10 Outubro 2019
A 15ª edição do Torino Spiritualità acaba de terminar, um projeto da Fundação Circolo dei Lettori de Turim, que se tornou, ao longo dos anos, o lar de 25 mil pessoas que não renunciam a se fazer perguntas, distantes do ritmo febril do cotidiano: quatro dias de encontros, diálogos, debates entre fés, culturas e religiões, que, neste ano, teve como tema a noite, em todas as suas dimensões. A noite como tempo de repouso, trégua e reflexão.
A reportagem é de Roberto Rosano, publicada em Adista, 04-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não por acaso a imagem da capa desta edição, realizada pelo ilustrador Alessandro Sanna, representa um grupo de antigos viajantes noturnos reunidos em volta de uma fogueira, para contemplar, com doçura, a tenda estrelada acima deles. O evento recebeu, entre outros, Vito Mancuso, Enzo Bianchi, Dario Argento, Daria Bignardi, Marco Vannini, Timothy Radcliffe.
Para este último, dominicano, ex-professor de Sagrada Escritura na Universidade de Oxford, mestre-geral da Ordem de 1992 a 2001, teólogo de ponta, uma das vozes mais renomadas da intelectualidade cristã (também chamado de “[Carlo Maria] Martini inglês”, foi pouco apreciado pelos pontificados anteriores, mas, em 2015, o Papa Francisco o nomeou consultor do Pontifício Conselho Justiça e Paz), fizemos algumas perguntas sobre o presente e o futuro da Igreja.
Cartaz de divulgação do evento Torino Spiritualità 2019
Nós o encontramos no Sermig, um pequeno grande milagre de Ernesto Olivero e dos seus voluntários. O professor Radcliffe é um homem alto e feliz. Feliz como uma criança descalça, na varanda de um cottage...
Professor Radcliffe, na Itália está se discutindo muito o fim de vida. A nossa Corte Constitucional afirmou a não penalização daqueles que facilitam a execução do propósito de suicídio, autônoma e livremente formado, de um paciente que sofre de patologia irreversível. A Conferência Episcopal Italiana (CEI) e o papa expressaram indignação... E o senhor, o que diz?
Não conheço bem a situação italiana. Direi apenas uma coisa. Acho que, no centro da nossa fé, está a vida, e nós devemos acolhê-la desde o seu início. Devemos cuidar das pessoas quando elas ficam pobres; devemos sempre, sempre cuidar das pessoas quando se encontram em situações de sofrimento. Devemos nos opor a qualquer tipo de violência. Também devemos cuidar das pessoas no fim da sua vida. É preciso uma visão abrangente da vida. Não podemos isolar um momento.
Qual a sua opinião sobre o espírito teológico predominante do pontificado de Bergoglio? Sente-se compreendido agora?
Eu acho que a Igreja empreendeu um caminho. Como em qualquer caminho, há momentos em que tudo está claro e momentos em que as coisas são menos claras, mas ambos são bons momentos da viagem. O Papa Bento XVI tinha uma visão muito clara, e isso era bom. Ele ajudou muitas pessoas, especialmente jovens. Agora, há um novo momento para a Igreja. Francisco nos exorta a continuar essa aventura e a ir ainda mais longe. No entanto, não sabemos bem para onde estamos indo... E isso também é muito bonito! Eu gosto muito do “tio” Francisco...
Mas, pelo que o senhor diz, ele tem ideias menos claras...
Sim, mas é necessário. Se você já tem todas as respostas, o que procura? O que está procurando? O momento mais interessante é quando você ainda não sabe a resposta. Eu fui professor na universidade por muitos anos. Quando você se encontra diante de um problema e não tem uma resposta imediata, então você se esforça para encontrá-la. Esse é o momento mais interessante. Francisco nos diz com muita coragem: venham comigo e sigam-me! Mas o bonito é que ele também procura, é um pastor, um guia que procura. Isso é comovente, não?
Muito. E o que o senhor acha do papa emérito?
Quando eu era mestre geral dos dominicanos, tive vários momentos de intercâmbio com o cardeal Ratzinger. Era sempre muito fácil falar com ele, embora a imagem que passava na mídia fosse sempre marcadamente negativa. Na realidade, eu sempre pude falar tranquilamente com ele. Na minha opinião, a mudança não é tão dramática.
Nada de ruptura, portanto, nada de crise, nada de descontinuidade entre os dois papas?
Não, não. Existe. Espero que exista. Onde há progresso, há descontinuidade. Uma coisa boa. Não devemos ter medo de enfrentar períodos de ruptura nem as crises. É preciso ser otimista. Você deve estar otimista, Roberto, de que este velho senhor inglês lhe dê uma boa entrevista ou que a Juventus, que veste as cores dos dominicanos, preto e branco, vença o campeonato (risos)... A esperança é mais radical, ela age apesar de todas as forças destrutivas do mundo e de nós mesmos... Pela graça de Deus, encontraremos a nossa realização. Cada um de nós, se você pensar bem, já superou muitas crises, mesmo que as tenhamos esquecido.
Há a crise do nascimento, quando é preciso deixar a casa do ventre materno para sair para o mundo frio. Depois, houve a crise do desmame, quando tivemos que deixar o melhor alimento do mundo, melhor até do que a massa italiana. O que você diz? O leite da nossa mãe, ah... Mas foi bom, caso contrário não teríamos conseguido nos sentar à mesa para crescer.
Depois, há a crise da puberdade, quando os hormônios fazem coisas estranhas no nosso corpo. Depois, há a crise de deixar a casa da mamãe e do papai para enfrentar a vida adulta. Por fim, há a pior crise de todas: a morte. Nós crescemos e nos tornamos vivos através de crises.
Você também deve ter passado por aqueles momentos em que o mundo desmorona sobre você, e você se pergunta o que o futuro lhe reservará. Mas será uma bênção, você se tornará vivo de um modo novo. A Igreja está se tornando viva de um modo novo.
Qual é a melhor maneira para enfrentar o mundo frio e para superar uma crise?
(Suspira) Em outubro de 2013, um navio naufragou ao longo da costa de Lampedusa. Trezentos e onze refugiados provenientes da Somália e da Eritreia se afogaram. Francesco Tuccio, o carpinteiro da ilha, ficou frustrado com a sua incapacidade de ajudar os sobreviventes. Então, fez algumas cruzes com a madeira do naufrágio e deu uma para cada um de presente. Hoje, essas cruzes estão em todo o mundo. Há uma até na Abadia de Westminster. A sua criatividade transformou uma madeira morta em um sinal de esperança. A graça de Deus é criativa! Nunca se deve desistir. Às vezes, as coisas que nos parecem amargas acabam nos agradando. Quando eu era pequeno, achava o uísque insuportável, mas não desisti! Quando parece não haver mais possibilidade de esperança, é preciso ser criativo, imaginá-la...
Criatividade?
Mas também estudo! Quando a cidade de São Petersburgo estava prestes a cair nas mãos dos alemães, durante a última guerra mundial, as pessoas estavam literalmente morrendo de fome. Em vez de caírem no desespero, os habitantes montaram uma orquestra para tocar a sétima sinfonia de Dimitri Chostakovitch... Os membros da orquestra estavam tão fracos que alguns desmaiaram durante os ensaios. Um trompetista pediu desculpas por não conseguir tocar sequer uma única nota. Foram montados alto-falantes para transmitir a música não só aos habitantes russos, mas também aos soldados alemães. Diante da destruição, sem nada para comer, fizeram música!
Seu último livro é dedicado ao fenômeno do fundamentalismo. Como o explicaria a uma criança?
Com as palavras de Primo Levi, quando, tomado pela sede, quebrou uma estalactite e começou a chupá-la. Um guarda correu para tirá-la das suas mãos, brutalmente. “Warum?”, por quê?, perguntou-lhe Primo, com o seu mísero alemão. “Hier ist keine warum!”, o guarda respondeu: “Aqui não tem por quê!”. Isso é fundamentalismo.
O fundamentalismo favorece as fake news, hoje mais do que nunca, aumenta a confusão, a instrumentalização dos fatos. Há rumores de que muitas eleições foram insufladas pelo vento das notícias falsas. O senhor é dominicano, por isso o seu carisma é a busca da verdade. Não é assim? Como se combate esse florescimento de distorções?
Eu acho que o maior desafio para nós, hoje, é a possibilidade de traçar uma linha entre relativismo e fundamentalismo. Eu creio na minha fé. Quero compartilhá-la com as pessoas, mas ainda estou começando a compreender o que ela realmente é. Nós precisamos de coragem para falar, mas também devemos ser humildes para aprender e para escutar. A minha teologia vem, em grande parte, dos romances que leio, dos filmes que assisto e dos meus amigos. Muitos deles não são cristãos. Ontem à noite, fui convidado, como você sabe, para o Torino Spiritualità. Fiz uma conferência sobre a canção de Patti Smith “Because the night”... A noite é feita para os amantes. Alguns disseram: não, chocante! Patti Smith era ateia, essa é uma canção muito erótica! Pode até ser, mas eu digo: se é verdade, então eu também posso aprender alguma coisa. O que há de errado nisso?
Além de um guia que procura, o Papa Francisco também é um aventureiro? Este Sínodo para a Amazônia é uma aventura?
Buscar Deus é a maior aventura. Você já leu Tolkien? Ah, sim, você viu o filme? Tolkien vinha todos os dias à nossa comunidade de frades pregadores e rezava na nossa igrejinha. “O Senhor dos Anéis” representa a sua aventura dentro da fé cristã. Lembra quando Gandalf se encontra com Bilbo e diz: “Quero que você venha viver uma aventura comigo!”. Bilbo lhe diz: “Não, não, eu não gosto das aventuras, elas são perigosas, não, não!”. Mas no fim foi, se comprometeu. Eu acho que a nossa liberdade é embarcar na aventura do infinito amor de Deus. Você não sabe aonde ela lhe levará, você não sabe o que fará, mas será livre.
Eu sei que Boris Johnson frequentou Oxford, mas não foi seu aluno, não é verdade? Qual a sua opinião sobre a Inglaterra desse senhor? Celine dizia que o patriotismo é uma cola venenosa... O senhor não acha que essa cola venenosa está unindo os ingleses hoje, novamente...?
Eu amo ser inglês, mas o que você diz é verdade. Devemos nos abrir, acima de tudo com os escoceses e os galeses (risos). Para mim, o patriotismo não é uma cola venenosa, não significa unir-se contra alguém. É preciso acolher o outro, deixar-se enriquecer pelo outro. Eu acho que, com Johnson, chegamos a um momento um pouco perigoso. Está criando um confronto entre povo e Parlamento. Ele sempre fala da vontade do povo. Isso é muito perigoso! Nós somos uma democracia parlamentar. Existe um autêntico colapso da confiança no Parlamento, mas a resposta não é ir contra as instituições, mas sim repensar a nossa ideia de democracia. Todos dizem: ele é antidemocrático. O outro! Sempre o outro. Você não acha?
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''Não devemos ter medo das mudanças e dos conflitos na Igreja''. Entrevista com Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU