17 Junho 2020
“A sociedade adultocêntrica é individualista, arrogante e produtivista demais para olhar para onde as crianças olham e para o que elas precisam. Na verdade, só se lembra delas quando se trata de consumir, quando suas necessidades podem se tornar objeto de lucro”, escreve Esther Vivas, escritora, ativista e pesquisadora em movimentos sociais e políticas agrícolas e alimentares, em artigo publicado por Viento Sur, 16-06-2020. A tradução é do Cepat.
Vivemos em uma sociedade infantofóbica, onde a crise do coronavírus fez cair a máscara. Vemos isso desde que começou a emergência sanitária, com políticas que mantiveram as crianças trancadas em casa por 44 dias, sem levar em conta suas necessidades físicas e emocionais, e em comentários e artigos publicados que mostraram abertamente da incompreensão ao ódio pelos pequenos.
A Espanha foi o único país da Europa com um confinamento tão duro para os menores. Enquanto levaram em consideração as necessidades dos animais domésticos, que também são importantes, que puderam ser levados às ruas ao longo do confinamento, as necessidades das crianças foram ignoradas. Era tão difícil permitir que os menores saíssem uma hora por dia para passear, mantendo uma distância segura de outros adultos? Pois, foi. Algo que diz muito sobre como nossa sociedade vê e trata a infância. Com o mantra “as crianças se adaptam a tudo”, pisotearam seus direitos.
Muitos comentaristas, seja em redes sociais ou em artigos, tampouco foram econômicos. Os pequenos foram rotulados como “supercontagiadores”, independentemente de qualquer evidência científica. Foram acusados, sem nenhum tipo de pudor, “por transmitir o vírus a todos os adultos que se aproximam ou as tocam”. Quantas mães durante o confinamento foram repreendidas na rua quando saíram com suas crianças, que não podiam ser deixar sozinhas em casa. Gerar animosidade e fobia em relação à infância tem suas consequências, e o preço a pagar é alto.
Se a mesma mensagem fosse lançada contra outro grupo, quanto tempo levaria para as redes pegarem fogo e muitos se posicionarem? No entanto, contra menores vale tudo. Será que não estão em igualdade de condições com os adultos para reivindicar seus direitos e se defender? Ou por acaso assimilamos o discurso adultocêntrico e individualista que afirma que meninos e meninas por definição são um estorvo?
A sociedade atual exalta hipocritamente a infância, enquanto a menospreza. Poderíamos dizer o mesmo com a juventude. Na realidade, idolatra-se uma infância adocicada, com crianças bonitas, sorridentes e silenciosas, que vemos em revistas e reportagens, mas se vira as costas e nega suas necessidades. Constrói-se um ideal de infância, útil ao patriarcado e ao capitalismo, que nada tem a ver com a infância real. A sociedade adultocêntrica é individualista, arrogante e produtivista demais para olhar para onde as crianças olham e para o que elas precisam. Na verdade, só se lembra delas quando se trata de consumir, quando suas necessidades podem se tornar objeto de lucro.
O discurso contra as crianças tem muito a ver com o discurso antimaterno. A maternidade é reduzida a uma maternidade patriarcal trancada em casa ou a uma maternidade neoliberal útil para o mercado, enquanto se nega e invisibiliza a maternidade real, porque o que nós, mães, vivenciamos chateia e incomoda. É melhor fingir que as contradições e ambivalências inerentes à maternidade não existem e relegar as dificuldades da maternidade ao privado. Um silêncio que gera a violação de direitos. Algo muito parecido com o que acontece com a infância.
Em resumo, é um discurso antivida e anticuidados que não leva em conta nossa própria vulnerabilidade e dependência, que comercializa necessidades e considera nossa vida moldável aos interesses do capital. Um discurso falsamente progressista, às vezes, até vestido de feminista e ecologista, mas de fato liberal, que apela à liberdade do indivíduo, enquanto rejeita toda a responsabilidade coletiva, a imprescindível ajuda mútua, e que nega a interdependência humana.
Nós o vemos nessa alegação de não ter compromissos, algo que pode ser considerado muito ‘cool’, em olhares paternalistas para mães e bebês, que são incapazes de enxergar além da maternidade reacionária que nos é imposta. Reivindicam-se restaurantes, hotéis e praias ‘childfree’ e se nega que os pequenos, como a organização da dependência e como a natureza, são uma responsabilidade coletiva, política e não individual. São posições que, mesmo com uma linguagem falsamente progressista, reproduzem uma atitude machista, conservadora, individualista e discriminatória.
Não podemos nos permitir uma sociedade anticrianças. Não há futuro possível com um salve-se quem puder.
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Em defesa das crianças. Artigo de Esther Vivas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU