24 Março 2020
As palavras da tradição bíblica, quaresmal, penitencial, ascética, monástica, orante assumem hoje um novo tom e se tornam alimento irrenunciável. Acompanhar essa releitura, aquém e além dos atos formais da confissão/absolvição, me parece ser uma oportunidade que não se deve perder.
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 20-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como Giovanni Marcotullio evidenciou com razão em um recente texto publicado em Aleteia [disponível aqui, em italiano], a discussão que a condição de quarentena levantou em torno da missa e das suas dificuldades não deve nos fazer esquecer da outra questão candente, que se levanta ao redor do tema da “confissão sacramental”, das suas formas e das diversas soluções propostas para enfrentar as dificuldades ligadas à condição de “pandemia”, com tudo o que isso significa em termos de distâncias, exclusão do contato, ajuda sanitária e normativa civil que também se impõem em nível eclesial.
Uma imagem, que acompanha o artigo de Marcotullio, fotografa bem uma das formas de “recepção” da novidade: um padre, sentado a uma distância devida, ao ar livre, em uma espécie de estacionamento, ouve a confissão de um penitente que está sentado em seu carro. O carro se transforma em confessionário, para um sacramento em versão “drive-in”.
A invenção pastoral não tem limites. Mas talvez seja bom se debruçar sobre a questão de modo mais abrangente e geral. Estou convencido de que também para esse sacramento, assim como para a eucaristia, a “emergência-vírus” é capaz de suscitar uma série de questões acerca do próprio sentido do sacramento da penitência, e eu poderia dizer até do seu “significado sistemático”.
Tentemos interrogar a experiência do modo mais livre de preconceitos possível, naquilo que está ao nosso alcance.
Um primeiro aspecto que não deve ser ignorado é este: no sacramento da penitência, sabemos que o contato não pode ser contornado. A implicação do sujeito é percebida com um grau maior do que na própria celebração eucarística. E esse é um dado relevante. Poderíamos dizer que a “participação”, que na missa também pode ser largamente “passiva” – e suporta tranquilamente a transmissão em “live streaming” até mesmo na forma mais impessoal –, não funciona para a confissão. Devo estar pessoalmente envolvido, interpelado, solicitado, implicado.
Por isso, o sacramento, se ainda existir o regime de quarentena, deve encontrar “soluções” para o problema das distâncias impostas, do contágio a ser evitado. O lugar mais apartado e mais íntimo da Igreja, o confessionário se torna impraticável. Portanto, poderíamos dizer que, se para a missa, com a pandemia, a lógica tridentina parece triunfar – missas privadas apenas com padres e assembleia que se transforma em espectadora muda –, para a confissão, o próprio símbolo do sacramento é como que “profanado” pelas normas civis.
Isso exige que se introduzam variantes, que podem ser pensadas em diversos níveis. Tentemos considerar as principais.
Diante dessas dificuldades, manifestaram-se três estradas pelas quais se tentou responder à emergência:
1) a primeira é a simplesmente “técnica” e “funcional”: lugares arejados, luvas de vinil, distância de segurança, máscara obrigatória. Mudam alguns acidentes, a substância permanece inalterada;
2) a segunda é o recurso à “terceira forma” do sacramento, ou seja, aquela com confissão e absolvição em forma geral, que tem a vantagem de não exigir nenhum contato e a desvantagem da generalidade e da não individualidade;
3) a terceira proposta recorre ao tema clássico do “votum sacramenti”, para o qual, em circunstâncias excepcionais, pode-se superar a falta da confissão específica dos pecados graves individuais e ser reconciliado “in voto”: onde por “voto/desejo/propósito”, entende-se não apenas a reconciliação desejada, mas também o propósito de confessar o quanto antes os pecados graves, assim que possível.
É evidente que as diferentes respostas manifestam uma consideração diferente atribuída às circunstâncias históricas e culturais nas quais a Igreja se move neste tempo. No entanto, há um elemento que reúne todas essas soluções, e é uma consideração que me parece simplista e demasiado “administrativa” do sacramento, que deriva de uma leitura em que apenas as fontes “canônicas” exercem um peso excessivo, até distrair do centro pulsante do sacramento. Tentemos ver o porquê.
A norma que ressoa como pano de fundo de todas essas soluções é a enunciada pelo cânone 960: “Individualis et integra confessio atque absolutio unicum constituunt modum ordinarium quo fidelis peccati gravis sibi conscius cum Deo et Ecclesia reconciliatur” [na tradução oficial em português: “A confissão individual e íntegra e a absolvição constituem o único modo ordinário pelo qual o fiel, consciente de pecado grave, se reconcilia com Deus e com a Igreja]. Essa definição do “modo ordinário” de administrar o sacramento é seguida pelas exceções extraordinárias, devido a impossibilidades físicas e morais ou a circunstâncias excepcionais, que permitem superar essa unicidade.
Por si só, portanto, todas as três soluções parecem ser guiadas – positiva ou negativamente – por essa definição. Por si só, a solução 1 permanece plenamente dentro da definição, apenas com expedientes técnicos; a solução 2 pode abrir mão da confissão íntegra e individual; a solução 3 pode prescindir tanto da confissão quanto da absolvição.
No entanto, o que surpreende é que os recursos pastorais, em um tempo de características tão excepcionais, se deixam-se condicionar de modo tão profundo por uma definição “incompleta” do sacramento. Incompleta, por exemplo, no que diz respeito à definição do Código de Direito Canônico número 1.491. Porque é preciso reconhecer que o texto canônico, com uma linguagem institucional que força a realidade, reduz o sacramento da penitência a “dois atos” (confissão e absolvição), deixando em segundo plano e na substancial irrelevância a elaboração da dor e da liberdade (ou seja, contrição e penitência).
Poderíamos dizer que, no sacramento da penitência, como considerado pelo Código, não há mais a penitência. E como este nosso tempo transborda precisamente de penitências – até mesmo impostas por lei – surpreende muito que se pense nas luvas de vinil, como que dispensando da confissão específica, ou mesmo da absolvição, mas não se trabalhe no dois pontos claros, evidentes e comuns a todos: a dor que não passa, que assusta e que paralisa, e a resposta corporal e espiritual da liberdade ao anúncio do perdão.
Com efeito, o que a Igreja vê como entregue no sacramento da penitência é, para usar uma definição tridentina, um “batismo laborioso”. Mas por que, precisamente em um tempo de tão grande elaboração da dor e das formas de vida como este, nós nos ocupamos apenas de sistematizar formalmente (e talvez até um pouco formalisticamente) “atos oficiais”?
Eis, então, uma boa oportunidade que nos é oferecida por este momento de clausura, para voltar com um olhar novo para esse sacramento e para o seu contexto mais verdadeiro. Gostaria de dizer isso aqui com uma série de 10 breves proposições, dotadas também de uma certa provocação, mas na esperança de que sejam capazes de sacudir as consciências e de abrir os olhos para a realidade.
1) Os sacramentos do perdão, na vida cristã, são o batismo e a eucaristia. Neles, fazemos a grande experiência do perdão, que Deus reserva aos homens e às mulheres. Um dom gratuito que nos compromete e que nos põe à prova. Podemos viver a comunhão com Deus e com o próximo, podemos provar a sua alegria e a sua força, mas também podemos entrar em crise. Por isso, não há um, mas sim dois sacramentos da crise;
2) O pecado grave do batizado e a doença grave do batizado são os motivos da crise. Na nossa contingência atual, é totalmente normal que, por causa da doença grave que contagia tantos dos nossos irmãos e irmãs, os doentes e aqueles que os amam e que estão ligados a eles vivam uma crise profunda, que também afeta a fé. A unção dos enfermos e a penitência são os remédios com os quais a Igreja volta ao batismo e à eucaristia, como grandes experiências de perdão e de graça;
3) A doença grave é uma “crise de fé sem culpa”. Nós não estamos acostumados a pensar assim. E a sentir a proximidade da Igreja com aqueles que sofrem a doença grave para que não se desesperem. A culpa grave é uma crise de fé ligada, por sua vez, ao comportamento voluntário, escolhido intencionalmente pelo sujeito. Diante dele, a Igreja não apenas “anuncia o perdão” (absolvição) diante do pecado confessado (confissão), mas também acompanha a elaboração da dor (contrição) e a estruturação da resposta da liberdade (penitência);
4) O que é qualificante e específico no sacramento da penitência não é o anúncio do perdão, que este sacramento tem em comum com o batismo e a eucaristia. Em vez disso, é o acompanhamento na elaboração da dor e na reestruturação do corpo, da mente e do espírito. Poderíamos dizer que, ao “dom do perdão”, repetido e tomado de empréstimo do batismo, corresponde a elaboração do luto, da memória e da liberdade, que é específico do quarto sacramento.
5) Por isso, os antigos, muito mais do que nós, sabiam que a “penitência” é antes uma virtude que um sacramento. E o sacramento está a serviço da promoção e da articulação da virtude. Estar ciente do perdão recebido no batismo e continuamente renovado na eucaristia permite que se superem também os pecados mais graves se, a partir da renovação da palavra do perdão diante da palavra que confessa o pecado, eu aprendo com o tempo a elaborar a dor e a reestruturar a minha liberdade;
6) Eis, então, que, de repente, podemos entender algo que nos era oculto. Este nosso tempo, ainda em si mesmo, tem uma dupla estrutura penitencial própria, que está pronta e disponível para todos: o tempo quaresmal, para a tradição eclesial, e o tempo de quarentena, para a tradição civil, são formas comuns, poderíamos dizer públicas e comunitárias, de elaboração da dor e de reestruturação dos comportamentos;
7) Na penitência antiga, ocorria assim: depois de confessar o pecado, tornávamo-nos penitentes e entrávamos em um “regime particular”, que envolvia o trabalho, o tempo, a oração, os locais de vida... Hoje temos uma espécie de “regime penitencial” que une uma nação inteira.
Como é que a Igreja não se dá conta disso? Por que ela usa o velho armamentário, que se deixa sugerir por um direito canônico álgido, inadequado e extinto, e não trabalha sobre a matéria viva das experiências expostas ao não sentido ou a um excesso de sentido, que as palavras elevadas da tradição bíblica e espiritual sabem interpretar com tanta força? Por que, ao invés disso, usamos “noções jurídicas”?
8) O imaginário público tentou elaborar a condição atual. As palavras que surgem são, acima de tudo, reclusão, quarentena e prisão domiciliar. São três vivências de “pena” ou de “penitência”. Mas a lógica pública as interpreta apenas como “mal menor” em vista da saúde. E isso não é pouco.
A grande tradição humana e cristã sabe que toda mudança custa sofrimento, fadiga, privação, dor. Uma reconsideração da existência bela à luz da quarentena é uma oportunidade penitencial que não podemos ler somente com um conceito de penitência reduzido ao sacramento, e de sacramento reduzido à normativa canônica sobre ele. Isso seria pobreza cultural, que não alimenta ninguém. Temos muito mais do que o sacramento já pronto na vida cotidiana: parece um paradoxo, mas é a nossa realidade de hoje, na excepcionalidade.
9) Desejo do sacramento? Seria esse o desejo necessário? Precisamente em um momento em que o desejo é posto tão profundamente à prova e podemos experimentar o “desejo de boa saúde” e o “desejo de um passeio” como algo irrealizável, o desejo de plenitude e de paz, de confiança e de contato toma forma e precisa de relações significativas. Um sacramento reduzido ao mecanismo maquínico “confissão/absolvição” se torna desumano se não entrar em uma relação vital. Além disso, se adicionarmos luvas e máscaras, corremos o risco de tratar a alma com competência asséptica, mas de modo extrínseco e frio.
O desejo não pode ser do sacramento, mas é desejo de plenitude (eucarística) e de mudança (penitência). Que apenas eventualmente passa pelo sacramento, mas sempre passa por aquilo que está aquém e além do sacramento, mesmo quando o restituímos à sua plenitude e não o reduzimos arbitrariamente ao imediatismo desumano da confessio/absolutio.
10) Trabalhar sobre o “fazer penitência” hoje é uma oportunidade que tem dois interlocutores diferentes. Quem trabalha, trabalha muito mais e em piores condições. Quem não trabalha tem tempos mais relaxados e problemas novos e não menos complicados. A eficiência está comprometida, ou por excesso ou por defeito.
As palavras da tradição bíblica, quaresmal, penitencial, ascética, monástica, orante assumem hoje um novo tom e se tornam alimento irrenunciável. Acompanhar essa releitura, aquém e além dos atos formais da confissão/absolvição, me parece ser uma oportunidade que não se deve perder. Fazer com que o “preceito pascal” se torne um “dom de elaboração do luto, da memória e da liberdade”: isso é o kairós. Ou jogamos nesse campo, com o melhor das nossas palavras, ou, com a mais nobre das nossas intenções, levaremos a tradição a se tornar um grande museu.
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Toda penitência está na confissão/absolvição? Contágio, perdão e renovação de formas de vida espiritual. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU