogar a toalha. Por seu turno, o ministro da Economia se realinhou a Maia, como destacamos por aqui, e tem sentenciado que driblar o teto é o caminho mais curto para o impeachment. De qualquer forma, mesmo permanecendo no barco, ele já é um “ex-superministro”, como define Bernardo Mello Franco. Além da Faria Lima, ninguém há de lamentar o ocorrido.
São essas peças que se alinham para a disputa fundamental que será travada no Congresso, em torno da proposta de orçamento para 2021 que precisa ser enviada pelo Executivo até o fim do mês. Há sinais de cortes sérios – como o R$ 1 bilhão das universidades aventado pelo MEC – e movimentações confusas, como a não inclusão dos recursos necessários para tirar o Renda Brasil da retórica (já que nem no papel o programa está). Guedes & cia cada vez mais limitada também querem aprovar gatilhos que impeçam despesas, de modo a proteger o teto no ano que vem.
Essa semana, o Conselho Nacional de Saúde lançou uma campanha para mobilizar a sociedade a pressionar parlamentares a votarem a favor da manutenção dos recursos que o SUS ganhou durante a pandemia – R$ 35 bilhões – e a revogar a EC 95.
Pouco depois que o Ministério da Saúde publicou suas orientações sobre o uso precoce da cloroquina e da hidroxicloroquina, o TCU deu dez dias para que a pasta e a Anvisa explicassem o que havia embasado a decisão. Mas só ontem, depois de O Globo conseguir os documentos enviados pela Anvisa via Lei de Acesso à Informação (LAI), um grave (mas não inesperado) problema foi exposto: a agência afirma que não foi consultada nem avaliou previamente as novas recomendações. Diz ainda que não avaliou o uso off-label (para indicações não previstas na bula) dos medicamentos, e que, especificamente para a covid-19, nunca avaliou sua segurança e eficácia.
Quando as orientações do Ministério foram publicadas, em maio, chamou a atenção o fato de estarem em desacordo com a nota técnica divulgada pela Anvisa no dia 20 de março. Nela, o órgão dizia ter feito uma revisão sistemática da literatura científica, e ressaltava que a indicação dessas drogas para a covid-19 só deveria acontecer depois da realização de estudos mais aprofundados. Após a franca liberação dos remédios pelo governo federal, a agência reafirmou que os estudos existentes eram inconclusivos.
O documento recém-descoberto comprova que o Ministério deliberadamente passou por cima da Anvisa. “É extremamente perigoso que a Anvisa não tenha sido incluída neste processo. Ela deveria ter sido consultada desde o início, afinal, é uma das principais agências reguladoras do país e tem pessoal qualificado. Além disso, o fato de ela não ter avaliado a segurança do uso da cloroquina contra a covid-19 mostra o risco que estamos correndo ao recomendar essa substância”, diz, no jornal, a presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia do Rio de Janeiro, Tania Vergara. A Anvisa não se manifestou.
A partir do sangue de cavalos, cientistas brasileiros desenvolveram um soro que pode se tornar um tratamento contra a covid-19. Já falamos um pouco aqui sobre essa pesquisa, feita por cientistas do Instituto Vital Brazil e da UFRJ: eles inocularam cavalos com uma proteína do vírus para que eles produzissem anticorpos, e a ideia é que esses anticorpos resultantes possam ser purificados e administrados a pessoas.
Pois agora os primeiros resultados desse trabalho começaram a sair, e são promissores. Cinco cavalos foram inoculados e, após 70 dias, quatro deles tiveram anticorpos até cem vezes mais potentes do que os encontrados no plasma de pacientes recuperados. “O quinto já teve uma resposta mais lenta, o que demonstra uma variabilidade. O sistema imune é complexo”, diz Jerson Lima Silva, pesquisador da UFRJ, na Folha. O próximo passo é fazer testes em humanos. O estudo, ainda não publicado, vai ser apresentado hoje.
Outros bichos, como lhamas e alpacas, têm sido muito estudados ao redor do mundo para a produção de anticorpos também. Eles despertam especial interesse para pesquisadores do sistema imunológico, porque, ao contrário da maioria dos animais, produzem dois tipos de anticorpos para neutralizar vírus. Um é semelhante ao humano, e o outro, chamado nanocorpo, é muitíssimo menor. “O tamanho diminuto permite que ele caia em bolsões e fendas na proteína spike do coronavírus, contornando quaisquer defesas que o vírus possa ter criado e aderindo a partes em que um anticorpo de tamanho normal nunca poderia se encaixar. Isso o torna muito mais eficaz em conter o vírus. Tire esses nanocorpos de lhamas e coloque-os em humanos, e você terá um potente destruidor de coronavírus”, explica o repórter Liam Mannix, no site The Age. Mesmo que tenham começado há meses, esses estudos ainda são muito preliminares e deve levar um bom tempo até que uma terapia com nanocorpos se torne viável: é preciso encontrar maneiras de eles se parecerem com células humanas, para que nosso organismo não os ataque.
Digamos que uma vacina eficaz e segura seja finalmente descoberta. O que acontece em seguida? Temos falado sempre aqui sobre as dificuldades que provavelmente virão, e os desafios específicos da realidade brasileira estão bem resumidos pelo jornalista Diego Junqueira, da Repórter Brasil. Ele conversou com 12 especialistas que explicam os principais entraves e questionam as promessas feitas até agora. Um problema é que as fábricas brasileiras ainda precisam ser adaptadas para o envasamento e para a produção da matéria-prima, e não se sabe o quanto isso vai demorar. Então, pelo menos no início vai ser preciso importar matéria-prima – que estará sendo disputada pelo mundo inteiro. Não podemos esquecer que o Brasil tem dez milhões de testes de covid-19 empacados por incapacidade de importar reagentes…
A solução é produzir aqui, e para isso mesmo servem os acordos de transferência de tecnologia. Mas não é algo que aconteça num piscar de olhos. Longe disso: a Fiocruz e o Instituto Butantan prometem dominar em 12 meses os processos (para a fabricação das vacinas de Oxford/AstraZeneca e da Sinovac, respectivamente). “Seria, no entanto, um feito inédito no Brasil, tendo em vista que os dois laboratórios levaram em média dez anos para assimilar a tecnologia de outras vacinas”, nota a reportagem.
A AstraZenecia firmou ontem acordos com a Argentina e o México para a produção de sua potencial vacina. Segundo o presidente argentino, Alberto Fernández, os dois países vão ficar responsáveis pela produção e distribuIção do imunizante para a América Latina (exceto o Brasil). Segundo ele, o laboratório argentino mAbxience “será o produtor do reativo da vacina”, enquanto o México “será o encarregado de realizar a embalagem e completar o processo de produção.”
Por aqui, o governador tucano João Doria (que, aliás, está com covid) disse que pode pedir à Anvisa uma liberação emergencial da Coronavac se, até outubro, os testes de fase 3 tiverem resultados positivos. Como atentamos ontem, o Instituto Butantan (responsável pela condução dos testes) só planeja examinar seu último paciente em outubro, mas do ano que vem…
E o governo do Paraná fez mesmo um acordo com a Rússia em torno da vacina Sputnik 5. Mas é algo muito embrionário. Como o resto do mundo, o Paraná não teve acesso aos resultados dos estudos realizados pelo laboratório russo. De modo que “a ideia do memorando é ampliar a cooperação e estabelecer uma parceria”, segundo o governador do estado, Ratinho Junior (PSD). O diretor-presidente do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), Jorge Callado, afirma que um grupo de trabalho já deve começar as “tratativas técnicas” para aquisição e produção da vacina, mas também que o acordo só vai valer depois que forem disponibilizados os dados sobre segurança e eficácia. Lembramos: se os dados preliminares não foram divulgados, os dados completos sequer existem – afinal, a fase 3 não foi concluída. “A produção só começará após a aprovação de todos os órgãos regulatórios, como a Anvisa e a Comissão Nacional de Ética e Pesquisa. E, claro, com a consonância da OMS, que é fundamental. Não teremos passos apressados, nem vamos queimar etapas. Vamos seguir todas as etapas técnico-científicas necessárias”, disse Callado, em coletiva de imprensa.
Um bom punhado de pesquisas traz evidências de que o uso de máscaras, mesmo de pano, ajudam a reduzir a transmissão do novo coronavírus. A OMS tem sua recomendação oficial em relação à produção de máscaras caseiras. Governos locais e nacionais ao redor do mundo passaram a exigir, acertadamente, a obrigatoriedade do uso nas ruas ou dentro de estabelecimentos. Mas na verdade as pesquisas ainda não oferecem respostas completas sobre a melhor forma de proteção.
“Máscaras de pano” não são uma categoria única, há inumeráveis composições e não está claro o quanto cada tipo funciona. Além dos materiais, obviamente fatores como o ajuste no rosto devem fazer diferença. Um estudo publicado há poucos dias na Science Advances detalhou uma forma simples e relativamente barata de conseguir fazer testes exaustivos nesse sentido, mas a publicação acabou gerando uma avalanche de manchetes que se concentraram em dar como certas coisas que o estudo na verdade não comprova. É que, para demonstrar o funcionamento da engenhoca testadora – que consiste basicamente uma caixa, laser e uma câmera de vídeo –, o trabalho partiu de demonstrações do uso de 14 máscaras diferentes, desde a n95 até lenços que podem ser puxados do pescoço.
As reportagens se puseram a expor os resultados de cada máscara – a n95, como esperado, tinha o melhor desempenho; os lenços tinham o pior; e as outras, como as de algodão com diferentes composições, se distribuíam pelo meio. Só que a metodologia não servia bem a isso. Por exemplo, as máscaras foram testadas com uma única pessoa que experimentou todas enquanto repetia uma frase, para que as gotículas de sua fala fossem identificadas pelo laser. O objetivo do trabalho não era fornecer “um guia para máscaras”, nas palavras de Martin Fischer e Eric Westman, que o conduziram: “trata-se de uma demonstração de uma metodologia nova e simples para visualizar de forma rápida e grosseira o efeito de uma máscara”.
Ou seja, não é uma classificação das máscaras disponíveis, mas um caminho que poderia ser adotado por múltiplos pesquisadores, em testes grandes e abrangentes para, enfim, chegar a uma classificação – não só sobre os tipos de máscaras mas como sobre as situações que influenciam sua proteção: ajustes, distanciamento social, pessoas falando ou caladas, espaços abertos ou fechados etc. E isso seria importantíssimo.
Aliás, alguns pesquisadores vêm apontando que uma confiança ilimitada no ‘poder’ das máscaras pode acabar levando a situações de risco, especialmente para trabalhadores. Ninguém tem ideia de quanto tempo dura a proteção quando se está em um lugar fechado com outras pessoas. Na Vice, Lisa Brosseau, que há anos pesquisa como proteger trabalhadores de aerossóis prejudiciais, diz que provavelmente elas evitam a transmissão por curtos períodos, mas provavelmente não o farão por horas e horas. “Se duas pessoas estão numa sala conversando, usando máscaras feitas de camiseta, e uma dessas pessoas tem o vírus, a outra pessoa tem muita chance de contrair se ficar na sala por tempo suficiente. Essa transmissão é bem menos possível se as pessoas estiverem ao ar livre, mesmo se não estiverem usando máscara” sugere, na mesma reportagem, o microbiologista Joshua Santarpia, que estuda aerossóis na Universidade de Nebraska.
Em seis capitais do país, a taxa de ocupação das UTIs para covid-19 está acima de 80%. Goiânia e Campo Grande são as piores, com ocupação acima de 90%. Em seguida, também com mais de 80%, estão Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba e Aracaju. Na última semana, oito estados registraram alta no número de mortes – alguns deles são lugares onde a pandemia havia se estabilizado, como Amazonas.
No geral, a média semanal de mortes do país caiu mais uma vez. Com 1.164 novos registros ontem, essa média chegou a 978, que é o menor valor dos últimos 40 dias. O Brasil acumula 104.263 óbitos e 3.170.474 infectados.
Ontem, o Congresso apreciou 17 vetos presidenciais a projetos de lei aprovados por parlamentares, alguns represados desde o ano passado. Cinco foram derrubados, dentre eles, o que trata da telemedicina, aprovada em caráter emergencial durante a pandemia. Ao sancionar a lei 13.989, Bolsonaro descartou que receitas médicas em formato digital fossem aceitas, e também barrou a previsão de que o Conselho Federal de Medicina precise regular a prática de atendimento a distância depois da pandemia. Para rejeitar um veto é necessária a maioria absoluta, ou seja: 257 votos na Câmara e 41 no Senado.
Por sua vez, Bolsonaro sancionou com vetos uma medida provisória que flexibiliza as regras de licitação em compras governamentais voltadas ao combate do novo coronavírus. O presidente tirou a previsão de que mercadorias e serviços necessários ao enfrentamento da pandemia sejam beneficiados pela isenção de IPI, PIS-Pasep e Cofins. O governo alega que não há estimativa do impacto dessa renúncia aos cofres públicos.
Foi homologada a delação de Edmar Santos, ex-secretário estadual de Saúde do Rio. Pelo que se sabe do acordo autorizado ontem pelo Superior Tribunal de Justiça, Santos envolveu o governador Wilson Witzel (PSC) como integrante do esquema de corrupção em contratações e compras feitas durante a pandemia. Agora, a Procuradoria Geral da República (PGR) pode usar a delação para embasar inquéritos e medidas cautelares. Santos se comprometeu a devolver cerca de R$ 8,5 milhões aos cofres públicos.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) decide hoje se o teste sorológico para detecção de anticorpos do Sars-CoV-2 precisa ser coberto pelos planos de saúde. Provavelmente não será, já que a própria diretoria colegiada da agência já suspendeu, por unanimidade, uma resolução que incluía o procedimento no rol. A reunião está marcada para 14h.
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Orçamento: a próxima grande batalha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU