23 Março 2020
"A Igreja parece atingida "na intimidade de sua casa" pela necessária prevenção da epidemia. É verdade que se honra a realidade, se reconhece uma dificuldade diante da qual não se enterra a cabeça na areia, mas se enfrenta isso, nos permitimos ser profundamente modificados pela luta contra a epidemia. Isso é importante. Na Igreja houve a tentação de "negar a realidade", de dizer "continuamos, mantemos alto o Evangelho, lotamos as igrejas de povo para afirmar a vitória de Cristo também sobre todo mal, físico ou moral". Não. Não foi tomado esse caminho e foi responsavelmente aceitado modificar profundamente as próprias práticas tão preciosas, tão irrenunciáveis, a fim de garantir um bem comum mais alto e mais precioso "do muito ouro fino" dos antiquíssimos ritos, aos quais somos tão justamente vinculados. Esse é um ponto adquirido e positivo", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 21-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para o teólogo italiano, "a resposta eclesial ao desafio da epidemia exige com urgência uma dupla passagem: um reconhecimento da realidade e uma elaboração profunda do olhar sobre a realidade. O primeiro existe, a segunda não".
"A realidade é superior à ideia." (EG 233) Com esse lampejo de luz, Francisco, em seu primeiro documento magisterial, em 2013, convidou a tradição eclesial a "honrar a realidade", saindo daquelas formas de "idealização" que muitas vezes não são serviço à realidade, mas violência contra a realidade. Parece-me que esse critério geral poderia ser utilizado para avaliar os documentos que foram divulgados ontem pela Cúria Romana. Trata-se de um decreto da Congregação para o Culto Divino (CCD) e de um Decreto e nota da Penitenciaria Apostólica (PA). Vamos examinar cada um dos três documentos detalhadamente.
a) O Decreto da CCD "Em tempo de Covid-19" define uma série de mudanças nos ritos da Páscoa, devido à epidemia que obrigou os governos a limitar a possibilidade de "reunião". A data da Páscoa é confirmada, se repassa aos Bispos a possibilidade de adiar a Missa crismal, são modificados parcialmente os ritos do Tríduo Pascal da Quinta-feira Santa, da Sexta-feira Santa e Vigília pascoal.
b) O Decreto da Penitenciaria Apostólica "concede o dom de indulgências especiais aos fiéis acometidos pelo vírus Covid-19, comumente chamado de Coronavírus, bem como aos profissionais de saúde, os familiares e todos aqueles que, por qualquer motivo, inclusive com a oração, cuidam deles". As condições para " aproveitar" delas são obviamente limitadas pela situação de isolamento sanitário, que deveria excluir qualquer celebração possível (com reunião) e movimento (peregrinação). Descreve-se assim a prática suficiente para a concessão da indulgência plenária "àqueles fiéis que oferecem uma visita ao Santíssimo Sacramento, a adoração eucarística, a leitura das Sagradas Escrituras por pelo menos meia hora, a recitação do Santo Rosário, o piedoso exercício da Via Crucis, ou a recitação do Terço da Divina Misericórdia, para implorar a Deus Todo-Poderoso a cessação da epidemia, o alívio pelos atingidos e a salvação eterna daqueles a quem o Senhor chamou a si".
c) A Nota da mesma Penitenciaria intervém na praxe do sacramento da penitência, identificando oficialmente a condição de pandemia como "caso de necessidade" que torna possível a celebração da III forma do sacramento, com confissão e absolvição em forma geral. De fato, afirma: "Esta Penitenciaria Apostólica acredita que, especialmente nos locais mais afetados pelo contágio pandêmico e até que o fenômeno não for superado, se produzirão os casos de grave necessidade citados no can. 961, § 2 CIC acima mencionado".
Os três documentos, como é evidente, respondem a perguntas decorrentes da experiência eclesial das últimas semanas e que também afetaram Roma e, portanto, afetaram diretamente a vida e as práticas da Cúria romana. As disposições adotadas em vista das celebrações da Páscoa, que dizem respeito de maneira especial às liturgias eucarísticas e liturgias penitenciais, assumem toda a seriedade dos desafios sanitários que Roma, a Itália e o mundo inteiro estão vivendo, com a carga do sofrimento, da incerteza. e medo que eles implicam.
A isto, deve-se acrescentar que seria injusto ler esses documentos com expectativas exageradas: não estamos lidando com "pronunciamentos magisteriais", não há implicação direta do "anúncio do evangelho" ou do "significado último" das realidades em torno das quais estão sendo tomadas providências por decreto. Portanto, avaliamos os documentos "de ofício" e o fazemos levando em consideração os limites estruturais nos quais eles devem ser colocados e lidos. A tradição "de ecclesiasticis officiis" está aqui em ação.
A Igreja parece atingida "na intimidade de sua casa" pela necessária prevenção da epidemia. É verdade que se honra a realidade, se reconhece uma dificuldade diante da qual não se enterra a cabeça na areia, mas se enfrenta isso, nos permitimos ser profundamente modificados pela luta contra a epidemia. Isso é importante. Na Igreja houve a tentação de "negar a realidade", de dizer "continuamos, mantemos alto o Evangelho, lotamos as igrejas de povo para afirmar a vitória de Cristo também sobre todo mal, físico ou moral". Não. Não foi tomado esse caminho e foi responsavelmente aceitado modificar profundamente as próprias práticas tão preciosas, tão irrenunciáveis, a fim de garantir um bem comum mais alto e mais precioso "do muito ouro fino" dos antiquíssimos ritos, aos quais somos tão justamente vinculados. Esse é um ponto adquirido e positivo.
Existe, no entanto, um aspecto sobre o qual, francamente, eu esperaria, também do ponto de vista da elaboração linguística dos textos, e sem trair a clássica "brevitas", adequada aos documentos oficiais, de encontrar a confissão de um sofrimento por um fato importante que se determina por causa do "isolamento sanitário".
No início do decreto da CCD, lembra-se de fato que o motivo do decreto é "o caso de impedimento para celebrar a liturgia comunitariamente na igreja". No entanto, o texto reconhece esse problema de maneira extremamente sóbria e tende a traduzi-lo, substancialmente, em uma disciplina da celebração dos clérigos. É como se fosse interpretada a "comunidade sacerdotal" - que LG11 usa para definir a Igreja em sua identidade geral de corpo de Cristo - referindo-a apenas à comunidade dos clérigos. Mas a comunidade sacerdotal mencionada pela LG é a comunidade eclesial de todos os batizados, não a comunidade dos clérigos. Esse é o cone da sombra do texto. E é, como é evidente, uma tentação típica da Cúria romana. Que, nesse caso, parece considerar o problema do Tríduo Pascal quase exclusivamente como o das "práticas rituais possíveis (e impossíveis) para os clérigos".
Os "não clérigos" são evidentemente uma categoria residual. À qual é dedicada substancialmente apenas a parte inicial do texto, onde prevê duas coisas: que, para as celebrações do bispo na catedral e dos párocos nas paróquias, os não-clérigos possam "unir-se em oração de suas casas", pelo o que "são úteis as ferramentas de comunicação telemática ao vivo". No entanto, é acrescentado um parágrafo, que é a única verdadeira consideração para o "sacerdócio real" dos fiéis: são invocados das Conferências Episcopais e das dioceses "subsídios para a oração familiar e pessoal". E essa é a única abertura verdadeira.
Tudo o que se segue diz respeito à organização dessas "celebrações" do bispo e dos párocos. Certamente, não se deve esquecer a lógica da necessidade excepcional, que caracteriza este momento, mas o "fechamento sobre si mesmo" do clero, precisamente durante o Tríduo Pascal, sem nenhuma expressão do "sofrimento" que isso acarreta para o corpo da Igreja, parece um dado não positivo. Alguns detalhes do texto ilustram bem isso: na Quinta-feira Santa, por exemplo, o problema da seção que impõe a natureza comunitária da celebração é superado "ex officio" com a concessão excepcional a cada pare de poder celebrar a missa "sem o povo".
Mas depois nada mais é acrescentado sobre a equivalência dramática, que escapa à atenção: porque "missa sem povo" significa "povo sem missa". Em vez disso, a preocupação é reservada apenas para o presbítero, que, no caso de não poder celebrar a missa, pode "rezar as vésperas". A fenomenologia do "padre sozinho" é completa, precisa e muito detalhada. O povo não parece entrar no olhar, parece apenas um fenômeno irrelevante. Esse é o limite mais grave do texto. Que tende a confirmar como, em alguns casos, a Cúria romana parece ser a mais periférica das províncias no que diz respeito à realidade eclesial viva e verdadeira.
No que diz respeito aos dois documentos da PA, não me demoro muito no Decreto sobre a indulgência extraordinária. Certo que oferecer meia hora de leitura das Escrituras Sagradas para a cessação da epidemia como "obra simbólica" para a remissão da pena temporal é uma interpretação da experiência eclesial que tem dificuldade para se correlacionar com a realidade atual. Ainda mais por causa dos problemas que surgem da leitura do outro documento do mesmo Ofício, a Nota sobre o sacramento da penitência. E é singular como dois documentos que parecem se ignorar possam sair do mesmo Ofício.
Na Nota, de fato, a novidade adquirida e repercutida pela imprensa é a possibilidade de configurar essa condição de "pandemia" como um "estado de necessidade" que habilita bispos e párocos da paróquia a fazer uso a "terceira forma" do sacramento da penitência, ou seja, sem confissão individual e específica e com absolvição geral. Também nesse caso: bem, se toma ato da realidade, não se perseguem idealismos heroicos de padres que expõem a si mesmo (e, acima de tudo, aos outros) ao contágio, apenas para ouvir as confissões.
Mas inclusive aqui, precisamente a concepção "formal" que se propõe do sacramento na Nota - modificando sua realidade apenas por citações do Código (cân. 960 e 961) - impede valorizar a lógica de indulgência que o Decreto anterior gostaria de alimentar. Vou tentar me explicar melhor. Quando fala de "sacramento da penitência", referindo-se ao cân. 960, a PA valoriza uma leitura simplificada - e de certa forma simplista - do que o Concílio de Trento chama de "batismo laborioso": confissão e absolvição, no texto da PA como no Codex, parecem suficientes para a realização do perdão de Deus.
Na realidade, o sacramento, em sua longa história, sempre foi vital somente quando conservou e cuidou, como fala a melhor tradição, todos os três atos do pecador-arrependido: ou seja, além da confissão, a contrição e a satisfação, as quais, para falar claro, são o sofrimento do arrependimento interior e o sofrimento da mudança externa. Ora, é curioso que as indulgências só façam sentido se a "pena temporal" - que é precisamente o "sofrimento pela mudança" - não for reduzida a um "ente de razão", mas morder a carne e o sangue de homens e mulheres, que Deus já perdoou, mas sofrem na alma e no corpo, na mente e no coração, porque não conseguem se perdoar e não conseguem mudar.
Justamente em época de pandemia, quando o sofrimento pelo mal sofrido sem culpa e a mudança de vida imposta até mesmo por lei se tornam paradoxais oportunidades inclusive públicas para caminhos de conversão e de mudança de vida, parar no limiar de tudo isso e apontar o olhar apenas nos extremos – a nossa palavra sobre pecado e a palavra de Deus que perdoa - não parece realmente entrar na realidade complexa e nova que se gostaria de servir e iluminar. Existem nações inteiras que "já fazem penitência" no corpo e no espírito, porque esse fenômeno macroscópico não é ouvido, lido, interpretado, com os instrumentos de toda a rica tradição, que estão antes, abaixo, ao lado, além, mas não "no" Código? Se um gabinete de cúria lê a realidade da penitência apenas com as categorias jurídicas, deixa 90% da realidade do lado de fora da porta. Entendo a lógica da "distância de segurança", mas essa me parece francamente desmotivada.
A resposta eclesial ao desafio da epidemia exige, portanto, com urgência uma dupla passagem: um reconhecimento da realidade e uma elaboração profunda do olhar sobre a realidade. O primeiro existe, a segunda não. Um verdadeiro reconhecimento da realidade obriga todos a mudar o olhar e, portanto, a mudar o estilo da linguagem e das formas de vida. Não se pode falar do tríduo pascal ou do sacramento da penitência com o estilo frio de um regulamento de condomínio. A segunda passagem, certamente mais exigente, permanece quase totalmente inacabada ou delegada a outros. Mas o tempo, que é superior ao espaço, não oferece descontos. Somente com profecia e visão a longo prazo poderemos honrar essa nova realidade, em um tempo que se tornou, ao mesmo tempo, muito dilatado e bastante breve.
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Estilo curial e um olhar para a realidade. Calendário e ritos do tempo de Páscoa, confissões e indulgências em condições de pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU