Embora tenha ganhado as manchetes recentemente, a cultura popular da Coreia do Sul exportada para todo o mundo pode ser apreendida como uma das vertentes do soft power oriental, segundo a pesquisadora
Você sabe o que é K-pop? Quando se faz essa pergunta, quase sempre surge alguém que diz: ah, são aqueles grupos de cantores japoneses (com variações para chineses) que usam roupas coloridas. Bem, só nessa resposta já é possível ver muitos elementos que a pesquisadora Daniela Mazur compreende como uma ‘ignorância ocidental’ diante de culturas que não são norte-americanas ou centro-europeias. “Claramente existe uma ignorância coletiva dentro da nossa perspectiva ocidental que não nos deixa enxergar o potencial de grandes polos não-ocidentais de influência cultural, como é o caso da Coreia do Sul, mas também da Turquia, do Japão, da Índia e da Nigéria”, destaca, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Assim, a primeira lição é esta: compreender que K-pop é a cultura popular da Coreia do Sul e que o Oriente não é massa homogênea. “O lugar do ‘Oriente’, aqui no caso representado pela nação sul-coreana, é o de resistência e de contrafluxo em um mundo ‘globalizado’ que é pautado nos ideais ocidentais e no poder de influência secular dos Estados Unidos e da Europa Ocidental”, observa Daniela. Ela ainda enfatiza que o ativismo desses grupos – cultural e político – não é algo novo. “O ativismo realizado pelos fãs de K-pop é baseado especialmente no espaço online, onde grande parte da experiência de trocas de informações sobre o universo da Hallyu acontece. Desde o início do K-pop, lá nos anos 1990, ações de fãs em favor de causas sociais, através do seu poderio de influência, são realizadas a fim de celebrar os grupos que são objetos de paixão desses fãs”, explica.
Daniela faz essa defesa pois, recentemente, o K-pop virou manchete porque um grupo de fãs teria se articulado para reservar ingressos para o primeiro comício da campanha de reeleição de Donald Trump. Contrários ao presidente dos Estados Unidos, o grupo comprou os ingressos e não foi ao evento, tornando o comício um fracasso de público. “Temos o terrível costume aqui no Brasil de só dar luz a questões que já estão em destaque na arena internacional quando elas são apontadas pelos Estados Unidos e Europa Ocidental”, dispara a pesquisadora.
É por isso que Daniela tem se dedicado a incentivar um outro olhar sobre o K-pop. “Mesmo depois de anos de uma grande consolidação do fenômeno da Hallyu no cenário global e do consumo do K-pop em países fora do eixo asiático, só agora o Ocidente se impressiona com o potencial do K-pop”, constata. Para ela, há muitas chaves pelas quais se pode compreender uma nova geopolítica que vem configurando o Oriente também como um ponto irradiador de poder. “O K-pop é uma vertente cultural que apresenta uma faceta da Coreia do Sul de hoje, a que se configura como cosmopolita e internacionalizada. Então, fazendo parte do momento atual do país, o K-pop não só acompanha, mas também é um fator de transformações na Coreia do Sul”, acrescenta.
Contudo, o desafio de romper o olhar ocidentalizante sobre o Oriente é algo ainda a ser perseguido, especialmente para quem incursiona nas reflexões dessa nova geopolítica que vai além do american way of life. “O K-pop está sim se globalizando em favor de alcançar diferentes mercados e culturas, mas o poder destrutivo de propagação de um estilo de vida acima de todos os outros, como é o american way of life, é completamente distinto da conquista internacional da Hallyu por causa desse sistema de poder secular”, provoca a pesquisadora. Afinal, entre as diferenças estruturantes está a visão de coletivo muito presente no Oriente, em oposição ao individualismo ocidental. “O grupo/sociedade está à frente do indivíduo, em favor de que o sistema social funcione para todos. A nossa capacidade ocidental tem influências pautadas no que podemos chamar de ‘contrário’, que seria o individualismo”, detalha.
Daniela Mazur (Foto: Arquivo pessoal)
Daniela Mazur é doutoranda e mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense - UFF, bacharel em Estudos de Mídia pela mesma instituição e pesquisadora vinculada ao MidiÁsia da UFF (Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática Contemporânea). Atualmente, em seu doutorado, conduz a pesquisa "A ascensão da periferia global: Coreia do Sul e os contrafluxos culturais no mundo globalizado", em que estuda questões relacionadas ao Pós-Ocidente, à evolução dos estudos asiáticos no Brasil e à ascensão periférica de polos de produção televisiva pelo mundo e os contrafluxos globais, com foco no Leste da Ásia.
IHU On-Line – Como você define o K-pop?
Daniela Mazur – O K-pop é uma das vertentes que configuram a Hallyu, ou Onda Coreana, e se define como um gênero musical formado pela música pop sul-coreana. Uma abreviação de Korean pop, o K-pop compreende influências de diferentes ritmos musicais “globais”, como o próprio pop, o eletrônico, o hip hop e o R&B, sendo interpretados dentro do cenário musical da Coreia do Sul. Isso apreende o fato de que outros gêneros musicais mais tradicionais do país também ajudaram na formação do que hoje chamamos de K-pop, como por exemplo, o trot. A atual música pop sul-coreana tem como definição genérica ser esse lugar de fusão de influxos musicais, com uma leitura particular dentro da perspectiva sul-coreana, acompanhado de coreografias sincronizadas.
Cantando em coreano (hangul), idioma limitado em alcance internacional, uma vez que é falado em apenas dois países (Coreia do Sul e Coreia do Norte), alguns versos das músicas podem sofrer hibridismo idiomático, especialmente com o inglês, a fim de apelar ao público internacional e até mesmo abranger diferentes possibilidades culturais para as letras das músicas.
Com estrutura industrial e lógica mercadológica, o K-pop se baseia especialmente em grupos unissex (boygroups e girlgroups), apelo visual muito forte e ancorado nas estéticas pessoais dos artistas e audiovisuais dos seus materiais de divulgação (especialmente os MVs, conhecidos também como clipes musicais), músicas viciantes, perfeccionismo na complexidade das coreografias e hibridismo de influências. O que conhecemos hoje como o K-pop é produto direto de movimentações na cena musical sul-coreana realizadas nos anos 1990, experimentações, influências e, especialmente, incentivos a favor da formação de uma indústria cultural nacional.
IHU On-Line – Quais são as origens do K-pop e o que faz com que ganhe o mundo?
Daniela Mazur – Antes de qualquer coisa é importante deixar claro que a música pop sul-coreana já existia antes do K-pop que conhecemos hoje, são mais de 100 anos de história do pop na Coreia do Sul. A construção deste que apresentamos como um gênero musical de alcance global começou nos anos 1990, quando o país estava passando por diferentes processos sociais e políticos, como redemocratização, abertura midiática e estruturação de uma indústria cultural nacional. Em retrospectiva, é em 1992 que começamos a enxergar o K-pop a tomar forma.
O trio masculino Seo Taiji and Boys iniciou sua carreira apresentando uma nova forma de se pensar a música pop nacional: mistura de ritmos com influências culturais internas e externas, coreografias e grande apelo visual. E, o mais importante: esse foi o grupo que deu o grande pontapé inicial para a lógica da cultura fã de K-pop que hoje vemos em escala cada vez maior e mais estruturada. Seo Taiji and Boys trazia especialmente o hip-hop e rap para a mesa da cena musical sul-coreana, com letras que abordavam questões sociais locais, conquistando especialmente o público mais jovem.
Os fãs do grupo desenvolveram as primeiras estratégias de difusão em massa, além das identidades de representação atreladas ao grupo, a fim de aprofundar e aproximar o seu consumo de seus ídolos. O grupo teve uma longevidade curta, em 1996 aconteceu o desbande, mas o impacto de sua influência nesse cenário que se iniciava com eles reverbera até os dias de hoje.
Seo Taiji and Boys surgiram em meio a um momento em que entidades governamentais da Coreia do Sul começavam a compreender, através especialmente da observação do mercado internacional, as vantagens para o país de uma indústria cultural bem formatada e incentivada. Então, é em meados dos anos 1990 que a nação do sul inicia concretamente os incentivos financeiros (governamentais e privados, especialmente em parceria) em favor de um ambiente mais positivo para a produção de conteúdos culturais, a fim de alimentar e proteger um mercado local que estava sendo fortemente tomado por produtos estrangeiros, além de pensar lógicas de possíveis exportações nesse campo, uma vez que o país estava em rápido crescimento econômico já há algumas décadas.
Contudo, é com a crise financeira de 1997 que acontece a grande virada de chave para essa indústria. O impacto da crise no país, que estava em desenvolvimento acelerado desde os anos 1970 e 1980, fez a economia nacional quebrar. Tal situação levou, obviamente, a muitas falências e momentos extremamente complicados para a sociedade sul-coreana, que ainda estava em um longo processo de recuperação desde o armistício da Guerra da Coreia, na década de 1950 e da subsequente ditadura militar. Apesar disso, esse cenário de crise desencadeou a busca por novas soluções e uma delas foi a aposta direta na indústria cultural como uma estratégia de recuperação do fôlego econômico nacional.
Então, os incentivos que começaram ainda tímidos em meados da década, aumentaram exponencialmente no final dela, como estímulo especialmente às produções cinematográficas, televisivas e musicais. Em meio a esse momento efervescente do meado ao fim dos anos 1990, surgem os primeiros grandes sucessos de exportação de K-dramas (ficção seriada televisiva sul-coreana), assim como grupos expoentes dos K-pop, como o H.O.T, Sechs Kies e S.E.S, e as primeiras grandes empresas focadas na produção desses artistas, como a SM Entertainment, que desenvolveu a notável estrutura da formação dos ídolos do K-pop replicada até os dias de hoje. A lógica dessa indústria, que conquista o mundo atualmente, parte desse momento e da produção primorosa desenvolvida nesses espaços que estruturaram a Onda Coreana.
IHU On-Line – Como compreender a chamada ‘onda coreana’? De que forma essa onda reverbera no Brasil?
Daniela Mazur – A Onda Coreana, ou em coreano “Hallyu”, é o fenômeno cultural de caráter transnacional originário da Coreia do Sul, que tem origem e é o grande produto do cenário supracitado dos anos 1990 na indústria cultural sul-coreana. Esse fenômeno abrange o levante cultural do país em meio ao cenário internacional através do intenso fluxo de produtos culturais, como K-dramas, K-pop, cinema, moda, estética, gastronomia e idioma, que conquistou grande popularidade na Ásia e, mais recentemente, tem fincado raízes em países ocidentais.
Iniciou-se, então, com caráter regional e hoje é considerado como parte de uma lógica global, tamanha a sua força de alcance de novos públicos em diferentes países e culturas. Leste e Sudeste Asiáticos foram os primeiros grandes consumidores, se expandindo para o resto da Ásia, chegando à Europa e Oceania e, então, às Américas e África. O início desse avanço da cultura pop sul-coreana a ponto de ser exportada com êxito e fazer sucesso no exterior, levou a configurá-la como parte de um fenômeno que “invadia” os mercados vizinhos. O primeiro país a sentir tal impacto foi a China, em 1997, com o intenso sucesso do drama de TV sul-coreano “What is love - 사랑이 뭐길래” (MBC, 1991-1992), que abriu as portas para o diálogo cultural da Coreia do Sul com outros países da região.
Tal reverberação deu início ao consumo massivo de K-dramas no mercado regional e, a partir disso, o K-pop, que estava presente nas trilhas sonoras dessas narrativas seriadas, começou a circular também nesse mercado de exportação. Como a Hallyu abrange um universo cultural, o consumo dos dramas de TV e da música pop no exterior alavancou a exportação também de um estilo de vida atrelado a esses produtos.
Então, no início dos anos 2010, percebemos a intensa força da Onda Coreana chegando também às praias brasileiras. Com shows de artistas do K-pop sendo realizados todos os anos e periodicamente por aqui; eventos culturais sendo promovidos pelos órgãos do governo sul-coreano no Brasil; forte consumo e presença dos fãs em eventos realizados pelos próprios e, especialmente, na internet; o crescimento contínuo de títulos sul-coreanos no catálogo brasileiro da Netflix; a própria organização dos fã-clubes: hoje o impacto da Hallyu no nosso país, por mais que ainda nichado, é claro. Segundo dados do Centro Cultural Coreano no Brasil (que faz parte do Governo da Coreia), são mais 300 mil fãs brasileiros da Hallyu e o número só cresce, assim como a demanda e oferta desses conteúdos por aqui.
IHU On-Line – O que caracteriza a cultura pop coreana? Como ela se alinha – ou desalinha – com a ‘cultura clássica’?
Daniela Mazur – Essas são perguntas complexas porque atrelam questões muito maiores que são as que dão conta de toda uma cultura de um país. A Península da Coreia soma mais de cinco mil anos de tradições documentadas, com um passado sensível marcado por invasões e guerras, pelo qual tiveram que lutar bravamente pela sua identidade e liberdade e, mesmo assim, o território foi dividido em dois países e dois sistemas em razão de forças estrangeiras. A Coreia do Sul é apenas uma parte de um território que até 70 anos atrás era um só, mas em sua história compartilhada até então, vivenciou diferentes dinastias, influências externas, períodos de reclusão e construções culturais, políticas e sociais internas.
Depois da divisão causada pelo fim da Segunda Guerra Mundial e pela ascensão da Guerra Fria e concretizada com a Guerra da Coreia, a Coreia do Sul recebeu fortes influxos dos Estados Unidos e pressão ocidental a fim de se abrir às influências externas. Todo o processo de reestruturação nacional e as influências estrangeiras recebidas pelo país durante todo seu processo histórico, especialmente em uma história mais “recente”, fazem parte do que concebemos hoje como a Hallyu.
A “cultura clássica” se faz presente no dia a dia dessa sociedade, se renova em suas atualizações em meio a um mundo interconectado, mas não se perde em razão do fenômeno cultural pop. Ao contrário, se reafirma e se ressignifica a fim de ser cada vez mais relevante nos cenários local e internacional. O K-pop e a Hallyu são apenas vertentes que apresentam a grande complexidade que é a cultura sul-coreana e como ela se apresenta hoje para o resto do mundo.
IHU On-Line – Como é a adesão do K-pop em outros países orientais, especialmente a China e o Japão?
Daniela Mazur – O K-pop, assim como as outras vertentes da Hallyu, tem forte adesão em países asiáticos, é claro que em alguns mais e em outros menos, mas o Leste da Ásia, em específico, é atualmente um grande consumidor do pop sul-coreano. A China e o Japão, países de poder histórico na região, são também players essenciais no cenário do K-pop, uma vez que se configuraram como os maiores mercados dessa indústria no mundo. Até mesmo por isso que é bastante comum álbuns e outros materiais promovidos pelos grupos de K-pop serem lançados em mandarim e/ou japonês.
Grande parte das promoções e turnês dos boygroups e girlgroups levam em consideração primeiramente os mercados japoneses e chineses, tamanha a importância desses dois países para a indústria sul-coreana. E, em retrospecto, a China é um fator essencial à Hallyu desde o seu início, já que foi a primeira grande importadora dos produtos culturais da Coreia do Sul, aderindo a esse fluxo de conteúdo estrangeiro o termo que hoje dá nome ao fenômeno (foi a imprensa chinesa que “batizou” a Onda Coreana como “Hallyu” a partir da observação desse influxo no país).
Hoje, a Coreia se tornou um expoente e a nova “cara” do pop leste asiático, então é uma das grandes influências regionais, especialmente em razão do alcance que conquistou nesses países vizinhos, que tinham e ainda têm o imenso poder de mediação cultural na região, pelo qual a Hallyu é fortemente atrelada.
IHU On-Line – De que forma o K-pop ressignifica a cultura coreana?
Daniela Mazur – O K-pop ressignifica a cultura sul-coreana no processo de atualização dessa imagem nacional que é veiculada pela Hallyu. Em um processo importante ao soft power do país, que é o de desvincular, pelo menos parcialmente, a ideia de Coreia do Sul dos grandes problemas do passado, especialmente ligados à guerra. O país, antes da Hallyu, tinha pouco reconhecimento cultural no âmbito internacional e era altamente atado a ideias armamentistas e/ou tecnológicas, o que construía (e ainda constrói, é claro, já que essas imagens não se extinguiram totalmente) para a Coreia do Sul um campo imaginário global que dava conta de ideais pouco humanizados.
O K-pop, então, consegue atualmente gerenciar uma ideia nacional mais positiva e atrelada a uma linguagem mais “global” e cosmopolita, com representações do cotidiano do país e de rostos locais. E essa ressignificação acontece no processo de levar a cultura tradicional e contemporânea da Coreia do Sul para o resto do mundo.
IHU On-Line – O humanismo é tido como um valor essencialmente ocidental. Como esse conceito é apreendido na cultura pop oriental, especialmente coreana? Valores éticos, filosóficos, sociais e políticos surgem de que forma no cenário do K-pop?
Daniela Mazur – A cultura sul-coreana tem diferentes influências, mas algo que é primordial para compreender as lógicas existentes nessa sociedade é o entendimento genérico de um coletivismo como base social. O grupo/sociedade está à frente do indivíduo, em favor de que o sistema social funcione para todos. A nossa capacidade ocidental tem influências pautadas no que podemos chamar de “contrário”, que seria o individualismo, onde o foco está em um em desfavor do todo. Todas essas concepções são generalistas, mas de alguma forma dão certa sustentação para alguns dos pilares que enxergamos nas dinâmicas sociais das sociedades.
No caso da Coreia do Sul, outros influxos são necessários para tal análise, como por exemplo, a influência e presença dos Estados Unidos em solo sul-coreano desde a Guerra da Coreia e a carga atrelada a esse contato, que é a do capitalismo e o próprio individualismo. Diante disso, não posso dizer que o humanismo ou o individualismo são apreendidos pela cultura sul-coreana, mas que existem fluxos de influências que, de diferentes formas, são adaptadas e/ou ressignificadas a essa e outras culturas.
Contudo, algo deve ficar muito claro: não é porque é um valor ocidental que ele vai ser facilmente aderido ou aceito em culturas não-Ocidentais, existem resistências e, como eu disse anteriormente, ressignificações em meio às culturas receptoras. A Coreia do Sul, então, viveu e vive imersa em diferentes influências, mas seus próprios valores são seus próprios valores e ponto final. E essa mistura de influxos locais e externos se apresenta nas letras das músicas, na disciplina do processo de desenvolvimento de um artista, na lógica da indústria, na própria dinâmica do consumo desses produtos, no comportamento dos ídolos, no dia a dia dessa Coreia do Sul apresentada ao mundo através da Hallyu e até mesmo na forte preferência da indústria por grupos de K-pop no lugar de atos solos (mais uma vez, o coletivo acima do individual).
IHU On-Line – Em que medida o K-pop acompanha as transformações vividas na Coreia? Qual a importância do movimento na difusão dessas transformações para o mundo?
Daniela Mazur – O K-pop é uma vertente cultural que apresenta uma faceta da Coreia do Sul de hoje, a que se configura como cosmopolita e internacionalizada. Então, fazendo parte do momento atual do país, o K-pop não só acompanha, mas também é um fator de transformações na Coreia do Sul. E, uma vez que a Hallyu se transformou no instrumento de alcance internacional e uma porta de entrada para a cultura sul-coreana no cenário global, é inegável o potencial desse fenômeno cultural em difundir uma imagem atualizada do país para o mundo.
Os K-dramas, em especial, que apresentam em suas narrativas o dia a dia contemporâneo da Coreia do Sul, se tornaram poderosas ferramentas de divulgação do estilo de vida sul-coreano e também do desenvolvimento nacional. A Hallyu, então, se tornou também uma ferramenta de ressignificação da imagem nacional na arena internacional, negociando valores e ideias em favor do país.
IHU On-Line – Que relação podemos estabelecer entre a globalização do K-pop e a propagação global do modo de vida norte-americano, o ‘american way of life’, como um ideário?
Daniela Mazur – Acho que pouca ou nenhuma, porque o potencial histórico de influência cultural, social e política dos Estados Unidos no mundo através da globalização e do american way of life vem de uma base imperialista, que tinha/tem uma perspectiva findada nos valores ocidentais, que há séculos são reafirmados e configurados como verdades universais, e a Coreia do Sul não participa dessa lógica. A Coreia participa da dinâmica excludente do orientalismo, que exotiza, menospreza, distancia e essencializa o que não é ocidental.
Então, o lugar do “Oriente”, aqui no caso representado pela nação sul-coreana, é o de resistência e de contrafluxo em um mundo “globalizado” que é pautado nos ideais ocidentais e no poder de influência secular dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. O K-pop está sim se globalizando em favor de alcançar diferentes mercados e culturas, mas o poder destrutivo de propagação de um estilo de vida acima de todos os outros, como é o american way of life, é completamente distinto da conquista internacional da Hallyu por causa desse sistema de poder secular.
Eu gosto de brincar que a Onda Coreana apresenta um “Korean way of life”, quando apresenta um estilo de vida através de suas vertentes culturais, mas a verdade é que o impacto da Coreia do Sul como potencial polo de influência profunda e em diversas camadas sociais, especialmente nos países da periferia global, não tem analogia com o caso estadunidense, porque o balanço de poder histórico que o Ocidente possui é muito maior do que o do Oriente, que foi por séculos posicionado como periferia e designado como o “Outro” e nunca como o “Nós”.
IHU On-Line – No que consiste ser um fã do K-pop? Qual sua análise da relação entre fãs e celebridades do K-pop?
Daniela Mazur – De um ponto de vista brasileiro (dado que sou brasileira), ser fã de K-pop inspira primeiramente dedicação, uma vez que a lógica não-ocidental do fenômeno é diferente das quais fomos acostumados, em vista da nossa tradição colonial enraizada no eurocentrismo. O idioma não é o inglês, os artistas são asiáticos amarelos e as dinâmicas culturais não são ocidentais. Então, o fã precisa primeiramente compreender a lógica cultural totalmente distante do que nós brasileiros fomos acostumados como nação.
É necessário, ao consumir o K-pop, ter um esforço de compreender a cultura ali apresentada, de forma justa e menos estereotipada possível. O fato de ser em um idioma pouquíssimo falado no mundo, o trabalho de tradução e estudo da língua normalmente faz parte dessa cultura fã, de resto, não é muito diferente de ser fã de qualquer outro artista ocidental. Como o consumo da Hallyu aqui no Brasil é basicamente feito pela internet, os K-poppers tem uma relação muito próxima das ferramentas online, já que os próprios artistas e suas empresas, cientes disso, também expandem o contato pelas redes sociais. Tanto que espaços como o VLive, fancafés, Twitter e Instagram são ambientes online que os K-poppers têm maestria de uso, já que é neles que conseguem ter contato direto com seus ídolos.
A indústria da Hallyu também aposta muito em reality shows com os artistas do K-pop e programas musicais semanais que atualizam os fãs de seus ídolos, gerando ainda mais conteúdo. Além das premiações que movimentam sempre os fandons. Todas essas estratégias são formas de envolver os fãs e alimentá-los com mais informações, o que cria uma relação de retribuição a esses consumidores pelo seu esforço de acompanhar os ídolos e até mesmo de ajudar no alcance dos seus ídolos em diferentes países. A própria cultura fã do K-pop, essa que está em desenvolvimento desde antes da web 2.0, quando o fenômeno da Hallyu ainda estava nos seus primeiros passos, é construída em cima de ideais de comunidade e de distinção, especialmente na identidade do fandom; então, é essencial para os fãs do K-pop entenderem que cada grupo tem uma cor específica e um nome específico do fandom. São esses modos de organização desse grande grupo que são os K-poppers e suas subdivisões, os fandons de diferentes grupos.
IHU On-Line – Existe uma imposição de padrões para seguidores do K-pop? Como esses padrões impactam a saúde mental de jovens pelo mundo?
Daniela Mazur – Não acredito que existem padrões específicos para os fãs, mas há para os ídolos, o que pode de alguma forma impactar os fãs, é claro. E isso faz parte de QUALQUER cultura fã. Fãs da Lady Gaga, do Backstreet Boys, da Beyoncé, da Anitta, do Beatles, qualquer outro ídolo ocidental pode causar o mesmo efeito nos fãs, uma vez que eles vendem imagens de suas estéticas, de suas escolhas de causa e até mesmo de suas músicas.
Tendo isto posto, entre os fãs não existem padrões a serem seguidos para simplesmente fazer parte da comunidade. Na realidade, enxergo no ambiente dos fãs internacionais do K-pop um espaço que ser tornou acolhedor para diferentes grupos da sociedade, especialmente aqueles mais marginalizados pela lei e pelas hierarquias sociais imaginadas a partir de questões raciais e de gênero. Por essa e outras razões que a comunidade K-popper internacional é um ambiente atrelado como formado especialmente por mulheres cis, pessoas amarelas, pessoas negras e pessoas LGBTQI+, já que o K-pop acabou se tornando um espaço de expressão para diferentes núcleos sociais, que se encontraram de alguma forma representados por essa forma cultural não-central e não-ocidental, então política por natureza.
IHU On-Line – Um fã de K-pop pode ser considerado um ativista? Por quê? E, aliás, de que ativismo estamos falando?
Daniela Mazur – Pode, é claro, porque é um ser político como qualquer outro cidadão, então pode e deve se expressar em favor de questões que lhe são caras ou incômodas nas sociedades em que vivem. Os fãs de K-pop são pessoas com suas próprias opiniões e, diferente do que a grande mídia e sociedade em geral pensa, não é um grupo formado apenas por crianças, que não possuem impacto direto em questões políticas, como as eleições, por exemplo. Na realidade, e especialmente aqui no Brasil, estamos falando de um fandom que abarca pessoas desde a faixa etária dos 10 anos de idade até a de 50.
Além disso, a concepção de ativismo em favor de causas sociais na lógica do fandom do K-pop é antiga, por mais que só esteja recebendo atenção midiática agora em razão das movimentações em questões que mexem nos pilares do mundo ocidental, como é o caso das ações atreladas aos Estados Unidos nos últimos meses. Temos o terrível costume aqui no Brasil de só dar luz a questões que já estão em destaque na arena internacional quando elas são apontadas pelos Estados Unidos e Europa Ocidental. Isso faz parte da nossa forte tradição enraizada no eurocentrismo, mas isso é debate para um outro papo.
Portanto, voltando ao ponto em discussão, o ativismo realizado pelos fãs de K-pop é baseado especialmente no espaço online, onde grande parte da experiência de trocas de informações sobre o universo da Hallyu acontece. Desde o início do K-pop, lá nos anos 1990, ações de fãs em favor de causas sociais, através do seu poderio de influência, são realizadas a fim de celebrar os grupos que são objetos de paixão desses fãs. Há um grande histórico do fandom em doação de alimentos para pessoas necessitadas, construção de escolas em locais mais carentes, replantio de mudas em espaços desmatados... Tudo isso em nome dos seus ídolos, especialmente em datas comemorativas.
É uma forma de celebrar e demonstrar carinho aos artistas que tanto amam, mas aos quais não podem ter acesso direto em aniversários do grupo ou de um ídolo. A web 2.0 é e sempre foi um grande instrumento da difusão da Hallyu pelo mundo, mas também é uma grande aliada do fandom, que se utiliza dela para consumir os produtos de que tanto gostam e também para acionar causas importantes à sociedade.
IHU On-Line – Como analisa a relação dos fãs de K-pop com a tecnologia? Por que, no contexto coreano, essa relação é tão importante?
Daniela Mazur – Uma vez que o cenário central do K-pop é a Coreia do Sul, os fãs internacionais (aqueles que não são sul-coreanos) encontraram nos espaços online um lugar para trocas, participações e, especialmente, consumo dos conteúdos de K-pop e relacionados. Já que aqui no Brasil a mídia tradicional ainda não abre grandes espaços para a circulação desses conteúdos e partindo do fato que o K-pop é uma cultura estrangeira, da qual poucos têm o privilégio de ir a um show do seu grupo favorito ou até mesmo visitar o país de origem onde podem consumir esses produtos da “fonte”, a internet se tornou essencial para vivenciar a Hallyu fora da Coreia do Sul.
E, as empresas de K-pop, reconhecendo o crescimento do potencial do K-pop no cenário internacional, começaram a se utilizar de forma intensificada das ferramentas online para levar o conteúdo produzido na Coreia do Sul para o resto do mundo e conquistar novos fãs. Uma vez que uma das melhores internets do mundo é a sul-coreana, grande parte das estruturas produzidas para o K-pop localmente passam pelas redes sociais e essa lógica é replicada e expandida para o público estrangeiro. Os K-poppers, então, aprenderam a organizar e potencializar os usos da internet para poderem dialogar entre si (troca de informações, organização de eventos, tradução de conteúdo...), expandir o seu consumo desse universo e se aproximar de seus ídolos, expressando carinho tanto pelas redes sociais oficiais dos artistas, quanto por votações de prêmios locais ou internacionais.
Subir hashtags, decodificar algoritmos e potencializar o engajamento são conhecimentos desenvolvidos e utilizados pelos fãs com o objetivo de usufruir e difundir o K-pop. Quanto mais gente conhece e gosta dos grupos, maior o potencial de as músicas tocarem nas rádios locais, a imprensa mencionar em jornais e revistas, os clipes serem exibidos nas emissoras de televisão e até mesmo shows serem realizados no país. No final do dia, são apenas fãs sendo fãs e querendo estar cada vez mais próximos de seus ídolos, então se utilizam dos potenciais tecnológicos à disposição para poderem vivenciar essa cultura pop.
IHU On-Line – Recentemente, um grande comício do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, teria sido fracasso de público pela atuação de jovens fãs de K-pop. Como você avalia esse episódio? O que ele revela sobre o ativismo e a organização política dos fãs de K-pop?
Daniela Mazur – Avalio como positiva porque o fandom do K-pop começou a receber a atenção que merece pelo Ocidente, especialmente os Estados Unidos. E eu, como indivíduo, discordo totalmente do Donald Trump, então é ainda mais positivo para mim, uma vez que concordo no posicionamento contra ele. Agora, do ponto de vista estritamente de pesquisadora, o que percebemos nesse episódio é o fato de que, mesmo depois de anos de uma grande consolidação do fenômeno da Hallyu no cenário global e do consumo do K-pop em países fora do eixo asiático, só agora o Ocidente se impressiona com o potencial do K-pop. Claramente existe uma ignorância coletiva dentro da nossa perspectiva ocidental que não nos deixa enxergar o potencial de grandes polos não-ocidentais de influência cultural, como é o caso da Coreia do Sul, mas também da Turquia, do Japão, da Índia e da Nigéria.
No caso do K-pop, isso se dá também pela nossa tendência de infantilizar e menosprezar culturas fãs, especialmente as consideradas femininas, LGBTQI+ e/ou racializadas, então quando algo do porte que os K-poppers têm feito chega à superfície da grande mídia, parece que é algo novo e surpreendente, quando na verdade foi apenas um efeito da ignorância de algo que já estava acontecendo de forma clara e lícita há muito tempo. E, como supracitado, fãs são seres políticos e a cultura fã do K-pop não é nova em causas sociais. A única coisa aqui que os K-poppers têm de destaque é o fato de toda a sua organização e entendimento das ferramentas online para o consumo do K-pop serem redirecionados para ajudar em causas sociais quando o fandom se atrela a elas. Não existe uma grande liderança, mas com um objetivo concreto. E as habilidades de engajamento desse fandom, além da facilidade de dialogar com novas mídias e plataformas, ajudam diretamente nesse quesito também.
IHU On-Line – Há o movimento de alguns países para barrar tecnologias vindas da Coreia e, especialmente, itens relacionados ao K-pop. O que esse dado revela?
Daniela Mazur – Sim, existe especialmente em casos que os produtos culturais se tornam parte de algum embate político-diplomático. Dois países em que os embargos já aconteceram, dando conta especialmente da Hallyu e de produtos tecnológicos sul-coreanos, foram a China e o Japão, que, como supracitado, são dois dos mercados mais importantes da Hallyu atualmente. Todos os casos abrangiam questões políticas muito complexas que acabaram acarretando nesses embargos. Alguns desses motivos ainda são debates em voga, como o caso das Mulheres de Conforto com o Japão e a base do [sistema antimísseis] THAAD com a China.
Além dessas questões diplomáticas, também existem, desde o início da expansão da Onda Coreana, os movimentos anti-Hallyu por grupos em diferentes países vizinhos à Coreia do Sul, que alegavam perigo em importar conteúdos estrangeiros. Essas movimentações revelam especialmente a força atual da Hallyu em um espaço regional que antes era regido por outros países, além do fato de como a cultura pop se tornou uma grande moeda de troca em diferentes esferas da sociedade e da arena diplomática internacional.
IHU On-Line – Em que consiste a ideia de um mundo ‘pós-ocidental’? Como o K-pop entra nesse mundo?
Daniela Mazur – Essa pergunta dialoga diretamente com a minha tese em desenvolvimento no doutorado, então vou trazer apenas algumas questões que estou levantando. A ideia de um Mundo Pós-Ocidental em ascensão faz parte do cenário que estamos vivendo em que as lógicas ocidentais já não dão mais conta da dinâmica realmente global. A atual ordem global não é a mesma que antes alimentava a ideia de “do Ocidente para o resto”, de um fluxo único e unidirecional de influências culturais do Estados Unidos e Europa Ocidental para os outros países do mundo. O momento agora é mais complexo e apresenta novos polos econômicos e de produção cultural que desafiam a lógica antiga de que apenas um fluxo totalizava a influência globalizante.
O ideal do Ocidente (quando digo Ocidente me atenho aos Estados Unidos e à Europa Ocidental, que construíram uma lógica de centralização de poder pelos séculos através do imperialismo, colonialismo e universalismo europeu) como centro de poder de influência falha quando nos damos conta da ascensão de outras lógicas de influências de países considerados como parte da periferia global. China, Índia, Turquia e Coreia do Sul, assim como Brasil, México e Nigéria, são países que despontam internacionalmente em caráter econômico, social e, especialmente, cultural. No caso da Coreia do Sul, o país de fora do eixo de influências do Ocidente se apresenta como um dos exemplos de polo cultural que está conquistando seu espaço em meio aos fluxos e contrafluxos globais, e aponta para esse momento de multipluralismo de agentes culturais em foco, em que vivemos a ascensão de um mundo além do conceito centralizado de Ocidente. E a Hallyu é um desses fenômenos não-ocidentais que estão reestruturando nossa noção de mundo e de poder em um cenário contemporâneo da diplomacia, política e cultural global.
IHU On-Line – Como os países asiáticos têm reconfigurado a comunicação política numa nova ordem mundial? Quais devem ser os impactos da pandemia de covid-19 nesse contexto?
Daniela Mazur – Os países da Ásia são forças políticas mais antigas do que essas que enxergamos apenas no presente. Temos a tendência ocidental e infeliz de homogeneizar e subjugar um continente tão grande, tão populoso e tão antigo como a Ásia, em favor de desconhecê-lo e exoticizá-lo para que ele caiba nos nossos preconceitos e generalizações advindos de uma herança eurocentrada e de um presente centralizado nos ideais ocidentais. Tudo faz parte do grande cenário orientalista do qual fazemos parte.
Então, nesse momento em que países da Ásia ficam em grande destaque devido a uma pandemia deste porte, a primeira coisa que percebemos na mídia e no cenário político é o total desconhecimento dessa região em foco, a ponto de não entendermos a importância histórica e estratégica desses países na arena global. A força econômica e política, o distanciamento da lógica ocidental, a aposta na cultura como soft power, a ascensão desses países como grandes polos de influência e o próprio fato de terem se utilizado de outras (e até mais eficazes) dinâmicas de cuidado e recuperação frente à covid-19 só comprovam o fato de que a lógica global está em reestruturação. Países com muito menos poderio de capital em comparação ao Estados Unidos, como o Vietnã, que conseguiu se recuperar de forma muito mais eficaz, rápida e salvaguardando vidas do que as nações do Ocidente, apresentam como a lógica ocidental não é a mais eficiente ou universal para o cenário global.