25 Março 2020
A propósito dos acontecimentos destes dias, publicamos uma reflexão que nos foi enviada pelo frade Timothy Radcliffe, ex-mestre geral dos dominicanos, em vista da Páscoa.
O artigo é publicado por Il Regno, 24-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Alguns dias atrás, esperando para passar pelos controles de segurança no aeroporto de Tel Aviv, parei para observar os movimentos do rapaz que estava na fila na minha frente. Todas as vezes que dávamos alguns passos, ele sempre colocava uma mala um metro e meio à frente e outra a um metro e meio atrás dele, para que ninguém pudesse se aproximar dele. Ele poderia ter as suas boas razões, mas foi um poderoso símbolo daquilo que o vírus significa para milhões de pessoas: isolamento, manter a distância. A própria presença dos outros pode representar uma ameaça, e cada um de nós é uma ameaça para os outros.
O isolamento pode ser mais terrível do que a morte. Todos teremos que morrer, e, para muitos, a morte vem como um alívio esperado. Mas o isolamento mina a nossa própria humanidade: os avós estão isolados dos seus netos, os namorados estão separados uns dos outros. A nossa vida é feita de contatos recíprocos: dos mínimos aos mais íntimos.
Em um romance de Jonathan Safran Soer, há um personagem que diz: “Tocá-lo era muito importante para mim. Eu vivia para isso. Não saberia explicar por quê. Contatos pequenos, insignificantes. Os meus dedos nas suas costas. As nossas pernas que se tocavam esmagadas no ônibus”. Agora, ameaçados pelo coronavírus, um contato vital pode se tornar mortal.
Na noite anterior à minha partida, fui ao Santo Sepulcro em Jerusalém e visitei o túmulo onde se acredita que Jesus foi deposto por três dias. No coração da fé cristã, há um homem que morreu em total isolamento. Foi elevado sobre a cruz acima da multidão, sem mais qualquer contato, transformado em um objeto nu. Parecia até que ele se sentia separado do Pai, e as suas últimas palavras, de acordo com os Evangelhos de Marcos e Mateus, foram: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”.
Naquele momento, ele não apenas abraçou as nossas mortes. Ele assumiu totalmente a solidão que todos nós, às vezes, suportamos e que milhões de pessoas estão vivendo hoje.
Na noite anterior à sua morte, esse isolamento já era palpável. Ele reuniu ao seu redor os amigos mais próximos para uma última ceia. Um deles já o havia vendido aos que queriam a sua cabeça. Pedro, a sua rocha, estava prestes a negar até que o conheceu, e a maioria dos outros estava quase lhe dando as costas.
Naquele momento tão atroz, ele fez algo absolutamente chocante: pegou o pão e o vinho e disse: “Este é o meu corpo e este é o meu sangue, derramado por vocês”.
Quando a comunidade estava desmoronando, e cada um se preparava para enfrentar o futuro sozinho, Jesus fez a promessa de uma nova comunhão, que seria mais forte do que a traição e a covardia, e que nada poderia destruir, nem mesmo a morte.
Quando as igrejas estão fechadas e o culto público está temporariamente suspenso, essa promessa ainda permanece, e o dom não deixa de ser oferecido.
Portanto, sim, esse vírus horrível pode nos isolar uns dos outros fisicamente, e essa é uma privação profunda. Mas os cristãos acreditam que toda a nossa solidão é abraçada em uma comunhão que ultrapassa qualquer barreira. O Senhor ressuscitado chega através das portas, atrás das quais os discípulos haviam se fechado em autoisolamento, e os liberta do medo e da solidão.
Mesmo que não possamos participar da eucaristia, ainda podemos dar vida aos símbolos da comunhão. Na Irlanda do Norte, há um hotel que se ofereceu para distribuir refeições gratuitas para as pessoas fechadas dentro das suas casas: “Ligue antes das 13h e peça uma refeição. À noite, entregaremos o jantar, sem qualquer custo pela comida ou pela entrega”. Na Itália, as pessoas saem nas sacadas e cantam umas para as outras. A música chega às salas para abraçar cada um na sua solidão.
A música certamente é mais capaz do que as palavras para expressar uma esperança. Há uma composição escrita para o 11 de setembro, “Between Worlds”, de Tansy Davies, que estreou mundialmente em 2015. Houve quem ficasse perturbado com o fato de ter sido possível compor uma obra sobre um evento tão terrível, mas talvez seja o único modo para enfrentar a sua brutalidade.
Nikolas Drake, o libretista, disse que “colocar a força transformadora da música no coração do drama, na nossa opinião, permite olhar diretamente para a tragédia ocorrida no 11 de setembro e também entrever alguma luz naquela escuridão. Parece que a música até desempenhou um papel ao ajudar as pessoas naquele dia. Um agente entoava hinos enquanto se encontrava com aqueles que desciam as escadas para lhes dar coragem. Alguns familiares, ao telefone com seus entes queridos, sem mais palavras a dizer, cantavam”.
Se agora milhões de nós têm que enfrentar o isolamento, que gestos podemos fazer para entrarmos em contato com aqueles que não podemos contatar? Podemos fazer as compras para quem não pode fazer sozinho e deixá-las na frente da porta, ligando para eles ou enviando uma mensagem. Existem pequenos gestos que podem expressar um pertencimento profundo.
Cada eucaristia nos recorda o que Jesus fez diante da morte, opondo-se à sua ameaça do isolamento mais extremo. Nunca estive tão consciente disso como quando rezei a missa na Síria, a menos de 10 quilômetros do front, com os tiros de canhão que podiam ser ouvidos não muito longe dali. A ameaça da violência era onipresente, e, no entanto, ao cantarmos e repetirmos os gestos do dom de nós mesmos que nada poderá destruir, expressamos a nossa esperança.
Mesmo quando não posso ir ao encontro da comunidade em oração e me unir a ela, Deus permanece presente, como escreve Santo Agostinho, “nas profundezas da minha interioridade”. Por mais que me sinta sozinho, eu não estou, porque, no centro do meu próprio ser, existe um Outro.
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Solidão do ser humano, solidão de Deus. Artigo de Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU