18 Janeiro 2019
“O ódio é uma doença do espírito: não por acaso, a tradição cristã, mas também judaica e islâmica, considera que Satanás é um anjo decaído, e o anjo é precisamente puro espírito.”
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Teologia Moderna e Contemporânea da Universidade San Raffaele de Milão, e ex-professor de História das Doutrinas Teológicas da Universidade de Pádua. Em português, é autor de “Eu e Deus: um guia para os perplexos” (Paulinas, 2014).
O artigo foi publicado em Il Foglio, 16-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um prefeito de política aberta e solidária é esfaqueado até a morte na cidade do Solidarnosc. Um terrorista criminoso chega à Itália, e muitos rangem os dentes, porque, se pudessem, o abocanhariam até dilacerá-lo. Nas curvas dos estádios, cantam-se hinos racistas e antissemitas. Alguns garotos pegam um cachorro e fazem um rojão explodir em sua boca.
São apenas alguns exemplos recentes de uma paixão destrutiva e assassina que permeia a nossa história: Caim mata Abel, Rômulo mata Remo, Etéocles e Polinices matam-se um ao outro, Sócrates é morto pelos democratas, Jesus é morto pelos teocratas e pelos imperiais, os sicários de Antônio decepam as mãos e a cabeça de Cícero, e depois?
Depois, as guerras sem fim, pulsões atávicas de vingança, execuções capitais que reúnem multidões aos gritos de prazer sádico, e nem sequer vou abrir o capítulo na história do século XX, porque todos sabemos já quanto sangue e quanto ódio contém.
O ódio, justamente. Depois, há a sua versão fria, aquela que corresponde aos círculos infernais, onde os condenados são aprisionados no gelo, e que se expressa naquela voz maligna que, diante de um navio de seres humanos com pele de cor diferente que pedem apenas para poder desembarcar, sussurra friamente: que morram todos afogados, ou de fome, de frio, que padeçam!
A pergunta neste ponto é simples: que papel tem o ódio na estrutura do mundo? É algo congênito, estruturalmente presente e, portanto, natural? Ou é algo não congênito, inesperado e, portanto, inatural? O que o ódio tem a ver com a lógica da vida no mundo?
A minha resposta vai contra a corrente, é inatual, é um desafio, porque defende que o ódio não é natural, mas é uma patologia, e que, portanto, a sua dissolução, que também podemos chamar de perdão, é um retorno à fisiologia, isto é, uma cura.
Com o que o ódio constitui uma patologia? Com aquela condição estrutural que Heráclito chamava de polemos, e Empédocles, de neîkos. De acordo com Heráclito, “o conflito (polemos) é o pai de todas as coisas e de tudo é rei” (fr. 14, ed. Diano), afirmação que deve ser posta ao lado da consciência complementar da harmonia, aquela segundo a qual: “Aquilo que contrasta contribui, e a partir de elementos que discordam tem-se a mais bela harmonia” (fr. 24). Para Empédocles, o mundo físico e humano é regido por duas forças contrastantes, por ele denominadas de philòtes e neîkos, isto é, concórdia e discórdia, entendimento e desentendimento, amizade e rancor.
Decorre daí que tanto os elementos naturais quanto os seres humanos “às vezes, pela concórdia, contribuem com um único cosmos, às vezes, cada um, por conta própria, é arrastado pelo desafio do rancor” ("Poema físico", 22).
Heráclito e Empédocles foram os primeiros no Ocidente a trazer à consciência a condição antinômica e conflituosa que estruturalmente é inerente ao ser.
Hoje a ciência confirma essa visão. Na natureza há conflito, seja já a partir da condição da matéria.
Os astrofísicos descrevem o espaço em termos de “imensas catástrofes que parecem ser a administração comum de inteiras regiões do cosmos”. São palavras de Guido Tonelli (La Lettura, 21 de outubro de 2018), que escreve em “cosmos” em itálico para se distanciar do significado original do termo grego (cosmos, cosmética), e enfatizar, em vez disso, o primado do caos no universo, descrevendo os eventos do espaço com termos como “rugir, devorar, dançar macabro”.
Se, depois, voltarmos a nossa atenção para a história da vida, as coisas não mudam, ao contrário, tornam-se até mais perturbadoras, porque entra em cena o sangue, o elemento da vida e, ao mesmo tempo, da morte. [...]
Mas atenção: nas estrelas, nos quasares, nos pulsares, nos buracos negros, assim como nos seres vivos que lutam pela vida e que se alimentam da vida alheia, não há ódio. O leão não odeia a gazela, assim como a gazela não odeia a grama; as bactérias, os vírus, as células cancerígenas e qualquer outro ente natural também não são capazes de ódio.
Não há ódio nem mesmo naqueles comportamentos animais que um professor de zoologia da Universidade de Pádua, Giuseppe Fusco, descreve em termos de escravismo em relação a certas formigas, de fratricídio para muitas aves de rapina, de matricídio para algumas aranhas, de uxoricídio para os louva-a-deus, até mesmo de violência sexual para certos insetos.
O estudioso explica: “Esses comportamentos, sob nenhuma circunstância, devem ser classificados sob o rótulo de ‘comportamentos desviantes’, porque, para as espécies animais que os praticam, eles fazem parte do seu ciclo vital normal” (Competizione e cooperazione, em L’altruismo, Udine: Forum, 2018, p. 37).
No mundo natural, não há ódio, porque nele não há a condição necessária para o ódio, isto é, a evolução da mente, sendo o ódio justamente uma patologia da mente, mais precisamente uma patologia daquele conflito que é inerente estruturalmente ao ser.
De fato, uma conta é ser adversário, outra é odiar. A primeira obra da literatura ocidental, a “Ilíada”, ensina que também se pode cantar a epopeia vitoriosa de uma guerra sem odiar o inimigo; o mesmo ocorre no ideal da cavalaria medieval.
O adversário é, sim, objeto de aversão, mas não necessariamente de ódio; o inimigo é, sim, objeto de inimizade, mas não necessariamente de ódio. Qual a diferença? A diferença está no fato de que se quer ganhar, vencer, derrotar, até mesmo pesadamente, o inimigo e o adversário, mas não extinguir ou aniquilar.
Ao contrário, se refletirmos com ponderação, entenderemos que, sem o adversário, ou seja, sem o adversus que representa o polo oposto em relação ao nosso versus, a nossa própria identidade seria completamente diferente ou até não seria: assim como a esquerda sem a direita, os ateus sem os crentes, a Inter sem a Juventus.
O ódio, ao contrário, quer aniquilar. E, no seu furor cego que o torna ignorante, não compreende que a aniquilação do inimigo significaria também o desaparecimento de si mesmo, da própria identidade, que, sem o inimigo, não teria mais o polo com base no qual pode se fortalecer e se determinar.
Quem é capaz de ódio? Só o espírito pode odiar, isto é, a liberdade. O termo “espírito” em latim (spiritus), em grego (pneuma) e em hebraico (ruah) significa, acima de tudo “vento”, “ar que se move”, e foi escolhido pelas civilizações na base da nossa tradição para indicar precisamente a nossa capacidade. de liberdade.
A liberdade não nos vem do fato de sermos corpo, nem de sermos psique. Mesmo assim, se a admitirmos (entendendo por liberdade a possibilidade de consciência, criatividade e responsabilidade), é preciso identificar a condição de possibilidade que nos permite ser livres, que, se não é o corpo e se não é a psique, requer outro nome. A tradição nos entrega o termo “espírito”.
Pois bem, o ódio é uma doença do espírito: não por acaso, a tradição cristã, mas também judaica e islâmica, considera que Satanás (que o Alcorão chama de Iblis) é um anjo decaído, e o anjo é precisamente puro espírito.
Quando a liberdade adoece, põe a consciência e a criatividade não mais a serviço da responsabilidade, mas do seu contrário, isto é, da negação, da aversão, da destruição. Assim, tem-se a malignidade, isto é, a lúcida vontade de mal.
Tal vontade maligna pode ser dirigida contra uma pessoa, um grupo, um povo, uma instituição, ou pode ser geralmente dirigida contra o mundo e conduzida pelo mero prazer do mal, pelo gosto sádico e perverso de infligir sofrimento, destruição. morte. A personificação dessa força é o chamado Diabo, cuja essência é exatamente a divisão, a dilaceração, o esquartejamento do ser: o contrário da harmonia.
Normalmente, não se pensa que o ódio é uma patologia, ao contrário, ele é contraposto ao amor como força de poder igual e contraposto. Não só isso, também se considera que o ódio ajuda a compreender muito melhor do que o amor, que tem uma lucidez invejável própria, uma penetração inteligente e aguda. É verdade que se diz “ódio cego”, mas a referência é mais à raiva, enquanto o ódio, no seu gélido distanciamento, é entendido como frio, lúcido, penetrante.
Um sobrevivente de Auschwitz, Sami Modiano, disse: “Não é verdade que o ódio é cego. Ele tem a visão muito aguda, a de um atirador de elite, e, se adormece, o seu sono nunca é eterno, retorna”.
Eu não subestimo a força do ódio, mas contesto que ele seja verdadeiramente inteligente. Ao contrário, penso que, na realidade, o ódio só sabe ver a si mesmo e não o outro na sua realidade efetiva; mesmo quando vê o outro, na realidade, vê somente o próprio preconceito, que o impedirá de reconhecer o bem e o belo do outro, mas lhe confirmará infalivelmente que o outro é apenas mal e deformidade.
O ódio vê, mas não vê com aquele olhar reto, disposto, que faz com que o olho pouse sobre o outro e o capte naquilo que ele verdadeiramente é; não, o olho vê com um olhar encurvado, deformado pela energia negativa que o anima, pelo desejo de destruição que emana do seu olhar.
A verdadeira compreensão, em vez disso, requer retidão, acima de tudo no sentido de um olhar reto, de “reta visão”, como diz a primeira disposição do caminho óctuplo ensinado pelo Buda. Daí gera-se abertura mental e abertura do coração, ou empatia, isto é, “a capacidade de experimentar as emoções alheias, de compreender aquilo que o outro está pensando ou sentindo”, condição que só é possível quando uma pessoa é capaz de “compartilhar o estado afetivo de outro indivíduo” (Franco Fabbro, Eric Pascoli, L’empatia e l’altruismo alla luce delle neuroscienze, in: L’altruismo, cit, pp. 119-120), isto é, obviamente quando não odeia.
O ódio, portanto, não é inteligente, mas estupidamente circunscrito.
Resta uma última questão: o ódio é forte? É claro, o ódio é forte, às vezes fortíssimo. Mas o câncer também é, as células cancerígenas podem ser muito mais vitais do que as células sadias, são muito famintas, violentas, agressivas. Qual é, porém, o resultado? A morte do organismo e, portanto, também a delas, isto é, a máxima impotência.
Isso se explica com base no fato de que o ser é regido pela lógica do sistema, isto é, pela relação harmoniosa, e de que aquilo que está em conformidade com tal lógica faz florescer a vida, enquanto aquilo que não está, faz com que ela murche, introduzindo a morte.
Platão escreve que até mesmo “um Estado ou um exército, piratas, ladrões ou qualquer outra classe” não poderia combinar nada “se não observassem a justiça uns com os outros” ("República", I, 351 D [trad. portuguesa: Maria Helena da Rocha Pereira, ed. Fundação Calouste Gulbenkian).
Não se trata, portanto, de ser necessariamente bom, ao escolher combater o ódio. Trata-se, mais simplesmente, de ser inteligente, de entender a lógica que nos trouxe à existência e nos mantém nela, e de conformarmo-nos a ela (como um capitão de um barco à vela que entende o jogo dos ventos e das correntes, e dispõe o seu barco em conformidade).
Por isso, combater o ódio dentro do próprio interior, mantendo o conflito, mas não odiando, significa permanecer saudáveis, rejeitar o mal fora de si. Antes ainda que por benevolência para com o outro, não deixar que as células cancerígenas do ódio criem raízes é um grande gesto de cuidado para consigo mesmo.
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Ódio, uma patologia estúpida. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU