03 Mai 2018
Juan Carlos Cruz, James Hamilton e José Andrés Murillo, as três vítimas do padre pedófilo chileno Fernando Karadima, aos quais o Papa Francisco convidou a Roma após a explosão o caso do bispo Juan Barros, pupilo do próprio Karadima, e que se encontraram pessoalmente com Bergoglio de sexta a segunda-feira na Casa Santa Marta, expressam reconhecimento e apreço pelo gesto do pontífice e pela “enorme hospitalidade e generosidade desses dias”.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por Vatican Insider, 02-05-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eles também salientam que viram um rosto amigável de uma Igreja que, no passado, os tratou como “inimigos” e expressam a esperança de que a Igreja assuma a liderança na luta contra os abusos sexuais, os abusos de poder e o acobertamento das acusações, e que o papa “transforme suas palavras de amor e de perdão em ações exemplares. Caso contrário, tudo isso será letra morta”.
“Depois de passar quase uma semana na Casa Santa Marta compartilhando com o Papa Francisco, queríamos dizer o seguinte”, disseram os três chilenos, lendo um comunicado durante uma coletiva de imprensa na sede da Imprensa Estrangeira em Roma. “Durante quase 10 anos, fomos tratados como inimigos, porque lutamos contra o abuso sexual e o encobrimento na Igreja. Nesses dias, conhecemos um rosto amigável da Igreja, totalmente diferente do que conhecemos antes. O papa nos pediu formalmente perdão, em nome próprio e no nome da Igreja universal. Reconhecemos e agradecemos por esse gesto e pela enorme hospitalidade e generosidade desses dias. Também agradecemos ao monsenhor Jordi Bertomeu, que, por encargo do papa, nos acompanhou e soube transformar essa estadia em algo construtivo”.
“Pudemos conversar de maneira respeitosa e franca com o papa. Abordamos questões difíceis, como o abuso sexual, o abuso de poder e sobretudo o encobrimento de bispos chilenos. Realidades às quais não nos referimos como pecados, mas como crimes e corrupção, e que não se esgotam no Chile, mas são uma epidemia. Uma epidemia que destruiu milhares de vidas de crianças e jovens, pessoas que confiaram e que foram traídas em sua fé e em sua confiança. Falamos a partir da experiência, a que alguns não conseguiram sobreviver.”
“O papa pediu nossa opinião acerca de aspectos concretos e também teóricos do tema”, destacaram os três homens. “Expressamos-lhe a gravidade do encobrimento do abuso, porque isso o sustenta, o replica, o torna impune e favorece a criação de redes de abuso dentro e fora da Igreja. Conversamos com o papa acerca do exercício patológico e ilimitado do poder, que é pedra angular do abuso sexual e do encobrimento. Expressamos-lhe que a Igreja tem o dever de se transformar em aliada e guia no mundo em relação à luta contra o abuso e de ser refúgio para as vítimas, algo que não ocorre hoje.”
As vítimas disseram ter encontrado em suas vidas com “sacerdotes, religiosos e religiosas comprometidos com a dignidade das vítimas e com a justiça. Pessoas honestas e valentes que fizeram progressos nessa luta. São muitos e são imprescindíveis”.
“O papa – acrescentaram – mostrou-se muito receptivo, atento e empático durante as intensas e longas horas de conversação. Isso foi muito significativo. E daí nasceu a ideia de gerar sugestões, que nos comprometemos a lhe enviar nos próximos dias e a continuar trabalhando nesse assunto.”
Cruz, Murillo e Hamilton reiteraram que haviam decidido “aceitar esse convite em nome de milhares de pessoas que foram vítimas do abuso sexual e do encobrimento da Igreja Católica. Elas deram sentido à nossa visita”.
“Não depende de nós que se realizem as necessárias transformações na Igreja para deter a epidemia do abuso sexual e do encobrimento”, disseram ainda, expressando um último desejo: “Esperamos que o papa transforme em ações exemplares e exemplificadoras suas carinhosas palavras de perdão. Caso contrário, tudo isso será letra morta”.
Durante a coletiva de imprensa que se seguiu à leitura da declaração, os três sobreviventes dos abusos apontaram o dedo contra as responsabilidades da hierarquia da Igreja chilena. “O papa nos pediu desculpa, não a Conferência Episcopal do Chile, que não sabe pedir perdão”, disse Cruz.
Os três explicaram que o papa não lhes disse quais iniciativas tomará em breve, particularmente quando se encontrar com os bispos chilenos que convocou a Roma na terceira semana de maio. O pontífice argentino assegurou que “rezará, refletirá”, mas Cruz, Hamilton e Murillo relataram o que disseram ao papa sobre os bispos chilenos.
Murillo, em particular, ressaltou que “não só o bispo Juan Barros”, mas também os bispos Koljatic, Valenzuela e Arteaga foram alunos do Pe. Karadima e encobriram as denúncias de abuso. Hamilton, de sua parte, afirmou várias vezes que encobrir a denúncia do crime de abuso é também um crime e se concentrou em particular no cardeal Francisco Errázuriz, arcebispo emérito de Santiago e membro do Conselho dos nove cardeais que auxiliam o papa na reforma da Cúria, o chamado C9, e seu sucessor, o atual arcebispo da capital chilena, Ricardo Ezzati.
“Gostaríamos que todos fossem para a cadeia”, declarou, mas, “no Chile, para o Código Penal, o abuso sexual prescreve depois de cinco ou 10 anos”. Relembrando como a prescrição também ocorreu com o Pe. Karadima, Hamilton expressou a esperança de que, no Chile e nos outros países do mundo, o abuso sexual contra menores e adolescentes se torne imprescritível.
Quanto ao cardeal Errázuriz, “ele sabia de tudo há muitos anos: José Andrés Murillo lhe deu uma carta pessoalmente sobre os abusos de Karadima. Em 2005, eu, pessoalmente, testemunhei perante o promotor de justiça Eliseo Escudero, membro do Opus Dei, e, no processo civil, o Mons. Escudero confirmou ao juiz que havia dito a Errázuriz que aquilo que eu tinha testemunhado era credível e que, portanto, sua opinião era começar um processo canônico contra Karadima. Mas não aconteceu nada até 2009, quando nós três demos outro testemunho contra Karadima, durante o processo de anulação canônica do meu casamento, e, naquele momento, as acusações chegaram na Congregação para a Doutrina da Fé, e começou um processo” canônico contra Karadima, que concluiu com a sentença de culpabilidade.
“Erráruziz encobriu por mais de cinco anos o crime de Karadima e, assim, diante do direito canônico e das vítimas, ele é um verdadeiro criminoso, um homem que encobriu os atos covardes de Karadima e de seu círculo, a Pia União. Eu espero que ele pague por aquilo que tem que pagar.”
Agora também, de acordo com Murillo, os bispos chilenos estão fazendo uma “forte ação de lobby para se salvar” das próximas iniciativas do papa.
Solicitados a enviar uma mensagem ao vivo na televisão chilena para Karadima, que mora aposentado em uma casa de repouso, os três responderam: “Absolutamente nada”, respondeu Cruz. “A ele, nada, mas os bispos eu digo que o maior dano não foi Karadima, mas quando eu estava morrendo por dentro, e, em vez de me ajudarem, me rejeitaram. Por isso, digo a eles que são criminosos”, ecoou Hamilton.
“Não me dirijo a Karadima, mas sim a todos os Karadima que ainda hoje abusam de crianças e adolescentes com crimes que são encobertos por cardeais, bispos, superiores: digo que os perseguiremos em nome da justiça.”
Embora com diferentes nuances, Cruz, Hamilton e Murillo expressaram depois avaliações confiantes em relação ao papa sobre o caso Karadima-Barros, apesar da publicidade que ele teve na mídia e apesar da carta que Cruz tinha entregue a ele através do Sean Cardeal O’Malley.
O próprio Cruz disse: “Eu admiti que ele me feriu terrivelmente quando disse aquilo que disse e não disse aquilo que não disse, quando falou de calúnias... Mas tenho certeza de que há um ambiente tóxico ao redor desse caso. Penso no núncio apostólico, no cardeal Errázuriz, no cardeal Ezzati, nos membros da Conferência Episcopal Chilena. Eu não acho que quando ele (o papa) voltou do Chile ele tinha uma atitude vitoriosa. Depois, falou com algumas pessoas e logo enviou ao Chile Dom Scicluna e o Pe. Bertomeu, que lhe abriram os olhos completamente”.
Juan Carlos Cruz relatou ainda que falou com Francisco sobre a carta e, enquanto falava, “ele balançava a cabeça, sem dizer nada”. “Minha impressão é de que ele não estava mentindo, mas talvez estivesse mal informado. O ponto aqui é: quem informou mal o papa? Eu realmente acho que ele estava mal informado. Ele me pareceu verdadeiramente sincero, me pareceu que ele falava a partir do coração”.
“Vimos que ele pediu perdão. Agora esperamos que ele faça ações”, reiterou Murillo: “Não estamos aqui para fazer relações públicas, mas para ver ações, e é isso que eu espero”.
Hamilton explicou que “provavelmente nunca saberemos toda a situação, todas as informações que ele tinha ou que não tinha, mas o que eu realmente acredito é que ele agora está bem informado, porque queria estar. Por isso, pediu a nossa visita. Então, é hora de nós, de eu olhar para a frente. E esperar. Todos merecem, especialmente nesses casos, uma segunda chance. Temos esperança. Mas a nossa esperança realmente está conectada com a realidade. Se não virmos nenhuma mudança, continuaremos nossa batalha por todas as pessoas abusadas no mundo, não só aquelas abusadas pelos padres. Se virmos mudanças, seremos os primeiros a voltar aqui para ajudar em qualquer coisa que seja necessária”.
O Papa Francisco pediu que as três vítimas fiquem em contato com ele, e eles mesmos, disse Murillo, enviarão ao pontífice, provavelmente já na próxima semana, uma série de propostas concretas sobre “verdade, prevenção, justiça e ressarcimento para as vítimas”. “Eu acho que essa é a pior crise da Igreja na sua história, não uma crise de fora, como alguém que mata os sacerdotes, mas uma crise interna que está matando a fé a partir de dentro, a sua credibilidade”, explicou Hamilton, que definiu essa viagem a Roma como “reparadora”.
Murillo, por sua vez, confessou estar “verdadeiramente cansado”: “Eu trabalho constantemente com vítimas de abusos e, durante esta viagem, pensei muito nelas e em todos os menores e os adolescentes que sofrem abusos de padres, professores, treinadores, em casa... Penso neles, em todos os encobrimentos, por exemplo na França, com o cardeal de Lyon, Philippe Barbarin”. Em vez disso, “a Igreja deve ser uma aliada na luta contra os abusos, não um refúgio para abusadores”.
Quando perguntado sobre qual foi o momento mais significativo dos encontros com o pontífice – conversas pessoais de mais de duas horas cada um e um encontro coletivo na segunda-feira –, Cruz disse que foi quando conseguiu dizer a Jorge Mario Bergoglio “que há pessoas abusadas que não tiveram sorte como nós e perderam a vida”. Para Hamilton, quando o papa disse que “não se volta atrás”. Para Murillo, “o momento mais significativo foi quando o papa disse que o abuso e o encobrimento não são pecado, mas corrupção. Quando ele disse isso, eu pensei: talvez ele fará algo importante”.
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Chile: ''O papa nos pediu perdão. Agora esperamos ações exemplares'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU