10 Setembro 2016
“Nos últimos anos, o auge do extrativismo e a limitação de alguns direitos e liberdades levaram a um aumento do conflito entre governos progressistas e boa parte dos movimentos sociais. Neste cenário, a partir das instituições, as críticas foram interpretadas como um ataque a mais da oposição que é necessário desarticular, deslegitimando e perseguindo a mobilização de organizações indígenas, estudantis, ambientalistas e inclusive de determinados sindicatos, que foram vinculados à direita internacional, sem quaisquer provas”, escreve Erika González, pesquisadora do Observatório de Multinacionais na América Latina (OMAL) – Paz com Dignidade, em artigo publicado por Diagonal, 08-09-2016. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A América Latina está vivendo uma mudança de ciclo. Nos últimos anos, os governos progressistas – que não são um bloco homogêneo: a relação de forças e o grau em que as mudanças sociais, políticas e culturais ocorreram foram muito diferentes no Brasil e Argentina, por um lado, e na Venezuela, Bolívia e Equador, por outro – enfrentaram toda uma série de dificuldades que, finalmente, puseram em xeque sua hegemonia na região. Vejamos alguns dos elementos centrais do que já podemos caracterizar como o fim de um ciclo.
Os casos de corrupção que respingaram em parte destes governos e o fato de “transformar sem subverter a fundo um cenário social, político e econômico dado”, como dizia a ativista equatoriana Magdalena León, foram chaves após um período de mais de uma década de governos progressistas. No que diz respeito ao marco econômico, desde o início de seus mandatos, estes não viram como possível, nem conveniente, dirigir-se a modelos pós-extrativistas, nem tratar de mudar sua posição na economia mundial. Precisamente o fato de manter no essencial uma estrutura econômica herdada foi o que freou o aprofundamento das transformações demandadas por parte de muitos movimentos sociais. Isto, inclusive, determinou alguns projetos que contaram com uma considerável oposição social, como a exploração petroleira no Parque Nacional Yasuní, no Equador, ou a estrada que iria atravessar o Território Indígena do Parque Nacional Isiboro-Secure, na Bolívia.
A ascensão dos governos progressistas permitiu uma mudança na negociação com as grandes corporações. Foi o que demonstraram os decretos de nacionalização, os novos contratos firmados e as ações apresentados por diversas companhias nos tribunais de arbitragem internacional. A regulamentação que criaram, junto ao elevado preço das matérias-primas, permitiram maximizar a renda extrativista e, consequentemente, o orçamento público. É desta maneira que financiaram múltiplas iniciativas e programas de bem-estar social que supuseram uma melhora da qualidade de vida para amplas camadas da população.
Contudo, as empresas transnacionais, ainda que estejam submetidas a uma maior regulamentação e tenham visto suas margens de benefício reduzidas, seguem com uma grande capacidade de controle sobre setores estratégicos. A realidade é que existe um acordo tático com determinadas companhias multinacionais que operam em setores chave, como ocorre com a Repsol na Bolívia, Equador e Venezuela. As aparições públicas do presidente Evo Morales com Antonio Brufau, presidente da Repsol, para mostrar a boa sintonia existente entre a transnacional de matriz espanhola e o governo boliviano são uma demonstração disso.
A aliança destes governos com as grandes corporações se justifica pelos investimentos realizados no país e porque dizem cumprir o marco normativo destes países. No entanto, quando os benefícios reais são menores que o esperado, as transnacionais pressionam para aumentar os incentivos e facilidades para sua atividade. E este é justamente o contexto econômico atual. O que foi uma oportunidade, maximizar o orçamento público a partir das rendas obtidas da exploração e venda dos recursos naturais, agora é uma ameaça. A redução de preços das matérias-primas está reduzindo ingressos e liquidez às economias nacionais e às contas de resultados empresariais.
Assim, as multinacionais estão utilizando tal aliança para modificar o marco normativo a seu favor, em dois aspectos: expandir as fronteiras extrativistas e aumentar os incentivos e os abatimentos fiscais. As duas medidas já estão sendo colocadas em marcha como caminho para sustentar os ingressos, diante da urgente necessidade de manter os orçamentos públicos. Este é o caso da Bolívia que, no ano passado, aprovou leis para permitir a entrada das petroleiras em parques nacionais e destinar parte do imposto direto de hidrocarbonetos a incentivos às empresas transnacionais.
Os objetivos iniciais destes governos incluíam ser menos dependentes das exportações a médio e longo prazo, fomentar um forte tecido econômico local e reduzir o peso das grandes empresas na economia, tendo muito presente a debilidade que supunha ser refém do mercado mundial. No entanto, durante o período de preços altos das matérias-primas, e contando com um cenário econômico propício, não foram fortalecidos os projetos que poderiam permitir oferecer uma saída à situação atual. O governo da Venezuela, por exemplo, nestes quinze anos, não conseguiu reduzir ostensivamente sua dependência das importações de alimentos.
No contexto da criação de uma nova arquitetura financeira internacional, iniciou-se a construção do Banco do Sul para aumentar a soberania dos governos progressistas frente às grandes instituições financeiras internacionais, como o FMI e o Banco Mundial. Apesar de ser um projeto chave para procurar se defender do poder financeiro, a realidade é que avançou muito lentamente e ainda não se concretizou. Agora, está sendo reivindicado o seu andamento de forma urgente, mas a urgência se dá em um marco com enormes dificuldades políticas e econômicas.
Os grandes poderes econômicos e as oligarquias nacionais sempre se fizeram notar e, de fato, houve momentos em que o confronto foi de grande magnitude. Recordemos, sem ir muito longe, o golpe de Estado na Venezuela, em 2002, o autodenominado golpe cívico nos departamentos orientais da Bolívia, em 2008, o golpe de Estado em Honduras, em 2009, e o golpe parlamentar no Paraguai, em 2012.
O último episódio ocorreu no Brasil, onde a crise institucional e o golpe parlamentar da direita instaurou um governo funcional aos poderes econômicos. Uma mostra disso foram as reformas a contrarrelógio que propuseram para ampliar as margens de benefício das grandes empresas. Isso sim, além de denunciar os mecanismos nada democráticos dos quais a oposição política tem se servido para este fim e reconhecer que existe um forte rejeição social a esta manobra, o Partido dos Trabalhadores (PT) não se esquiva da autocrítica: reconhece ter sido refém de acordos táticos que, ao final, fortaleceram a direita, assume ter se “contaminado” com o financiamento de grandes grupos em suas campanhas eleitorais e reconhece não ter sabido responder adequadamente ao esgotamento do ciclo econômico.
No caso da Argentina e Venezuela, o contexto econômico, o desgaste político e a ausência de lideranças fortes – como as de Hugo Chávez e Cristina Fernández – facilitaram um maior impacto social dos ataques das oligarquias nacionais e, por fim, o êxito da direita nas eleições presidenciais da Argentina e nas legislativas da Venezuela. Nos casos da Bolívia e Equador, a continuidade de Evo Morales e de Rafael Correa possibilitou vitórias amplas nas últimas eleições. Caso nas próximas eleições presidenciais estes não se apresentarem, seus sucessores continuarão obtendo bons resultados?
Líderes muito carismáticos favorecem chegar a maiorias e a uma grande acumulação de forças, mas dificultam o caminho para dar continuidade aos projetos. Coloca-se em evidência, então, a necessidade de trabalhar para criar poder popular e, por um lado, ganhar o suficiente respaldo social no confronto com o poder econômico para avançar nas reformas em favor das mudanças estruturais, enquanto que, por outro, se fortalece o controle das lideranças e são facilitados os passos que necessariamente serão necessários dar.
Nos últimos anos, além do mais, o auge do extrativismo e a limitação de alguns direitos e liberdades levaram a um aumento do conflito entre estes governos progressistas e boa parte dos movimentos sociais. Neste cenário, a partir das instituições, as críticas foram interpretadas como um ataque a mais da oposição que é necessário desarticular, deslegitimando e perseguindo a mobilização de organizações indígenas, estudantis, ambientalistas e inclusive de determinados sindicatos, que foram vinculados à direita internacional, sem quaisquer provas. Embora as pontes entre os movimentos sociais e os governos mais que nunca sejam necessárias, a realidade é que o divórcio entre ambos é notório, como destacava, há um ano, Marco Gandarillas, diretor do CEDIB (Centro de Documentação e Informação Bolívia).
A ascensão dos governos progressistas na região foi, sem dúvida, uma referência para a esquerda internacional na disputa pelo poder e na possibilidade de avançar em políticas transformadoras, a partir de instâncias de governo. Diante de uma mudança de ciclo como o que está ocorrendo agora, a América Latina também é um espelho para o qual olhar. As dificuldades econômicas, sociais e políticas que agora estão vivendo diferentes países latino-americanos são questões a se levar muito em conta na análise dos limites e possibilidades dos “governos de mudança” na Europa.
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Governos progressistas na América Latina: notas sobre o fim de um ciclo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU