Por: Patricia Fachin | Tradução: André Langer | Edição: Vitor Necchi | 12 Janeiro 2018
Com o texto da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia, o papa Francisco concluiu as discussões das duas assembleias sinodais de 2014 e 2015 sobre a família. Para o jesuíta e teólogo Alain Thomasset, este documento fornece “uma direção clara para valorizar a beleza e a alegria do matrimônio e insiste na misericórdia no trabalho pastoral”. Não se trata de “um olhar crítico, inquisitivo ou um julgar a priori, mas um olhar amoroso, misericordioso e que valoriza o que é bom naquilo que se vive”.
Thomasset entende que “este chamado ao amor misericordioso é também um convite ao realismo, à atenção dada às situações reais das famílias”. O teólogo se refere à intenção do Papa: “Como bom pastor, ele quer se juntar à experiência real dos casais, nas suas alegrias e dificuldades, nas suas esperanças e angústias, para melhor acompanhá-los e apoiá-los”. Conforme o teólogo, o Papa está ciente do afastamento de muitas fiéis por causa de uma pastoral que às vezes tem sido muito rígida ou muito distante da realidade das pessoas.
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Thomasset apresenta os aspectos mais importantes da Amoris Laetitia: três apelos à conversão e à alegria. A primeira conversão refere-se ao olhar. “Precisamos [...] adotar o olhar de Cristo”, afirma. “O olhar do Cristo Jesus deve inspirar a pastoral de toda a Igreja, especialmente com aqueles que não vivem completamente seu ideal do matrimônio ou que participam de sua vida de maneira incompleta.”
A segunda conversão trata da vocação cristã do matrimônio, que não é um ideal abstrato ou “um estado adquirido de uma vez por todas por ocasião do sacramento do matrimônio”. Ela “guia e orienta para um caminho de crescimento e amadurecimento permanente, um êxodo jamais completado sob o efeito da graça”.
A terceira conversão é a ação pastoral. “Levar em consideração a história e o crescimento do amor nas famílias requer uma pastoral que não permaneça fixada na conformidade com a regra ou no ideal desejado, mas que deseja acompanhar todas as famílias, independentemente da sua situação, para encorajá-las e cuidá-las”, explica o teólogo, dizendo que a palavra de ordem é “integrar todos”.
Thomasset abordou também os limites da Exortação Apostólica. No seu entendimento, ela discute muitos assuntos e de forma inédita, “mas este texto não pode dizer tudo”. Um dos silêncios se refere à questão dos casais homossexuais. “De maneira geral, trata-se de um texto pastoral que nem sempre desenvolve seus fundamentos teológicos e dogmáticos. É por isso que ele também suscita interrogações, especialmente sobre a teologia dos sacramentos. Mas é papel dos teólogos retomar essas questões.”
Alain Thomasset | Foto: Cristina Guerini Link/IHU
Alain Thomasset é jesuíta, doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina (Bélgica) e professor de Teologia Moral no Centre Sèvres – Facultés Jésuites de Paris. Também é presidente da Associação de Teólogos para o Estudo da Moral (ATEM), colaborador da revista Recherches de Science Religieuse, vice-presidente da Fundação Jean Rodhain e editor de Revue d’Éthique et de Théologie Morale. Autor, entre outros livros, de Paul Ricoeur: une poétique de la morale. Aux fondements d’une éthique herméneutique et narrative dans une perspective chrétienne (Leuven University Press, 1996), Interpréter et Agir. Jalons pour une éthique chrétienne (Paris, Cerf, 2011), La morale de Vatican II (Paris, Médiaspaul, 2013), Quand la foi est sociale. Analyse de récits de chrétiens engagés (com Bertrand Cassaigne, Paris, Bayard, 2013), Les vertus sociales. Justice, solidarité, compassion, hospitalité, espérance. Une éthique théologique (Paris/Namur, Lessius, 2015) e Une morale souple mais non sans boussole. Répondre aux doutes des quatre cardinaux à propos d’Amoris Laetitia (com Jean-Miguel Garrigues, o.p., Cerf, Paris, 2017).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor vê, no conjunto, a Amoris Laetitia como documento final do sínodo sobre a família?
Alain Thomasset – A Amoris Laetitia é uma Exortação pós-sinodal. Com este texto, o papa Francisco conclui os debates das duas assembleias sinodais de 2014 e 2015 sobre a família. É necessário sublinhar o caráter excepcional do processo sinodal desejado pelo Papa. Pelo que sei, foi a primeira vez que duas assembleias sucessivas trataram do mesmo assunto. Isso lembra a caminhada do concílio, que, com suas várias sessões, permitiu que os assuntos amadurecessem com debates intermediários. Também é importante enfatizar a importância da consulta prévia em ambas as assembleias com questionários enviados a todas as dioceses, onde todos os cristãos podiam participar. As sínteses das respostas constituíram o documento de trabalho das assembleias, e não um documento teórico escrito por uma comissão romana. Finalmente, o modo de debate implementado que o Papa queria – franco e sincero, com tempos para discussões em pequenos grupos – permitiu realmente compartilhar as experiências, as preocupações comuns e as diferenças de apreciação.
A Amoris Laetitia é fruto deste processo sinodal, e a Exortação cita muito abundantemente os documentos finais das duas assembleias, como nenhuma outra havia feito antes. É claro que o Papa acrescentou sua nota pessoal, em seu cuidado pastoral com as situações difíceis, no tom familiar empregado, no desejo de ser concreto e de alcançar pessoas e casais onde quer que estejam. Dá uma direção clara para valorizar a beleza e a alegria do matrimônio e insiste na misericórdia no trabalho pastoral. Mas seu texto reflete também de maneira fiel o que aconteceu em ambas as assembleias. Isso indica a importância da caminhada sinodal desejada pelo Papa. Ele lembrou em seu discurso por ocasião do 50º aniversário da instituição sinodal: “O caminho da sinodalidade é precisamente o que Deus espera da Igreja do terceiro milênio”. O apoio deste texto a esta longa deliberação eclesial e aos textos votados por maioria qualificada abre uma nova maneira de fazer as coisas na Igreja e reforça a autoridade desta Exortação.
IHU On-Line – Amoris Laetitia foi recebida de que maneira na França e na Europa?
Alain Thomasset – Acredito que a Exortação tenha sido globalmente bem recebida na França e na Europa. O tom empregado, o gênio pedagógico do Papa, a insistência na alegria e na beleza do matrimônio cristão (penso particularmente no belo capítulo 4, que desenvolve as condições para fazer crescer o amor na família) são abundantes. Há também a abertura que se esperava em relação a situações matrimoniais complexas e que receberam muita atenção durante os debates sinodais. Tudo isso deu uma sensação de frescor e renovação à pastoral do matrimônio e da família, que podemos ter reduzido a uma moral sexual ou a um “ideal teológico muito abstrato” (AL 36). É um lugar fundamental para a proclamação e a implementação do Evangelho e um espaço central para a vida social em geral.
Dito isto, a Amoris Laetitia também suscitou interrogações e até mesmo resistências. Nos cursos que eu dou nas dioceses da França, ouço muito sobre essas interrogações de sacerdotes que se perguntam como implementar este “discernimento pessoal e pastoral” que o Papa pede e para o qual nem sempre foram formados. Para esta dificuldade prática, que é real e que obrigará as igrejas locais a questionar sua prática, algumas vezes é adotado um questionamento doutrinário. Alguns até (especialmente os jovens sacerdotes) se perguntam se este ensinamento sobre a consideração de casais em situação “irregular” está em conformidade com os ensinamentos de João Paulo II, especialmente na Veritatis Splendor e na Familiaris Consortio. Foi para responder a essas dúvidas, expressadas publicamente por quatro cardeais e retomadas por outros pastores, que eu, juntamente com o dominicano Jean-Miguel Garrigues, escrevi um pequeno livro intitulado Une morale souple mais non sans boussole [Uma moralidade flexível, mas não sem bússola, em tradução livre].
IHU On-Line – Quais são os três aspectos mais importantes da Amoris Laetitia?
Alain Thomasset – São três apelos à conversão e à alegria. Observo esta insistência do Papa em seus textos sobre a necessária conversão dos cristãos e da Igreja e sobre a importância dada à alegria como sinal da presença do Evangelho em nossas vidas.
A primeira conversão que o Papa pede é a do olhar. Precisamos, disse ele retomando as palavras do sínodo, adotar o olhar de Cristo, que “olhou com amor e ternura para as mulheres e os homens que encontrou, acompanhando seus passos com verdade, paciência e piedade ao anunciar as exigências do Reino de Deus” (AL 60, cf. sínodo 2014, 12). Quase tudo é dito nesta frase. O olhar do Cristo Jesus deve inspirar a pastoral de toda a Igreja, especialmente com aqueles que não vivem completamente seu ideal do matrimônio ou que participam de sua vida de maneira incompleta (cf. AL 70 e 291). Não é, portanto, um olhar crítico, inquisitivo ou um julgar a priori, mas um olhar amoroso, misericordioso e que valoriza o que é bom naquilo que se vive. Este chamado ao amor misericordioso é também um convite ao realismo, à atenção dada às situações reais das famílias. Este é um outro leitmotiv das palavras do Papa. Como bom pastor, ele quer se juntar à experiência real dos casais, nas suas alegrias e dificuldades, nas suas esperanças e angústias, para melhor acompanhá-los e apoiá-los.
A segunda conversão consiste em considerar a vocação cristã do matrimônio (o Papa não renuncia a nenhuma exigência do Evangelho) não como um “ideal abstrato” ou um estado adquirido de uma vez por todas por ocasião do sacramento do matrimônio, mas como aquela que guia e orienta para um caminho de crescimento e amadurecimento permanente, um êxodo jamais completado sob o efeito da graça. Isso explica a necessidade de crescer no amor e de acompanhá-lo pacientemente. A vocação da família é, portanto, colocada sob o signo da alegria, uma boa notícia para a Igreja e para a sociedade, uma escola do dom de si e da fraternidade, uma “promessa que se irradia sobre toda a sociedade” (AL 194).
A terceira conversão a que este texto nos convida é a ação pastoral. O título do capítulo 8 dá a chave para todo o texto: “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”. Levar em consideração a história e o crescimento do amor nas famílias requer uma pastoral que não permaneça fixada na conformidade com a regra ou no ideal desejado, mas que deseja acompanhar todas as famílias, independentemente da sua situação, para encorajá-las e cuidá-las. A palavra de ordem é “integrar todos” para ajudar cada pessoa a encontrar sua própria maneira de participar da comunidade eclesial. “Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho!” E o Papa diz: “Não me refiro só aos divorciados que vivem em uma nova união, mas a todos seja qual for a situação em que se encontrem” (AL 297). A pastoral deve, portanto, basear-se em uma renovada confiança feita na consciência informada dos fiéis e no trabalho da graça em cada pessoa. Este é, certamente, um ótimo requisito para os pastores e as igrejas locais.
IHU On-Line – A Exortação Apostólica tem limites? Em que sentido?
Alain Thomasset – Este texto muito rico aborda diversos assuntos, muitas vezes de forma inédita. Não penso apenas na questão das pessoas divorciadas recasadas que ocuparam uma grande atenção, mas, por exemplo, na atenção dada às condições materiais da vida familiar e na assistência pastoral para pessoas viúvas, às pessoas solteiras, ao cuidado proporcionado às relações entre gerações. Há também uma reflexão original e muito encarnada sobre a dimensão da ternura, dos desejos e das paixões peculiares à vida familiar, bem como um convite a uma educação afetiva e sexual saudável dos jovens. Mas este texto não pode dizer tudo. Há um silêncio, por exemplo, sobre a questão dos casais homossexuais, sem dúvida por causa das divergências vividas durante o sínodo. De maneira geral, trata-se de um texto pastoral que nem sempre desenvolve seus fundamentos teológicos e dogmáticos. É por isso que ele também suscita interrogações, especialmente sobre a teologia dos sacramentos. Mas é papel dos teólogos retomar essas questões. Além disso, o Papa diz que nem tudo deve ser “decidido através de intervenções magisteriais” (AL 3). Aqui, novamente, o processo sinodal deve continuar.
IHU On-Line – Quais são os principais pontos de divergência nas interpretações da Amoris Laetitia?
Alain Thomasset – Um dos pontos centrais da divergência diz respeito à eventual acolhida, e caso por caso, das pessoas divorciadas que se casaram novamente aos sacramentos da reconciliação e da eucaristia, dos quais, hoje, estão excluídas, devido à sua situação de “pecado objetivo” e da ruptura estabelecida em relação aos compromissos do sacramento do matrimônio. O papa Francisco, seguindo o sínodo, propõe que o “discernimento pessoal e pastoral” seja exercido em relação a cada situação particular, de modo a permitir uma maior integração dessas pessoas na vida da Igreja, integração e apoio eclesial que ele especifica em uma nota que pode se tratar da ajuda dos sacramentos (AL 305, nota 351).
Alguns se perguntam se essa eventualidade não contradiz os ensinamentos do magistério precedente, que insistia na dimensão “intrinsecamente má” dessa situação e na impossibilidade de acolher essas pessoas a esses sacramentos, a menos que eles aceitem viver como irmão e irmã. Este ponto delicado toca, portanto, a interpretação da disciplina dos sacramentos e da moralidade dos atos conjugais das pessoas recasadas, assim como são tratadas na encíclica Veritatis Splendor (1993) e na Exortação Familiaris Consortio (1981), ambas do papa João Paulo II.
IHU On-Line – O senhor afirma que existe uma complementaridade entre a encíclica Veritatis Splendor de João Paulo II e a Amoris Laetitia do papa Francisco. Qual é essa complementaridade e onde ela se expressa?
Alain Thomasset – Responder a esta pergunta é o objetivo do nosso livro, porque se a ideia é muito simples, sua demonstração requer um pouco de tempo e exige uma argumentação teológica fina. Para resumi-la brevemente, a encíclica Veritatis Splendor insistia na necessidade moral de normas universais para lutar contra as derivas do relativismo ou do subjetivismo ambientes. Nem tudo é válido, e a Igreja afirma com força que existem pontos de referência válidos para todos. Nesta ocasião, ela também reafirma que existem atos “intrinsecamente maus”, ou seja, são maus por sua própria natureza e que nenhuma circunstância poderia justificar (uma violação, a tortura, um assassinato, um adultério...). A Amoris Laetitia, por sua vez, sem negar o papel das normas, insiste em que se deve levar em consideração as situações singulares e no fato de que um julgamento moral sobre um determinado ato supõe sempre um discernimento da consciência. Isso é necessário não somente porque, como nos lembra Tomás de Aquino, as normas nunca podem prever todos os casos possíveis e que a consciência deve desempenhar seu papel (cf. AL 304), ou ainda porque em uma dada situação pode haver conflitos de deveres, mas também porque devemos distinguir entre uma moral objetiva (um julgamento feito de fora em função das normas da Igreja) e uma moral subjetiva que pressupõe que a culpa de uma pessoa em uma situação objetiva de pecado pode ser diminuída ou mesmo suprimida devido a determinadas circunstâncias atenuantes e condicionamentos exteriores (cf. AL 301-303).
Nós argumentamos que essas duas afirmações não são contraditórias, mas complementares, porque elas representam os dois lados indispensáveis da grande tradição da teologia moral católica: para um julgamento moral correto (julgamento feito em última instância pela consciência, lembra o Papa com o concílio), é necessário, ao mesmo tempo, levar em consideração as referências morais essenciais que são as normas universais e a situação singular das pessoas em sua história e em sua capacidade real. O papa Francisco apenas está repetindo a grande tradição do discernimento, implementada especialmente por todos os confessores. É o que faz o Papa dizer duas coisas de uma só vez: nenhuma nova norma (a da Veritatis Splendor continua válida), mas uma exigência de discernimento (sobre a qual a Veritatis Splendor não insistiu). “Se levarmos em conta a infinita diversidade de situações concretas (...) não devemos esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova legislação geral do tipo canônico, aplicável a todos os casos. Requer-se apenas um novo encorajamento ao discernimento pessoal e pastoral responsável de casos particulares, que deve reconhecer que, sendo que “o grau de responsabilidade não é o mesmo em todos os casos” (Relatio Finalis 51), as consequências ou os efeitos de uma norma nem sempre devem ser os mesmos. Os sacerdotes têm a missão de ‘acompanhar as pessoas interessadas no caminho do discernimento, em conformidade com o ensinamento da Igreja e as orientações do bispo’ (Relatio Finalis 85)” (AL 300).
Ler conjuntamente a Veritatis Splendor e a Amoris Laetitia evita uma leitura rigorosa da primeira e uma leitura laxista da segunda. Como disse o cardeal Schönborn em seu livro-entrevista com Antonio Spadaro sobre uma leitura rígida da Veritatis Splendor: “‘O intrinsece malum’ mal compreendido suprime as circunstâncias e as discussões sobre as situações sempre complexas de uma vida humana. Um ato humano nunca é simples e nós aderimos de maneira material à articulação do objeto, das circunstâncias, da finalidade, aí onde se trata, na verdade, de liberdade e de atração do bem”.
IHU On-Line – Em Une morale souple mais non sans boussole [Uma moralidade flexível, mas não sem bússola, em tradução livre], escrito com Jean-Miguel Garrigues, o senhor sugere que temos necessidade de uma moral flexível, mas não sem bússola. Como podemos ler a encíclica Amoris Laetitia nesta perspectiva?
Alain Thomasset – A expressão “moral flexível” vem de Charles Péguy, que indica que, contrariamente ao que comumente se acredita ser uma moral flexível (ou seja, uma moral que se preocupa em abraçar as circunstâncias concretas da ação), é mais exigente do que uma moral rígida (isto é, uma moral que decide de maneira simples a partir de normas gerais). Para medir uma curva, você precisa de uma régua flexível. Uma régua reta, rígida, não é boa porque não se casa bem com a realidade, deixa, como diz Péguy, muitos aspectos nas sombras, deixa de lado as dobras da alma.
Uma moral flexível exige um discernimento, uma atualização permanente da consciência. Eu acredito que é esta moral que o Papa nos convida a praticar na Amoris Laetitia quando pede aos fiéis e aos pastores para que vivam um discernimento real que leve em consideração as circunstâncias reais da ação em toda a sua complexidade. Essa moral é “flexível” (pode-se dizer ajustada) na medida em que se esforça para chegar à verdade das situações vividas. Ao mesmo tempo, não é “sem bússola”, isto é, sem pontos de referência para nos guiar, porque qualquer discernimento em situação supõe a tomada de consideração das indicações normativas da comunidade de fé, especialmente as normas da Igreja. Nós encontramos “as duas pernas” da teologia moral e pastoral.
IHU On-Line – Alguns teólogos e filósofos acusam a Amoris Laetitia por se basear em uma moral casuística, outros respondem que têm uma base tomista. De acordo com a sua leitura, qual é o fundamento moral dela?
Alain Thomasset – Hoje, a “casuística” não é bem vista, porque ela foi muito criticada, especialmente por Pascal em seus Provinciales e pelo movimento rigorista e jansenista dos séculos XVII e XVIII. Esta crítica, que pode ser entendida por causa dos abusos aos quais ela deu origem, também é bastante injusta. Porque a casuística é, acima de tudo, a arte do discernimento de casos de consciência. Como podemos renunciar a isso? Mesmo os seus críticos o praticam sem nomeá-lo quando confrontados com situações pastorais. Nesse sentido nobre do discernimento exigido pelas novas e complexas situações (como foi no caso do século XVI, quando a casuística levantou voo), a Amoris Laetitia reafirma a dimensão casuística de qualquer moral digna desse nome. Ao mesmo tempo, e isso não é contraditório, essa moral é também muito tomista.
Na Amoris Laetitia, o Papa se apoia amplamente em Tomás de Aquino para justificar sua posição. Para tomar um exemplo, o Papa recorda que, no campo da ação, os princípios gerais são insuficientes, porque “a verdade ou a correção prática não é a mesma para todos nas aplicações particulares”. De fato, Tomás de Aquino faz uma diferença entre razão teórica e razão prática para dizer que esta última “deve lidar com as realidades contingentes e em mudança”, mais ela enfrenta essas situações concretas “quanto mais suas conclusões são afetadas por uma nota de variabilidade e incerteza” e que “quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação” (Suma Teológica, Ia-IIae, Q. 94, art. 4, citado na AL 304). Esta leitura de Tomás de Aquino – que nem sempre foi enfatizada no passado – permite compreender por que o julgamento moral não deve ser realizado more geométrico, isto é, de maneira simplesmente lógica e dedutiva, como os detratores do Papa, sem dúvida, desejariam.
Além disso, o fato de apelar ao discernimento e à “confiança no trabalho da graça” encaixa bem na perspectiva tomista, para a qual a virtude da prudência é central. Finalmente, observo que o papa Francisco faz um novo apelo à ética e à aprendizagem das virtudes, que sabemos ser o coração da moral de Tomás de Aquino.
IHU On-Line – Outros teólogos ainda afirmam que a Exortação não visa apenas a um campo específico da ação moral, mas que dá origem a uma revisão decisiva do próprio arcabouço da teologia moral em seus fundamentos e em seu conjunto. O senhor concorda com essa interpretação? Como esta revisão da teologia moral se expressa na Exortação?
Alain Thomasset – A Exortação, embora trate sobretudo da pastoral da família, aborda de fato questões que afetam a teologia moral em seu conjunto. Como eu disse acima, ela recorda a importância de ter em conta as circunstâncias na avaliação moral das ações humanas, valoriza o lugar da consciência pessoal e a sua necessária formação (“Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las”, AL 37), convida a pensar a vida moral como forma de crescimento com a ajuda da graça e insiste no lugar da misericórdia. O Papa deixa claro: “O ensino da teologia moral não deveria deixar de assumir estas considerações, porque, embora seja verdade que é preciso ter cuidado com a integralidade da doutrina moral da Igreja, todavia sempre se deve pôr um cuidado especial em evidenciar e encorajar os valores mais altos e centrais do Evangelho, particularmente o primado da caridade como resposta à iniciativa gratuita do amor de Deus” (AL 311). Não devemos ser controladores da graça, mas seus facilitadores. “A Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa” (AL 310).
IHU On-Line – No capítulo sobre as disfunções conjugais, o Papa usa três verbos: acompanhar, discernir e integrar a fragilidade. Qual é o significado simbólico das recomendações da Amoris Laetitia?
Alain Thomasset – Sim, esses três verbos são os do título do capítulo 8, que trata, em particular, das situações pastorais difíceis e de como acolhê-las. É todo o espírito da Exortação que é dito assim. O Papa também diz que este capítulo deve ser lido com especial atenção (AL 7), porque ele oferece o tom e a estrutura para interpretar toda a Exortação. Trata-se realmente de uma “conversão missionária” (AL 201), de um apelo a uma “Igreja em saída”. O Papa está ciente do afastamento de muitas pessoas da Igreja por causa de uma pastoral que às vezes tem sido muito rígida ou muito afastada da realidade das pessoas. Ele quer colocar a misericórdia no centro da proclamação da fé, sem esquecer a verdade e as exigências do Reino. Como disse por ocasião do ano da misericórdia: “A Igreja é chamada, em primeiro lugar, a ser verdadeira testemunha da misericórdia, professando-a e vivendo-a como o centro da Revelação de Jesus Cristo” (Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia nº 25). Acompanhar, discernir e integrar os mais fracos na comunidade foi o que Cristo fez. E é o que a Igreja é chamada a viver.
IHU On-Line – A Amoris Laetitia consegue resolver a dicotomia entre as práticas concretas dos indivíduos reais e as orientações teóricas da Igreja?
Alain Thomasset – É, em todo o caso, sua ambição. O papa Francisco se precavê de instaurar uma “moral dupla” (AL 300), como se alguém tivesse de um lado a doutrina (rigorosa) e, de outro, a pastoral (flexível). Recorda a exigência de levar a sério as situações singulares na implementação do bem desejável, sempre apontando para um caminho de crescimento. Os pontos de referência da Igreja são fundamentais, mas eles devem ser colocados no seu devido lugar e não podem substituir o acompanhamento e o discernimento pastorais. Penso, neste sentido, que o Papa nos permite escapar de uma espécie de esquizofrenia que possa ser vivenciada na pastoral. Nós fomos severos no ensino, na catequese e nas homilias e, depois, na prática (especialmente no sacramento da reconciliação) fazendo o que podíamos para levar em conta as fragilidades das pessoas e testemunhar o perdão de Deus. O que o papa Francisco diz é que a exigência e a misericórdia caminham juntas, “o amor e a verdade se encontram”, como diz o Salmo 104. É preciso acrescentar que, para isso, precisamos de paciência. Lembremo-nos do texto da AL 60: “Jesus olhou com amor e ternura para as mulheres e os homens que encontrou, acompanhando os seus passos com verdade, paciência e misericórdia”.
Mas para que a Igreja possa assumir esse testemunho da humanidade e tornar-se atraente para todos, deve continuar o caminho sinodal ao qual o Papa está muito ligado. Um dos efeitos da Amoris Laetitia que vejo nas dioceses que eu vou é a obrigação de os sacerdotes e os agentes de pastoral saírem do seu “mundinho” pessoal, onde todos tinham suas pequenas soluções para as dificuldades, e a necessidade de falar e conversar uns com os outros sobre sua pastoral. É também a tomada de consciência de uma necessária formação dos agentes de pastoral no acompanhamento e no discernimento.
IHU On-Line – Como você interpreta o silêncio do Papa em relação às 'dubia'?
Alain Thomasset – Não conheço os segredos do Papa, mas parece-me que a abordagem dos cardeais e suas “dubia” não eram muito respeitosas com a comunhão eclesial, porque lançavam a suspeita sobre a ortodoxia do Papa. Parecia muito uma atitude de lobbying que colocava a discórdia na praça pública. Dito isto, cabe à Congregação para a Doutrina da Fé responder e, talvez, fará isso, já que, a partir de agora, o cardeal Müller, que estava em dificuldades pessoais nesta questão, foi substituído. Também se deve notar que o Vaticano, por intermédio do secretário de Estado, declarou recentemente que a interpretação da Amoris Laetitia feita pelos bispos argentinos era “magistério autêntico”. Isso significa que é, de agora em diante, uma interpretação muito precisa em favor do acesso à comunhão, em certos casos específicos e após uma caminhada adequada, que faz parte do ensinamento da Igreja. É uma resposta direta às dubia.
IHU On-Line – Como o pontificado de Francisco está sendo avaliado na Igreja francesa?
Alain Thomasset – A Igreja da França, assim como muitas outras igrejas locais e mesmo entre os não cristãos, saudou a chegada do papa Francisco, reconhecendo-o como um verdadeiro testemunho do Evangelho. Sua preocupação com os mais pobres, especialmente com suas palavras e gestos, é apreciada. Seu desejo de reformar a cúria e a maneira de viver a sinodalidade, mesmo que isso incomode, é desejado por muitos. Ele é reconhecido como um pastor preocupado com a proximidade da Igreja com as pessoas, especialmente as mais vulneráveis.
É verdade que um setor da Igreja francesa se sente contrariado e inclusive resiste ao espírito do novo pontificado, cujo vigoroso tom de denúncia dos abusos da Igreja e orientação misericordiosa incomodam e contrastam com o estilo dos papas anteriores. As tendências fundamentalistas e jansenistas não estão mortas em nosso país. E é verdade que a situação dos cristãos agora minoritários nas sociedades secularizadas e pluralistas da Europa pode empurrar alguns, especialmente os jovens, a querer se refugiar no baluarte católico, reafirmando de maneira intransigente uma identidade católica sem concessões. Mas acredito que a grande maioria dos católicos franceses veja neste pontificado uma oportunidade para a renovação da Igreja e a contribuição para um vento de “frescor” evangélico.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
Alain Thomasset – No final das contas, como sugeri acima, o desafio é ao mesmo tempo doutrinal e pastoral. Isso afeta a nossa maneira de fazer Igreja. Queremos uma Igreja de “puros”, com o risco de julgar os outros acreditando-nos melhores do que eles, ou uma Igreja que se reconhece como pecadora e que, ao recordar a verdade e as exigências do Evangelho, procura acolher todos aqueles que, apesar de suas fraquezas, sinceramente querem aproximar-se de Cristo? O Papa nos convida a uma nova maneira de fazer Igreja, uma Igreja que caminha junto, uma Igreja sinodal. As dioceses já se puseram a trabalhar para implementar essa orientação que, não duvidemos disso, exigirá “verdade, misericórdia e paciência” (AL 60), assim como um diálogo entre fiéis, pastores e teólogos. Este caminho está diante de nós.
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Uma moral flexível é mais exigente do que uma moral rígida. O apelo de Francisco à ética e à aprendizagem das virtudes. Entrevista especial com Alain Thomasset - Instituto Humanitas Unisinos - IHU