06 Mai 2020
A quarentena de combate ao coronavírus sugerida pelas autoridades foi estabelecida para evitar o colapso do sistema de saúde no país por conta da rápida propagação do vírus e, também, para proteger os mais vulneráveis – as pessoas idosas e os portadores de comorbidades. A nova rotina colocou pais ou responsáveis trabalhando remotamente pelo chamado home office. E, as crianças, sem aula, atividades extracurriculares ou lazer, também estão em casa. Em uma atmosfera como essa, tomada por medo, ansiedade, estresse e confinamento, vítimas podem estar confinadas com seus algozes.
A reportagem é de Carol Mattos, publicada por EcoDebate, 05-05-2020.
Segundo o ortopedista infantil David Nordon, colegas médicos o têm procurado para se certificarem se as fraturas, inicialmente justificadas como acidentes domésticos, não seriam, na verdade, resultado de maus tratos. “O médico ortopedista, depois do pediatra, é o segundo profissional da saúde que mais se depara com esses casos de violência. Nesse sentido, a regra mundial, para que todos fiquem em casa, tornou-se uma verdadeira tortura para esses vulneráveis”, afirma.
O médico ainda afirma que alguns tipos de lesões são evidencias de agressão. “As fraturas de fêmur, especialmente em crianças com até dois anos, ou que ainda não andam; as fraturas de costelas; fraturas complexas de crânio e fraturas em diferentes ossos de uma só vez. Nos menores de dois anos é importante fazer a radiografia do corpo inteiro para identificar os traumas múltiplos em distintos estágios de evolução. Outras marcas possíveis por agressão incluem queimaduras com bitucas de cigarro e ferro de passar roupas. As queimaduras nos tornozelos e nas nádegas, por exemplo, indicam que a criança foi colocada na água quente, no entanto tentou escapar. Marcas nos braços e nas coxas indicam violência. Já na testa ou nas pernas são lesões normais, indicativa de que caiu ao caminhar, por exemplo,” explica Nordon.
Estudos recentes comprovam que a violência doméstica durante a quarentena teve aumento considerável em diversos países. Entre eles estão: China, França, Portugal, EUA e Reino Unido. No Brasil, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos registrou aumento de 9% nas ligações para o Disque 180 (Disque Denúncia – serviço de denúncia e de apoio às vítimas).
Para a psicoterapeuta especializada no tratamento de depressão, ansiedade e síndrome do pânico, Ana Beatriz Cintra, infelizmente já era esperado que a violência doméstica – tanto contra a mulher como contra as crianças – aumentasse durante o distanciamento social em famílias onde o problema já era preexistente. “A convivência extrema, o isolamento, a profusão de sentimentos – ansiedade, medo do futuro, de ser infectado, da morte, de perder o emprego e da falta de recursos, entre outros, provocam estresse e nervosismo nos adultos. Apesar da casa ser sinônimos de aconchego, segurança e sossego, a convivência, dentro desse contexto, evidencia ainda mais o mal-estar já existente. A válvula de escape vem pela violência”, lamenta Ana Beatriz Cintra.
Meninos e meninas que sofrem agressões muitas vezes são desacreditados. O dado foi constatado no estudo Inspire, conduzido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em parceria com diversas entidades internacionais e divulgado em 2016, que estimou que em todo o mundo cerca de 1 bilhão de crianças e adolescentes entre 2 e 17 anos sofreram violência psicológica, física ou sexual no ano anterior à coleta dos dados. O levantamento foi feito em 96 países.
No final de 2018, a Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), em parceria com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), lançou a segunda edição do Manual de Atendimento às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência. O documento é destinado principalmente aos profissionais que trabalham com crianças para que sejam treinados a reconhecer rapidamente e saber como agir ao identificar sinais dos mais diferentes tipos de agressão.
“O papel do médico, tanto do pediatra quanto do ortopedista infantil, é promover uma boa avaliação para tentar identificar, com o máximo de assertividade possível, se as marcas, fraturas ou hematomas foram causados por acidente ou violência. Como isso é possível? Além das observações clínicas, uma boa conversa é necessária. Tentar saber quais as características da personalidade da criança e também dos responsáveis – pais ou tutores – é essencial para a conclusão”, explica David Nordon.
Já Ana Beatriz Cintra acredita que a violência contra criança, em muitos casos, é decorrência de pais que não têm voz ativa. E que apesar de existir no Brasil a Lei da Palmada – a qual protege a criança e o adolescente de castigos físicos ou tratamentos cruéis e degradantes – justificam o ato violento para “educar”.
“O limite jamais deve ser imposto com agressão. Existem métodos eficazes como a firmeza da palavra que, usada em um tom adequado de voz, indicará à criança que ali é uma linha tênue, que deve ser respeitada”, explica Ana Beatriz Cintra.
Casos de violência, sejam física, verbal, psicológica ou de negligência, devem ser notificados às autoridades – Conselho Tutelar ou uma delegacia – para que as medidas de proteção sejam rapidamente adotadas. Durante a pandemia do coronavírus no Brasil, as denúncias anônimas devem ser feitas pelo Disque Denúncia – 181, 180 ou 100. Ainda existe um serviço, lançado pelo Governo Federal, onde as denúncias podem ser registradas pelo aplicativo “Direitos Humanos Brasil”.
“Tanto os profissionais de saúde, quanto a população em geral, ao presenciar casos de violência, sejam de qualquer natureza, devem notificar as autoridades. Só assim estaremos colaborando de forma efetiva para a diminuição desse abuso contra as crianças e também contra qualquer pessoa em situação de vulnerabilidade”, finaliza David Nordon.
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Alerta sobre maus-tratos contra crianças durante o isolamento social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU