17 Abril 2016
A Exortação Apostólica desempenhará um papel mediador na superação das tensões que envolvem aspectos doutrinais na Igreja, aposta o secretário da Sociedade Brasileira de Bioética.
Foto: Daniel Ibanez/CNA. |
Segundo ele, a proposta do Papa Francisco com o documento conclusivo do Sínodo sobre a Família consiste em demonstrar que é possível conciliar a base doutrinal da Igreja enquanto guia para a ação e uma interpretação hermenêutica da doutrina para atender “as pessoas em suas situações e contextos concretos a partir dos quais se tecem as propostas e desafios da fé”. Nesse sentido, pontua, é importante “reconhecer” que se trata de uma Exortação “pragmática, isto é, que propõe uma forma de ver, analisar e encaminhar as muitas questões em torno da Família”.
Márcio Fabri dos Anjos é doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, especialista em Bioética e atual secretário da Sociedade Brasileira de Bioética. Leciona Teologia no ITESP e Bioética no programa de doutorado do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os três pontos importantes de Amoris laetitia?
Foto: Acervo IHU
Márcio Fabri dos Anjos - Entendo como importante reconhecer antes de tudo que Amoris laetitia é uma Exortação programática, isto é, que propõe uma forma de ver, analisar e encaminhar as muitas questões em torno da Família. É sintomático dar o nome de Alegria do Amor, ao tratar de um assunto repleto de complexidade e tensões. É um título dinâmico, estimulante. Já no prólogo sinaliza que nem todas as discussões doutrinais, morais e pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. Antes que regras e determinações, o Papa desenvolve um programa de critérios, atitudes e métodos que perpassam toda a Exortação. Não é por acaso que nomeia o capítulo sobre irregularidades conjugais usando três verbos: acompanhar, discernir e integrar a fragilidade. O critério guia é o Amor misericordioso revelado em Jesus.
Amoris laetitia e seu papel mediador
Outro aspecto fundamental neste momento da Igreja: Amoris laetitia tem um importante papel mediador na superação das tensões que envolvem aspectos doutrinais e disciplinares. Esta função mediadora já começara bem antes com a decidida ênfase do Papa Francisco em assumir seu 'pontificado' na força originária do termo, como um 'construtor de pontes', um facilitador no enfrentamento dos problemas, um discípulo agilizador e animador entre tantos discípulos, aprendizes de Cristo na vida. Inovou em promover o Sínodo em duas etapas e não se assustou com o clima acalorado das discussões, estas nem sempre cordiais, como ele mesmo notou. Mas ressaltou o sucesso do processo sinodal pelo fato de se deixar falar e ouvir a voz das diferenças. Com esse passo indispensável era possível avançar nesta Exortação em busca de critérios para lidar com as diferenças. Em vez de entrar por uma revisão da indispensável base doutrinal na Igreja, propõe um critério hermenêutico de se assumir que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela. Mas não deixa esta proposta hermenêutica sem um critério guia, o Amor misericordioso que o Espírito ensina no discernimento em meio às diferentes situações e contextos. O Papa considera centrais na Exortação os dois capítulos sobre o Amor. À luz do Amor, a revisão doutrinal terá seu tempo mais amadurecido para ser feita se for necessária. É notável como esta Exortação cita explicitamente inúmeras contribuições de diferentes episcopados na leitura de seus contextos particulares.
Amoris laetitia é uma extraordinária aproximação entre a fé cristã e as situações concretas das pessoas. Mostra uma preocupação constante em ver as pessoas em suas situações e contextos concretos a partir dos quais se tecem as propostas e desafios da fé. Resgata as contribuições sinodais trazidas dos diferentes contextos e culturas, e considera o cotidiano da vida das pessoas submetidas aos condicionamentos socioambientais. Muda com isto o foco sobre a pureza da doutrina da fé para o seu serviço em animar a vida das pessoas em suas fragilidades e no enfrentamento dos problemas. Reconhece que a insistência em aspectos doutrinais não tem o efeito animador que se imagina, especialmente quando transformado rapidamente em culpa e um peso que se deve carregar por toda vida. Assim a expectativa do Papa é que na leitura da Exortação as pessoas se sintam chamadas a cuidar com amor da vida das famílias.
IHU On-Line – De outro lado, identifica limites na Exortação Apostólica?
Márcio Fabri dos Anjos - As conjunturas do momento eclesial de Amoris laetitia são indispensáveis para falar sobre os limites desta Exortação. Pois dentro de tais contextos o Papa escolhe linguagem, estilo, abrangência de questões e sobretudo linhas pelas quais incorpora quais citações de documentos, contribuições de episcopados e de autores. Note-se que há inclusive uma citação bastante longa de Martin Luther King.
“O que às vezes pode ser apontado como limite, pode ser por outro lado visto como opção e até mesmo como força do texto no seu gênero” |
Então, o que às vezes pode ser apontado como limite, pode ser por outro lado visto como opção e até mesmo como força do texto no seu gênero. Um exemplo estaria na possibilidade de criticar a interpretação dada pela Exortação a alguns textos bíblicos citados. Mas a liberdade de trazer a evocação desses textos para o tom maior da Exortação confere leveza e maior compreensão a seu estilo, sem comprometer a sustentabilidade do núcleo central de sua mensagem. Algo semelhante se diria da escolha seletiva que faz de afirmações em documentos citados, onde não visa fazer uma leitura crítica de tais documentos, mas apontar neles os elementos que subsidiam as propostas da Exortação.
IHU On-Line - Que avaliação geral faz de Amoris laetitia como documento conclusivo do Sínodo sobre a família?
Márcio Fabri dos Anjos - Para fechar esta dupla etapa sinodal, cheia de tensões e tendências opostas; repleta de desafios antigos e novos, aguçados pelas transformações sociais; com posicionamentos opostos que se arrastam nestes cinquenta anos de pós-Concílio, esta Exortação me parece de grande lucidez e adequação para nem acirrar os ânimos, nem se refugiar em uma média concessiva às diferentes posições. Ao contrário, mesmo que frustre quem gostaria de ver suas posições confirmadas pelo Papa, ele convoca a todas as pessoas cristãs a participar de um processo de construção, onde as regras e disciplinas não estão todas dadas, mas precisam ser ajustadas e mesmo revistas sob um olhar renovador de amor misericordioso.
Amoris laetitia ventila positivamente a inserção participativa da Igreja nos novos tempos com suas novas condições socioambientais e com os pesados condicionamentos que daí derivam. Ajuda as pessoas a caminharem nos novos tempos com olhares realistas e construtivos, guiados por uma espiritualidade forte capaz de criar novas formas de vida cristã familiar, sem perder a memória e a fidelidade ao legado do Amor cristão. Traz mais liberdade aos Episcopados para a construção de diretrizes inculturadas em seus contextos, e maior descontração à reflexão teológica para pesquisar e argumentar em torno das teorias relacionadas à Teologia da Família e do Matrimônio. Mas sobretudo anima os fiéis a serem sujeitos conscientes e responsáveis em suas trajetórias e situações da vida familiar e conjugal.
A exortação do papa Francisco parte de algumas premissas, tais como:
a) nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais;
b) para algumas questões, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais;
c) os debates, que têm lugar nos meios de comunicação ou em publicações e mesmo entre ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação até à atitude que pretende resolver tudo através da aplicação de normas gerais ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas.
IHU On-Line - Como analisa a escolha dessas premissas como base para a fundamentação da exortação apostólica? Como essas três premissas são sustentadas ao longo da exortação?
Márcio Fabri dos Anjos - Entendo que estas premissas mostram a opção de Francisco por uma Exortação de perfil programático e moderador ativo, como anotei acima, dentro do qual considera os diversos atores e fatores na experiência familiar cristã.
De um lado os prementes desafios que brotam da pluralidade de contextos e forçam na direção de soluções às vezes rápidas e práticas, ou talvez antes mostrem impaciência diante da defasagem entre as doutrinas e o cotidiano das práticas; de outro a necessidade da análise reflexiva para a busca de discernimento e o encaminhamento coerente com os conteúdos da fé; e de outro ainda, o necessário papel da autoridade que coordena e anima tal processo, para cujo desempenho propõe uma forma mais participativa e não de todo centralizada.
De modo geral vejo esses critérios sustentados ao longo da Exortação. Uma ilustração é seu modo de se referir à poligamia. Reconhece que existem culturas com práticas poligâmicas, mas se exime de antecipar juízo específico, ao mesmo tempo em que anota as contundentes críticas ao machismo e a necessidade de reciprocidade nas relações de gênero.
IHU On-Line - Qual é o significado da escolha do Salmo 128 para refletir sobre a família?
Márcio Fabri dos Anjos - Vejo a escolha desse salmo 128, junto com o 127/126, para mostrar a inserção dos filhos nas interações amorosas da vida em família. A Exortação menciona (n.14) o contexto cultural antigo desses salmos, e com isto subentende o patriarcalismo, a condição subordinada da mulher e o significado político-econômico dos filhos no tecido social. Mas argumenta que, mesmo assim significa que os filhos trazem plenitude à família e sua consequente missão de lhe transmitir os valores da fé. Pode-se questionar se seria adequado fazer tal recorte seletivo em meio a outros aspectos hoje polemizados em nossos contextos. Mas para responder a isto há que considerar a Exortação voltada para uma pluralidade maior de culturas.
IHU On-Line - O capítulo III da Exortação Apostólica, que trata da vocação da família, pode ser uma fonte de inspiração para as crises que as famílias enfrentam desde sempre? De que modo?
Márcio Fabri dos Anjos - Este capítulo é emblemático na Exortação, pois ao tratar das tradições, doutrinas e documentos eclesiais, o Papa confere no título uma ideia de caminhada em resposta à vocação de Jesus na vida familiar. Desde o início mostra a preocupação em superar a redução de tudo a uma 'doutrina fria e sem vida'. Para isto, a tônica de sua proposta se volta para os principais valores que estão subjacentes às afirmações, e isto pode ser uma fonte de inspiração nas famílias, mas na difícil tarefa desse capítulo, não se trata só disso, mas fomentar uma releitura teológica e pastoral das tradições e doutrinas.
IHU On-Line - No parágrafo 39, o papa associa parte dos problemas de relacionamento que se evidencia hoje à decadência cultural. Como analisa esse ponto?
Márcio Fabri dos Anjos - Vejo nesse parágrafo o esforço em mostrar ambiguidades que se apresentam em procedimentos e práticas da vida atual, respondendo a um ethos cultural dominante. Esta crítica está bastante subsidiada por pensadores que analisam tais processos. Não diria que a referência a 'uma decadência cultural que'... signifique ali a afirmação generalizada à decadência cultural de nossos tempos. Apontam-se ambiguidades presentes, e em outros momentos se reconhece o potencial dos modos contemporâneos de vida.
IHU On-Line - A misericórdia, tema do Ano Santo, está presente na Amoris laetitia? Como ela se manifesta nas palavras do papa Francisco?
Márcio Fabri dos Anjos - Como já disse, esta Exortação é expressão coerente com o conjunto de opções de fundo assumido por Francisco na construção de seu pontificado. O Ano Santo da Misericórdia, no ensejo de aniversário jubilar do encerramento do Concílio Vaticano II, é o grande marco de sua convocação a rever tudo pelo critério do Amor misericordioso. Mais do que no uso de palavras, a Exortação propõe atitudes geradoras de procedimentos de misericórdia no discernimento e animação da vida eclesial em termos de família.
IHU On-Line - O documento final do Sínodo enfatiza a necessidade de se “acompanhar” e “integrar” as famílias em situações irregulares ou difíceis para que elas participem da vida da Igreja. Como a exortação sugere que deva ocorrer esse acompanhamento e essa integração?
Márcio Fabri dos Anjos - Este ponto específico começou a ser enfrentado pelo Papa bem antes, quando estabeleceu novas disposições sobre a autoridade dos Bispos no discernimento e encaminhamento sobre as ditas 'situações irregulares'. A Exortação, ao considerar tais situações, intitula o capítulo 8 com a expressiva pauta de 'acompanhar, discernir e integrar a fragilidade'. Considera inadequado tratar o assunto pelo simples enquadramento na irregularidade, sem cuja solução não há integração na comunhão eclesial.
Referindo-se a pessoas divorciadas recasadas, e qualquer outra situação em que as pessoas se encontrem, afirma que "Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho!". Insiste na condição de aprendizes frágeis que somos como ponto de partida necessário para discernir, mas também integrar as pessoas a partir desta condição.
Considerando a variedade enorme de situações concretas, diz com clareza que não é possível uma norma geral, canônica, aplicável a todos os casos. O acompanhamento supõe discernir os diferentes momentos e aderir aos valores evangélicos que os interpelam e iluminam. É particularmente interessante como ali se supõe e incentiva a que os casais sejam interagentes no discernimento e compreensão dos procedimentos, e não simples subordinados a disciplinas que se estabelecem.
IHU On-Line - A Amoris laetitia dá conta de solucionar a dicotomia entre as práticas concretas dos indivíduos reais e as orientações teóricas da Igreja?
Márcio Fabri dos Anjos - Esta pergunta é frequente e reflete um desejo de soluções práticas para questões urgentes. Estamos habituados a chegar a estas soluções enquanto possível após um período de discussão, e depois disso com uma autoridade que 'bate o martelo' para solucionar. Do começo ao fim, a Amoris Laetitia entende que a solução destas questões não se dá por simples determinações que facilmente são incapazes de ser proteção e animação às pessoas em suas diferentes situações. A Exortação oferece então uma nova forma de solucionar; uma forma, a meu ver, prenhe de sabedoria evangélica.
Por Patricia Fachin
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Amoris Laetitia. Aposta nos fiéis como sujeitos conscientes e responsáveis por suas situações de vida familiar e conjugal. Entrevista especial com Márcio Fabri dos Anjos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU