03 Abril 2020
George Gao, diretor-geral do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da China, respondeu a perguntas do jornalista Jon Cohen. A entrevista foi solicitada há dois meses. Nesta entrevista publicada pela revista americana Science, ele analisa especialmente a gestão da crise feita pela China.
A entrevista é de Jon Cohen, publicada por Le Monde, 01-04-2020. A tradução é de André Langer.
Os cientistas chineses, na vanguarda da luta contra a epidemia de coronavírus de 2019 (Covid-19) em seu país, dificilmente são acessíveis à mídia estrangeira. Compreender e combater a epidemia é uma tarefa estafante, e responder a solicitações da imprensa, e especialmente de jornalistas de fora da China, não é uma prioridade. A Science vinha tentando entrevistar George Gao, diretor geral do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da China, há dois meses. Na semana passada, [em meados de março] atendeu ao nosso pedido.
George Gao dirige uma agência com 2.000 funcionários (ou seja, um quinto dos efetivos dos Centers for Disease Control and Prevention [Centros de Controle e Prevenção de Doenças, seu equivalente nos Estados Unidos]) e continua sendo um pesquisador muito ativo. Em janeiro, sua equipe foi a primeira a isolar e sequenciar o SARS-CoV-2, ou coronavírus 2, da síndrome respiratória aguda grave, que causa a doença chamada Covid-19. Ele é coautor de dois estudos publicados na prestigiosa revista New England Journal of Medicine (NEJM), que tiveram um impacto muito grande: eles forneceram pela primeira vez aspectos epidemiológicos e clínicos detalhados da infecção. Ele também publicou três artigos sobre a Covid-19, que apareceram na [revista científica médica britânica] The Lancet.
Sua equipe também fez uma importante contribuição para uma missão conjunta composta por pesquisadores chineses e internacionais que, sob a égide da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicaram um relatório decisivo depois de visitar a China para melhor entender a resposta dada à epidemia.
Após estudar medicina veterinária, George Gao obteve o doutorado em bioquímica em Oxford e se especializou em imunologia e virologia como pós-doutorando nessa universidade britânica e depois em Harvard. Seus trabalhos de pesquisa se concentram nos vírus encapsulados (envoltos em uma frágil membrana lipídica protetora), incluindo o SARS-CoV-2, e seus mecanismos de entrada de células e de transmissão interespécies.
George Gao respondeu às nossas perguntas ao longo de vários dias e através de vários meios (SMS, assim como de mensagens e conversas telefônicas). A entrevista a seguir é um resumo, editado para maior clareza e concisão.
O que os outros países podem aprender com a gestão da Covid-19 feita pela China?
O distanciamento social é a estratégia fundamental no controle de todas as doenças infecciosas e mais ainda das infecções respiratórias. Primeiro, implantamos “estratégias não farmacológicas”, na medida em que não dispomos de nenhum inibidor, medicamento específico ou vacina. Segundo, é preciso certificar-se de isolar todos os casos. Terceiro, colocar em quarentena todos os contatos próximos: nós dedicamos muito tempo identificando e isolando essas pessoas. Quarto, suspender todas as reuniões públicas. E quinto, restringir os deslocamentos, daí o estabelecimento da quarentena, ou do “cordon sanitaire”, como se diz em francês.
A reclusão começou na China em 23 de janeiro em Wuhan e depois foi estendida às cidades vizinhas na província de Hubei. Outras províncias chinesas implementaram medidas menos rigorosas. Como foi feita a coordenação desses arranjos e qual o papel dos “controladores” de bairros encarregados de monitorar sua aplicação localmente?
Acima de tudo, é preciso que as medidas sejam compreendidas e consensuais. Isso requer uma forte vontade política, tanto em nível local como nacional. Os controladores e coordenadores devem envolver estreitamente a população. Os controladores devem conhecer a identidade dos casos de contato, mas também dos casos suspeitos. Os controladores de proximidade devem ser muito vigilantes, seu papel é essencial.
Que erros estão sendo cometidos por outros países hoje?
O grande erro nos Estados Unidos e na Europa é, na minha opinião, que a população não usa máscara. Este vírus é transmitido por gotículas respiratórias, de pessoa para pessoa. As gotículas desempenham um papel muito importante, daí a necessidade da máscara – o simples fato de falar pode transmitir o vírus. Muitos indivíduos afetados são assintomáticos ou ainda não apresentam sintomas: com uma máscara, você pode impedir que gotículas portadoras do vírus escapem e infectem outras pessoas.
Existem outras medidas para combater a epidemia. A China está fazendo um uso intensivo de termômetros na entrada de comércios, edifícios e estações de transporte público.
De fato. Onde quer que você vá na China, existem termômetros. A medição generalizada da temperatura torna possível que não se deixe entrar quem está com febre. Porque a estabilidade desse vírus no ambiente é uma questão-chave, que permanece sem resposta até o momento. Sendo um vírus encapsulado, somos tentados a pensar que é frágil e particularmente sensível à temperatura ou à umidade das superfícies. No entanto, os resultados obtidos nos Estados Unidos e estudos chineses sugerem que seria muito difícil destruí-lo em certas superfícies. Pode ser capaz de sobreviver em muitos ambientes. Sobre esse ponto, aguardamos respostas científicas.
Em Wuhan, as pessoas que apresentaram resultado positivo, mas foram pouco afetadas pela doença, foram colocadas em quarentena em instalações ad hoc, com a proibição de receber visitas de seus parentes. Essa é uma abordagem que deve inspirar outros países?
As pessoas infectadas devem ser isoladas. Isso deve acontecer em todos os lugares. A Covid-19 só será controlada se você conseguir eliminar as fontes de infecção. Foi para isso que construímos hospitais de campanha e transformamos estádios em hospitais.
Muitas questões permanecem em torno do surgimento da doença na China. Pesquisadores chineses relatam um primeiro caso que apareceu em 1º de dezembro de 2019. O que você diz sobre a investigação do South China Morning Post [jornal de Hong Kong] que estima, com base em um relatório interno do Estado chinês, que esses casos já tinham sido declarados em novembro, com um primeiro caso em 17 de novembro?
Não há evidências sólidas da existência de surtos epidêmicos já em novembro. Continuamos nossa pesquisa para entender melhor as origens da doença.
As autoridades sanitárias de Wuhan vincularam um grande número de casos ao mercado de frutos do mar de Huanan, que foi fechado em 1º de janeiro. A hipótese deles era que um vírus havia se espalhado para os humanos a partir de um animal que havia sido vendido e possivelmente também cortado nesse mercado. No entanto, em seu artigo publicado na NEJM, que inclui também um histórico específico da doença, você relatou que quatro das cinco primeiras pessoas infectadas não tinham vínculos com o mercado de frutos do mar de Huanan. Você considera esse mercado um provável local de origem da doença ou, ao contrário, é uma pista falsa, um fator amplificador, mas não a fonte original?
Essa é uma excelente pergunta. Você trabalha como um verdadeiro detetive. Desde o início, todos pensaram que esse mercado era a fonte da doença. Hoje, não sei se o mercado foi o lugar inicial onde o vírus surgiu ou o lugar onde se espalhou. Existem duas hipóteses: cabe à ciência decidir.
A China também foi criticada por não compartilhar imediatamente o genoma do vírus. Foi o Wall Street Journal que, no dia 8 de janeiro, tornou pública a existência de um novo coronavírus; as informações não vieram de equipes de pesquisa do Estado chinês. Por quê?
O Wall Street Journal estava certo. A OMS havia sido informada sobre o sequenciamento e acredito que apenas algumas horas se passaram entre a publicação do artigo e o anúncio oficial. Não mais que um dia, em todo caso.
Mas podemos ver em um banco de dados de genomas virais de acesso livre que a primeira sequência proposta por cientistas chineses remonta a 5 de janeiro. Portanto, três dias se passaram desde quando você sabia que era um novo coronavírus. Isso não vai mudar o curso da epidemia, mas, para ser sincero, hoje é preciso reconhecer que algo aconteceu com o anúncio do sequenciamento.
Eu não acredito nisso. Fomos rápidos em compartilhar as informações com a comunidade científica, mas é uma questão de saúde pública, por isso tivemos que esperar pelo anúncio dos poderes públicos. Ninguém quer causar pânico, não é? E ninguém em qualquer lugar do mundo teria previsto que esse vírus iria provocar uma pandemia. Esta é a primeira pandemia da história que não é causada por um vírus influenza.
Somente em 20 de janeiro as equipes chinesas declararam oficialmente ter evidências de transmissão de humano para humano. Por que você acha que os epidemiologistas na China tiveram tanta dificuldade para ver o que estava acontecendo?
Nós ainda não dispúnhamos de dados epidemiológicos detalhados. E estávamos enfrentando desde o início um vírus muito violento e traiçoeiro. A mesma coisa aconteceu na Itália, em outros lugares da Europa e nos Estados Unidos. Desde o início, os cientistas, como todo mundo, pensaram: “Bem, é apenas um vírus”.
A propagação é agora extremamente lenta na China, onde se diz que os novos casos são essencialmente importados. Você confirma?
Absolutamente. No momento, não temos mais transmissão local, mas nosso problema agora vem de casos importados. Um número muito grande de pessoas infectadas está chegando agora à China.
O que acontecerá quando a vida normal retomar seu curso na China? Você acha que uma parte suficiente da população foi infectada, para que a imunidade coletiva mantenha o vírus sob controle?
A imunidade coletiva ainda não foi atingida, esta é uma certeza. Mas estamos aguardando resultados mais convincentes das pesquisas de anticorpos, o que nos dirá exatamente quantas pessoas foram infectadas.
Então, que estratégia adotar? Ganhar tempo enquanto se aguarda o desenvolvimento de medicamentos eficazes?
Exatamente, e nossos cientistas estão trabalhando com vacinas e medicamentos.
Muitos cientistas consideram o Remdesivir a droga mais promissora atualmente em teste. Quando você espera obter resultados de ensaios clínicos para a China?
Em abril.
As equipes chinesas desenvolveram modelos animais que você considera robustos o suficiente para estudar a patogênese e testar medicamentos e vacinas?
No momento, estamos usando macacos e camundongos transgênicos com receptores de ACE2, que são os pontos de entrada para o vírus em humanos. O camundongo é um modelo amplamente utilizado na China na avaliação de tratamentos medicamentosos e de candidatos a vacinas, e acredito que dois estudos em macacos devem ser publicados em breve. De qualquer forma, posso dizer que nosso modelo símio está pronto.
O que você acha do nome “vírus da China”, ou “vírus chinês” [vírus chinês, da China], usado pelo presidente estadunidense, Donald Trump, para designar o novo coronavírus?
Falar de vírus chinês é de fato uma péssima ideia. Este vírus vem do planeta Terra. Ele não é inimigo de um indivíduo ou de um país: ele é o inimigo de todos nós.
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(Artigo traduzido do inglês para o francês por Julie Marcot.)
Jon Cohen é jornalista da revista Science. Especializado em biomedicina, é reconhecido por sua cobertura de epidemias (HIV/Aids, SARS, Ebola). Ele também fez numerosas reportagens sobre genética, pesquisa com primatas, evolução, bioterrorismo, financiamento de pesquisas, ética, biologia reprodutiva, batalhas de crédito e a própria mídia. Seus artigos receberam prêmios da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos e da Sociedade Americana de Microbiologia.
A referência exata desta entrevista publicada originalmente na revista americana Science é: “Not wearing masks to protect against coronavirus is a ‘big mistake’, top Chinese scientist says”, Jon Cohen, 27 de março 2020, Science. Estamos republicando-a com a permissão da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), que publica este periódico. Esta tradução não é uma versão oficial do texto, não foi revisada pela equipe da AAAS, nem considerada em conformidade pela AAAS. Para fins de verificação, consulte a versão original em inglês publicada pela AAAS.
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