02 Julho 2020
“Diversos estudos asseguram que, até o final de 2020, a pobreza infantil pode aumentar em 22% na América Latina e Caribe. Se o progressismo quer abordar um novo contrato social pós-pandemia, deve pensar em um paradigma de investimento para a infância e adolescência, que modifique estruturalmente a situação das crianças pobres”, escreve Roxana Mazzola, professora da Universidad de Buenos Aires e coordenadora do programa de Desigualdade e Políticas Públicas Distributivas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais – Flacso (Argentina), em artigo publicado por Nueva Sociedad, junho de 2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Os altos níveis de pobreza e desigualdade na infância estão em relação direta com o investimento dos Estados, assim como sua composição e caráter redistributivo. As políticas podem gerar mais desigualdades ou ajudar a reduzi-la conforme a esfera que se trate (econômica, cultural e educativa). A evolução do investimento social em bens e serviços à infância na América Latina foi crescendo ao início do século XXI, porém desde 2015 essa tendência começou a perder forças e se estagnou.
Grande parte de nossos sistemas de bem-estar social para a infância estão ancorados em investimentos relacionados com a educação e a saúde, os quais implicam incidir na igualdade de oportunidades. Sua efetividade varia enormemente se forem países federais ou unitários, dado que em casos como Brasil, México, Argentina e Venezuela esses serviços foram descentralizados nos governos subnacionais. Adicionalmente, em todos eles têm crescido de forma paulatina a mercantilização na provisão de serviços públicos essenciais.
Os resultados de um primeiro exercício de aplicação que identifica o investimento social na primeira infância (até oito anos) em nove países da América Latina (Argentina, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Paraguai e Peru), realizado em 2015, aponta que esse investimento representa entre 0,5 e 1,6 pontos percentuais do PIB de cada país. Argentina, Colômbia, Costa Rica, Guatemala e México priorizam os investimentos em educação sobre as atividades de saúde. Depois os seguem, porém, em menor medida, os investimentos em ajuda direta. São muito baixos os investimentos relacionados com a igualdade de resultados ou a redistribuição nas infâncias, adolescências e juventudes, com benefícios em matéria de proteção social somente através das famílias (e sempre e quando essas tenham emprego formal).
No início da década de 2000, produziu-se um investimento em transferências condicionadas às rendas das famílias com crianças. Este processo – que teve tantos detratores quanto defensores – teve um importante impacto social, ainda que com baixo orçamento. Segundo informação da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – Cepal, o maior investimento ocorreu na Argentina e onde cresceu a apenas 0,6% do PIB. Em seguida o plano Bolsa Família no Brasil, que em 2018 chegou a representar 0,44% do PIB, os benefícios familiares do Plano Equidade do Uruguai (que chegaram a 0,33%) e o plano Chile Solidário, vigente até 2017, que teve um investimento de 0,14%. Portanto, não se trata de políticas que modifiquem estruturalmente o financiamento dos Estados de Bem-Estar dos países.
A seguridade social está mais ancorada na chamada “geração dos grisalhos”, mas não contempla a infância. Neste sentido, o teórico Gøsta Esping-Andersen chegou a falar dos Estados de Bem-Estar como catalisadores do “bem-estar de apenas uma geração” (a que era ativa no pós Segunda Guerra), dado que as gerações maiores estão protegidas pelos sistemas de pensões, e nisso incidiram sua organização político-sindical. Em parte, demarca que a infância e a juventude são as mais desprotegidas nesse terreno, sem organização sindical ou de outro tipo de organização que as represente politicamente e as tenha como destinatárias exclusivas de suas políticas.
A crise do coronavírus expõe de maneira dramática as desigualdades estruturais e deixa desnuda a difícil situação das infâncias e as adolescências. Por fim, não se trata apenas de desnudar o problema, mas de também amplificar. Um olhar estritamente sanitarista destaca que as crianças e os adolescentes são quem registram a menor taxa de letalidade por coronavírus, porém o viés punitivista, que dominou as análises e as medidas em curso em boa parte dos países, as localizou como agentes transmissores da doença, sem considerar com igual ênfase os flagrantes níveis de pobreza e de desigualdade múltipla que essas infâncias enfrentam. Segundo uma análise recente de Save the Children e Unicef, as consequências econômicas da pandemia poderiam provocar que, até o final de 2020, a pobreza infantil aumente em 22% na América Latina e Caribe.
Isso implica que cerca da metade (46%) das crianças e adolescentes de até 17 anos passará a viver na pobreza. São em torno de 16 milhões a mais que os atuais. Pensemos em um equivalente a toda população da província de Buenos Aires, na Argentina, ou o dobro do Distrito Federal do México. Destas novas crianças pobres, 11 milhões correspondem à América do Sul, que poderá se tornar a zona mais afetada, com um aumento de aproximadamente 30%. A região estaria voltando a níveis similares aos de uma década atrás.
Ao mesmo tempo, essa tendência implica em sérios problemas de estratificação social entre crianças ricas e pobres, com oportunidades de vida diferentes. Cada vez mais, os Estados deverão intervir com políticas em favor da população infantil e dos idosos, porque a combinação produzida na América Latina entre desigualdade e mudanças demográficas – assim como a acelerada urbanização – gera duas transições familiares: uma para os setores populares com mais filhos e outra para os setores de maiores recursos que atrasam a maternidade, desenvolvem-se profissionalmente e vivem mais. Os cuidados desta população não poderão ser resolvidos de forma privada, mas sim como problema público.
De que forma então a pandemia amplifica as múltiplas desigualdades preexistentes e como estão sendo registradas essas propagações desde a agenda de políticas aplicadas na região? Que condicionantes impõem os níveis de endividamento externo e quais são os consensos a construir para dar sustentabilidade política e econômica a um direito universal à seguridade social das infâncias, adolescências e juventudes que tentam reverter estas tendências?
Ainda, deve se avançar mais na solidariedade intergeracional e socioeconômica (vertical e horizontal). Inicialmente transformadoras, as iniciativas implementadas ficaram somente como políticas distributivas: nem redistributivas, nem regulatórias, nem constituintes. O princípio de solidariedade e redistribuição de renda deve ser analisado aqui. A diferença no financiamento, como se trata de seguridade, seguro e assistência social, é que no primeiro caso a forma de sustentá-lo é mediante impostos progressivos, no segundo pelas condições de trabalho, e no terceiro por rendas gerais ou sem que fique claro quem financia, como quando se trata de desembolsos que chegam pelo crédito internacional.
A função distributiva do Estado, também no que se refere às infâncias e adolescências, expressa-se pela excelência no orçamento nacional e nas ofertas programáticas, onde se visualizam diversos processos históricos de lutas e conquistas sociais prévias, com suas persistências e modificações ou reorientações, que configuram as marcas distintivas de cada Estado de Bem-Estar social.
Não se trata de uma disputa intergeracional, nem de avançar no paradigma do investimento que deixa fora outros direitos, mas sim em uma expressão mais justa que um simplesmente progressismo diferencial. A agenda deveria ser mais profunda e redistributiva, respaldada em fundos com impostos progressivos que garantam um direito universal de seguridade social à infância, adolescência e juventudes, e deveria se evitar que se trate de prestações assistenciais com montantes insuficientes, ou no melhor dos casos que se trate de formatos híbridos entre seguridade social e assistência social, como foi no caso do Benefício Universal por Filho, na Argentina.
Esses são alguns aspectos a considerar sobre como construir um progressismo que atenda privilegiadamente às “novas gerações”. Requer-se não somente conseguir transformações qualitativas na conceituação e nas tentativas de resolução dos problemas sociais que se apresentam, mas também de avançar mais em transformações quantitativas, o que implica maior investimento e progressividade no financiamento.
A pandemia de covid-19 nos conduz a uma agenda assistencial que dê soluções urgentes, porém também é uma oportunidade para pensarmos em projeções mais estruturais. Não deveríamos incorporar as crises como componentes permanentes de nossos sistemas de políticas? Ainda imaginando um futuro sem pandemia, não se torna um grande condicionante para o desenvolvimento dos países, ademais de um drama social atual, contar com a metade da população infantil em situação de pobreza? Depois de se avançar decididamente em medidas que revertam esta situação, um primeiro caso seria consagrar um direito à seguridade social para a infância, entre outras iniciativas que tenham a pandemia como partida para políticas mais transformadoras.
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América Latina. Um progressismo que olhe para as crianças - Instituto Humanitas Unisinos - IHU