02 Julho 2015
Todas as verdades, sem a doçura da misericórdia, se transformariam em um sistema rígido e frio. A misericórdia as faz resplandecer, sempre de novo, de modo surpreendente e confere à fé, sempre de novo, a força de irradiação. Só assim a nova evangelização pode ser bem-sucedida.
A opinião é do cardeal Walter Kasper, prefeito emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, em artigo publicado na revista alemã Stimmen der Zeit, de julho de 2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
1. Um problema espinhoso e complexo
A questão da admissão dos divorciados em segunda união aos sacramentos não é um problema novo e não é um problema alemão. A discussão em torno dessa questão se desenvolve há anos em nível internacional [1]. O Papa João Paulo II se pronunciou sobre isso na exortação apostólica Familiaris consortio (1982) (n. 84), favorável à práxis eclesial vigente. Na exortação Reconciliatio et paenitentia (1984) (n. 34), ele reafirmou expressamente essa posição. Ela entrou no Catecismo da Igreja Católica (1993) (n. 1.650) e na Carta da Congregação para a Doutrina da Fé de 1994 [2]. O Papa Bento XVI a confirmou na sua exortação apostólica Sacramentum caritatis de 2007 (n. 29).
O Papa João Paulo II falou de uma questão difícil e quase insolúvel. O Papa Bento XVI, de um problema difícil e espinhoso. Portanto, não é de se surpreender que a discussão sobre a questão, desde então, não se aplacou. Ela não diz respeito apenas aos cristãos que são afetados imediatamente, mas também a muitos cristãos praticantes e comprometidos que estão casados há 50 anos ou mais, que nunca pensaram no divórcio, mas agora experimentam dolorosamente o problema nos seus filhos e netos. Os seus filhos, por sua vez, na maior parte dos casos, só com dificuldade conseguem encontrar o caminho que os leva aos sacramentos, se os seus pais não podem lhes dar o exemplo. Não há quase nenhuma família que não seja afetada por esses problemas. Portanto, é compreensível que o problema seja percebido como candente por muitos pastores e confessores, teólogos e bispos.
Como se podia esperar, a questão se acendeu de novo e foi objeto de polêmicas às vésperas e durante o Sínodo extraordinário dos bispos de 2014 [3]. O Sínodo Ordinário de 2015 deve levar a termo a discussão das questões e apresentá-las ao papa, para que ele tome uma decisão.
Nas considerações que seguem, eu tento apenas esclarecer e aprofundar a problemática, tanto quanto me é possível.
2. A palavra de Jesus – desafio sempre novo e vinculante
Fundamental é a palavra de Jesus de que o homem não divida o que Deus uniu. Essa palavra encontra-se em todos os três Evangelhos sinóticos (Mt 5, 32; 19: 9; Mc 10, 9; Lc 16, 18) e também é testemunhada pelo apóstolo Paulo (1Cor 7, 10s) [4]. Não pode haver dúvida razoável de que essa palavra, na sua substância, remonta a Jesus. Na sua inaudita radicalidade, essa palavra não traz dificuldades apenas hoje. Os primeiros discípulos já ficaram chocados e, para o mundo helênico-romano da época, era absolutamente uma provocação. Na época como hoje, não podemos enfraquecer a palavra de Jesus através da adaptação à situação.
Com essa palavra, que remete a Deuteronômio 24, 1, Jesus rejeitou a casuística judaica e, desse modo, rejeitou também qualquer outra explicação casuística ou exceção à vontade original de Deus. A palavra de Jesus, portanto, não é uma norma jurídica, mas um princípio fundamental que a Igreja, com o poder que lhe foi confiado de ligar e desligar (Mt 16, 19; 18, 18; Jo 20, 23), deve fazer valer nas situações culturais que mudam.
A palavra de Jesus, por isso, não deve ser explicada de modo fundamentalista. É preciso captar tanto o limite quanto a amplitude da palavra de Jesus, compreendê-la no conjunto da mensagem de Jesus e permanecer fiéis à palavra de Jesus sem dilatá-la além da medida [5].
Encontramos essa explicação de autoridade ainda em época neotestamentária: nas bem conhecidas cláusulas sobre o adultério para a comunidade judaica de Mateus (5, 32; 19, 9), e depois de novo em Paulo, que, em um contexto étnico-cristão, decide com autoridade apostólica pela liberdade cristã, que deve valer no matrimônio com um não crente que não quer viver de maneira conveniente com o cônjuge cristão (1Cor 7, 12-16).
Com base nisso, desenvolveram-se mais tarde o privilegium paulinum e o privilegium petrinum, assim como a possibilidade de dissolver, em virtude do poder de ligar e desligar, um matrimônio sacramental concluído validamente, mas não consumado.
Nesse contexto, pode-se compreender a práxis pastoral flexível de algumas Igrejas locais na Igreja das origens. A interpretação dos textos relativos é controversa entre os especialistas [6]. Sobre nenhuma dessas hipóteses é possível construir uma solução eclesial hoje.
No entanto, é interessante que o problema era conhecido pelos Padres de Trento. Por isso, eles ensinaram contra Lutero que a Igreja não erra quando não reconhece um segundo matrimônio (DS 1807), mas, intencionalmente, não condenaram a práxis ortodoxa diferentes [7]. Desse modo, eles ensinaram a indissolubilidade do matrimônio concluído validamente (DS 1.797s; cf. 794; 3.710s), mas não a definiram formalmente [8]. Porém, ela é doutrina de fé vinculante, que estimula a reflexão e é sempre um novo desafio.
3. O matrimônio – um sinal fragmentário da aliança
O Vaticano II aceitou o desafio. Superou a compreensão do matrimônio como contrato, desenvolvida em conformidade com o direito romano, e compreendeu o matrimônio de modo análogo ao que Tomás de Aquino [9] já tinha feito com a teologia bíblica da aliança como íntima comunhão de vida e de amor, em que os cônjuges se dão e se recebem reciprocamente (GS 47).
Com essa compreensão pessoal abrangente, o matrimônio, referindo-se a Efésios 5, 25, é interpretado como imagem sacramental da relação de aliança entre Cristo e a Igreja. Por conseguinte, a relação entre o homem e a mulher deve seguir o modelo da relação entre Cristo e a Igreja.
Esse doutrina do matrimônio fundamentada na ideia bíblica de aliança tornou-se o critério para o ensino eclesial e a teologia recente. Dela, decorre uma justificação mais profunda da indissolubilidade do matrimônio. Assim como o pacto estabelecido por Deus em Jesus Cristo com a Igreja é definitivo e irrevogável, assim também é o pacto conjugal, como símbolo real dessa aliança [10].
É uma concepção grandiosa e convincente. Todavia, deve levar a uma idealização estranha à vida. Na carta aos Efésios, diz-se que Cristo amou a Igreja, doou-se por ela e a tornou pura e santa na água e mediante a palavra, de modo que ela se apresente a Ele gloriosa, sem mancha nem ruga, santa e imaculada (5, 24-27).
Essa não é a descrição de uma situação, mas expressão de promessa escatológica, rumo à qual a Igreja está sempre a caminho. Na sua peregrinação terrena, de fato, a Igreja pode realizar o que ela é, ou seja, a Igreja santa, só de modo fragmentário. Como Igreja santa, também é a Igreja dos pecadores, que, às vezes, se apresenta como prostituta infiel e que sempre deve percorrer o caminho da conversão, da renovação e da reforma (LG 8; UR 4).
Isso também vale para o matrimônio cristão. É um grande mistério (mysterion) em relação a Cristo e à Igreja (Ef 5, 32). Mas ele nunca pode realizar na vida esse mistério de modo pleno, mas sempre apenas de forma fragmentária. Nesse sentido, sob muitos aspectos, ele é um sinal fragmentário da aliança. Os cônjuges permanecem a caminho e estão sob a lei da gradualidade (FC 9; 34). Sempre precisam da conversão e da reconciliação, e são sempre de novo remetidos ao Deus rico em misericórdia (Ef 2, 4; FC 38).
O drama pode chegar ao ponto de que os cristãos podem fracassar no seu matrimônio. Esse fracasso sempre é uma catástrofe humana, em que um projeto de vida, com todas as suas esperanças, vai ao encontro da desilusão e se despedaça.
Tal fracasso também faz parte da teologia bíblica da aliança. Vê-se isso do modo mais dramático no profeta Oseias. Em primeiro lugar, ele constata: Israel tornou-se uma prostituta; Deus definitivamente rompeu o pacto (Os 1, 9; 2, 4-15). Mas a justa ira de Deus dá lugar à misericórdia. Ele dá ao seu povo um novo início (Os 11, 8s; cf. 2, 16-25).
Diante da mensagem de Jesus, o povo se recusa de novo na sua totalidade. A crítica de Jesus a essa dureza de coração é clara. Mas, em seguida, Jesus funda, como nosso representante, com a sua cruz e a sua ressurreição, a nova aliança. Ele dá o novo coração prometido pelos profetas (cf. Ez 36, 6s; cf. Jer 31, 33; Sl 51, 12). A dureza de coração, no entanto, perdura na pecaminosidade dos cristãos. Mas Deus permanece fiel, mesmo quando nós somos infiéis. A sua misericórdia não tem limites.
Uma teologia realista do matrimônio deve considerar esse fracasso, assim como a possibilidade do perdão [11]. Mesmo no fracasso humano, perdura a promessa da fidelidade e da misericórdia de Deus. Nesse sentido, a doutrina da indissolubilidade do matrimônio torna-se novamente atual. Ela não é um simples ideal. O sim de Deus perdura mesmo quando o sim humano enfraquece ou até mesmo se despedaça. Ele pertence permanentemente à história da liberdade dos cônjuges. O pacto conjugal estabelecido por Deus mesmo não se rompe, mesmo que o amor humano se enfraqueça ou se apague totalmente. No entanto, mesmo em situações de fracasso humano no matrimônio, a situação nunca é sem perspectiva e sem esperança. Mesmo em situações nas quais nós não vemos nenhuma saída, Deus pode abrir um novo caminho. A misericórdia de Deus é confiável, somente se nós nos confiarmos a ele [12].
Tal teologia realista da aliança, que, por assim dizer, resiste à crise, põe a Igreja diante da questão: como ela, que se compreende como sacramento da misericórdia de Deus, pode acompanhar em um novo caminho e dar uma nova esperança a pessoas que, no seu matrimônio, fracassaram dolorosamente?
4. A comunhão espiritual – uma saída?
Em relação à situação de um matrimônio fracassado, também de divorciados em segunda união, a Igreja não se encontra diante de um nada pastoral. Os documentos eclesiais recentes pedem com força que nos aproximemos das pessoas que se encontram em tais situações dolorosas e que as convidemos à participação na vida da Igreja (FC 83s; SC 29).
Muitas vezes, tenta-se abrir a elas um caminho com Cristo ou, melhor, em Cristo, através da ideia de comunhão espiritual [13]. Com o conceito da comunhão espiritual, recupera-se um conceito tradicional que, infelizmente, caiu no esquecimento. Nos documentos do Vaticano II e no Catecismo da Igreja Católica, infelizmente, ele não é mencionado; só nos documentos magisteriais mais recentes, ele é retomado de novo [14] e é frequentemente entendido como uma saída que permite dar um passo à frente na espinhosa questão dos divorciados em segunda união [15].
A tradição da comunhão espiritual já está fundamentada no grande discurso sobre o pão da vida do capítulo 6 do Evangelho de João e, depois, na sua interpretação por parte de Agostinho [16]. Aqui, é o pão da vida que é Jesus Cristo, do qual nos tornamos partícipes na fé. Na Idade Média, a doutrina da comunhão espiritual se encontra principalmente em Tomás de Aquino [17]. O Concílio de Trento a retomou no ensino magisterial (DS 1.648; 1.747).
Resulta daí um tríplice significado: o desejo da comunhão sacramental (comunhão in voto ou cum desiderio), a recepção espiritual da comunhão sacramental (manducatio spiritualis) ao contrário da recepção indigna ou somente exterior (manducatio mere sacramentalis) e, por fim, frutificar a comunhão sacramental, assumindo-a mediante atos de piedade pessoal e, em particular, na adoração eucarística.
Compreendida corretamente, a comunhão espiritual não é uma forma alternativa em relação à comunhão sacramental, mas se refere essencialmente à comunhão sacramental. A aplicação à situação dos divorciados em segunda união, por isso, parece problemática. Recomenda-se, desse modo, um caminho alternativo à comunhão sacramental? De modo algum. De fato, isso estaria em contradição com a autocompreensão sacramental da Igreja Católica como sacramento visível, isto é, como sinal e instrumento da graça.
Acrescenta-se a isso que aqueles que recebem a comunhão espiritual e, na fé, estão unidos a Cristo não podem se encontrar, ao mesmo tempo, no estado de pecado grave. Por que, então, não podem também participar da comunhão sacramental? A aplicação da comunhão espiritual ao problema dos divorciados em segunda união, se tomarmos como pressuposto a compreensão tradicional, leva a um beco sem saída [18].
Esse caminho, ao contrário, é possível se tacitamente supormos outro significado à comunhão espiritual. Nesse novo significado, a comunhão espiritual não designa o desejo da comunhão sacramental que nasce do fato de se estar unido a Cristo na fé, mas um desejo no qual o cristão que vive em uma situação irregular toma consciência da sua separação de Cristo e se torna consciente de que o seu desejo, enquanto não modificar fundamentalmente a sua situação, não pode ser satisfeito.
Assim compreendida a comunhão espiritual, ela pode se tornar um salutar impulso à metanoia. Essa nova compreensão, portanto, é objetivamente possível. No entanto, inevitavelmente, ela traz consigo equívocos terminológicos. A tradição da Igreja pode nos recomendar uma via não exposta ao risco de equívocos.
5. Por uma renovação da via paenitentialis
A Igreja antiga experimentou dolorosamente muito cedo, ainda no tempo da perseguição, que os cristãos podem fracassar. No tempo da perseguição, muitos cristãos demonstraram ser fracos e renegaram ao seu batismo. Isso levou, depois do tempo da perseguição, a uma viva discussão sobre o modo pelo qual a Igreja devia se comportar diante de tal situação.
Padres da Igreja do Oriente e do Ocidente defenderam, contra o rigorismo de Novaciano, que propunha o ideal da Igreja como virgem pura, a imagem da Igreja como mãe misericordiosa, cujas portas estão sempre abertas ao pecador disposto à conversão. Eles desenvolveram a penitência canônica, compreendida como segundo batismo não na água, mas nas lágrimas do arrependimento e da penitência.
Desse modo, a Igreja levou a sério a sua autoridade de perdoar os pecados e o seu ministério da reconciliação (2Cor 5, 20). Mediante o sacramento da reconciliação, ela concedeu, depois do naufrágio do pecado, não um segundo batismo, mas, por assim dizer, uma tábua de salvação, que salva do afogamento e torna possível a sobrevivência [19].
Alguns Padres aplicaram um processo semelhante também aos cristãos que tinham rompido o seu vínculo matrimonial, que viviam em uma segunda união e, mediante a via da penitência, eram reconciliados e admitidos à comunhão [20]. A Igreja oriental continuou nesse caminho [21]. No quadro de uma liturgia penitencial, ela permitiu um segundo e até um terceiro matrimônio que – embora o sinal da "coroação" seja o mesmo – ela compreende não como sacramento, mas como bênção. Além disso, ela também incorporou do direito imperial bizantino outros motivos para o divórcio, que vão além das cláusulas sobre a fornicação de Mateus. É determinante, para essa práxis, o princípio da oikonomia, que se inspira no modo misericordioso de agir de Deus na história da salvação.
A Igreja ocidental não assumiu essa práxis, mas desenvolveu um direito matrimonial próprio, independente do direito imperial bizantino. Muitas vezes, discute-se se a Igreja ocidental deve assumir a práxis ortodoxa. Certamente, ela pode aprender com a compreensão ortodoxa da oikonomia. No entanto, um maior desenvolvimento do seu direito matrimonial deverá ocorrer na linha da própria tradição jurídica, que não conhece uma forma litúrgica para o segundo matrimônio.
A oikonomía oriental, ao contrário, corresponde, sob muitos pontos de vista, na tradição ocidental, ao princípio da epiqueia [22]. No significado que lhe é atribuído por Tomás de Aquino, não é um direito de exceção, nem uma cessação da vigência do direito, mas é a justiça mais alta, que, em situações complexas, nas quais uma interpretação literal do direito seria iníqua, faz valer o direito de modo misericordioso "justa e equitativamente" [23].
A equidade foi compreendida na canonística medieval como iustitia dulcore misericordiae temperata, ou seja, traduzindo livremente: justiça que, com a doçura da misericórdia, encontra uma concreta aplicação com prudência. Nesse sentido, em situações humanamente difíceis, a Igreja poderia fazer uso misericordiosamente do poder de ligar e desligar. Nesse caso, trata-se não de exceções ao direito, mas de uma aplicação justa e misericordiosa do direito.
Isso não significa uma pseudomisericórdia barata. De fato, conforme lemos em 1Coríntios 11, 28, vale o seguinte princípio: aqueles que, obstinadamente, ou seja, sem vontade de conversão, perseveram no pecado grave não podem receber a absolvição e ser admitidos à comunhão (CIC, cân. 915).
Esse princípio é, em si mesmo, evidente e indiscutível. A questão concreta de quem se encontra efetivamente de modo obstinado em tal situação de perdição, porém, ainda não está decidida. Para responder a essa questão, é preciso distinguir bem as diversas situações e examinar cada situação individual com compreensão, discrição e tato (FC 4; 84). Não se pode falar de uma situação objetiva de pecado sem considerar também a situação do pecador na sua dignidade pessoal individual. Por essa razão, não pode haver nenhuma solução geral do problema, mas apenas soluções singulares.
Isso decorre do conceito de pecado grave. O pecado grave não é constituído somente da materia gravis, a ação contrária ao mandamento de Deus em algo importante; também faz parte dele o juízo da consciência pessoal, o consentimento da vontade, na qual, para Tomás, a intenção da vontade é absolutamente decisiva; por fim, é decisiva a consideração das circunstâncias concretas [24].
Sobre tudo isso, não se pode decidir em termos gerais. Por isso, a sabedoria da Igreja conhece, ao lado do foro jurídico externo, o foro interno do sacramento da penitência.
Portanto, encontramo-nos diante da via paenitentialis. Não se trata de uma nova invenção, mas ela se coloca, como recentemente foi demonstrado, totalmente alinhada com a compreensão do matrimônio de Tomás de Aquino e da tradição que a ele se refere, particularmente o Concílio de Trento [25].
Com a via paenitentialis, não se entende a imposição de sanções pesadas, mas o processo, doloroso e ainda salutar, do esclarecimento e da nova orientação depois da catástrofe da separação, que é acompanhada por um especialista confessor, mediante uma conversa, que ouve pacientemente e ajuda a esclarecer.
Esse processo deve levar a pessoa interessada a um juízo honesto sobre a própria situação, em que o confessor também amadurece um juízo espiritual, para poder fazer uso do poder de ligar e de desligar de modo adequado à situação. Como em outras questões de grande importância, isso acontece, segundo a antiga práxis da Igreja, sob a autoridade do bispo (cfr. Instrumentum laboris, n. 123).
Continua sendo incompreensível para mim como se pôde objetar que essa proposta significa um perdão sem conversão. Isso seria efetivamente insensato do ponto de vista teológico. Obviamente, o sacramento da penitência implica, da parte do penitente, o arrependimento e a vontade de viver na nova situação com todas as suas forças segundo o Evangelho [26].
Na absolvição, não é justificado o pecado, mas o pecador que quer se converter. A comunhão sacramental, à qual a absolvição abre o caminho de novo, deve dar à pessoa que se encontra em uma situação difícil a força para perseverar no novo caminho. Justamente os cristãos em situações difíceis precisam dessa fonte de fonte que é, para eles, o pão da vida.
Tal renovação da práxis penitencial da Igreja, para além do âmbito dos divorciados em segunda união, poderia ter o efeito de um sinal para a necessária renovação da práxis penitencial que, na Igreja de hoje, está arrasada de modo deplorável. Seria profundamente farisaico considerar que isso diga respeito apenas aos cristãos divorciados em segunda união.
Por ocasião da recordação da fixação das teses de Lutero, que há 500 anos representou o início da Reforma, os cristãos católicos e evangélicos têm todas as razões para ouvir da primeira tese de Lutero que toda a vida de um cristão deve ser uma penitência.
6. Hermenêutica da continuidade e eterna novidade do Evangelho
Em conclusão, a questão: esse desenvolvimento da práxis penitencial da Igreja deveria ser entendida como uma ruptura com a doutrina e a práxis da Igreja ou, ao contrário, no sentido da hermenêutica da continuidade?
Uma hermenêutica da continuidade retamente compreendida, no sentido em que foi proposta pelo Papa Bento XVI, no conhecido discurso para os votos de Natal de 2005, de fato, não exclui, mas pressupõe reformas práticas e, portanto, um elemento de descontinuidade. Ela é uma hermenêutica da reforma [27].
A verdade da Revelação não é um sistema rígido esculpido na pedra e escrito em tábuas de pedra, mas é a carta de amor do Deus vivo, escrita nos corações de carne (2Cor 3, 3). Segundo Tomás de Aquino, o Evangelho, em última análise e em primeiro lugar, é o Espírito Santo infundido no coração dos fiéis pela fé em Cristo [28]. Deus, com o seu Espírito, está sempre em diálogo com a sua Igreja, a esposa do seu filho (DV 8), para introduzi-la sempre de novo na verdade totalmente inteira (Jo 16, 13) e descerrar o Evangelho, que é sempre o mesmo, na sua eterna novidade [29].
A misericórdia é essa eterna novidade. Nela, resplandece a soberania de Deus, com a qual Ele é fiel sempre de novo ao seu ser, que é amor (1Jo 4, 8), e ao seu pacto. A misericórdia é a revelação da fidelidade e da identidade de Deus consigo mesmo e, assim, ao mesmo tempo, demonstração da identidade cristã [30].
Por isso, a misericórdia não remove a verdade cristã. Ela mesma é uma verdade revelada, que está estreitamente ligada com as verdades fundamentais da fé, a encarnação, a morte e ressurreição de Cristo, e sem elas cairia no nada (cf. Instrumentum laboris, n. 68).
Por outro lado, todas essas verdades, sem a doçura da misericórdia, se transformariam em um sistema rígido e frio. A misericórdia as faz resplandecer sempre de novo de modo surpreendente e confere à fé, sempre de novo, a força de irradiação. Só assim a nova evangelização pode ser bem-sucedida.
A admoestação a "permanecer na verdade de Cristo" inclui o outro a "permanecer no amor de Cristo" (Jo 15,9). Trata-se de fazer a verdade na caridade (Ef 4, 15).
Cardeal Walter Kasper
Notas:
[1] A discussão está resumida em K. Lehmann, Gegenwart des Glaubens, Mainz 1974, 274-294; 295-308; W. Kasper, Zur Theologie der christlichen Ehe, Mainz 1977, 55-83.
[2] Carta aos Bispos da Igreja Católica a respeito da recepção da comunhão eucarística por fiéis divorciados (14 de setembro de 1994). Cf. Zur Seelsorge wiederverheiratet Geschiedener. Dokumente, Kommentare und Studien der Glaubenskongregation. Com uma introdução de Joseph Cardeal Ratzinger/Bentto XVI, R. Voderholzer (ed.), Würzburg, 2014.
[3] A minha conferência Das Evangelium von der Familie (Freiburg i. Br. 2014) abordou o problema dos divorciados em segunda união apenas brevemente, no último capítulo. Desse modo, queríamos estimular a discussão, não antecipar a solução. Essas considerações encontraram consentimento e crítica. A seguir, discuto as críticas não diretamente, mas apenas indiretamente, esclarecendo a minha posição em relação aos mal-entendidos que encontrou, desenvolvendo e aprofundando as minhas reflexões.
[4] A discussão exegética sobre a palavra de Jesus já é difícil de dominar. Sobre a discussão antiga, cf. a nota 1. Um panorama da discussão recente está disponível em U. Luz, Das Evangelium nach Matthäus, EKK vol. I/1, 20055, 346-369 e vol. I/3, 1997, 88-103. Desde então, apareceram inúmeros estudos. Nesse contexto, devemos nos limitar a remeter a poucas contribuições: Zwischen Jesu Wort und Norm. Kirchliches Handeln angesichts von Scheidung und Wiederheirat, M. Graulich-M. Seidnader (edd.), (QD 264), Freiburg i. Br. 2014 com as contribuições de D. Markl e Th. Söding; G.I. Gargano, Il mistero delle nozze cristiane. Tentativo di approfondimento biblico- teologico, in «Urbaniana University Journal» 67 (2014/3) 61-73.
[5] Joseph Ratzinger Gesammelte Schriften, vol. 4, 2014, 617; cf. 589-591; 633s. Isso também vale mesmo que Joseph Ratzinger/Bento XVI, no fim, chegue a uma conclusão prática diferente.
[6] Cf. a literatura na nota 1; em particular H. Crouzel, L’Église primitive face au divorce: Du premier au cinquième siècle, Paris 1971; diversamente G. Cereti, Divorzio, nuove nozze e penitenza nella Chiesa primitiva, Bologna 1977 (2013); Idem, Divorziati risposati. Un nuovo inizio è possibile?, Assisi 2014. Não assumo, de modo algum, a posição de G. Cereti em termos gerais. Mas não posso concordar com apresentações apologéticas que despotencializam textos que contradizem a práxis atual, introduzindo neles, com um curto circuito, teorias decisivamente posteriores.
[7] K. Ganzer colocou-o novamente em evidência com base na história do texto do cânone 7 do decreto sobre o sacramento do matrimônio (DS 1807): Absolute Unauflöslichkeit der Ehe auf dem Konzil von Trient? Zur Frage einer neuen Eheschließung bei Ehebruch auf dem Konzil, München-Würzburg 2015. Nesse estudo, ele se referiu às pesquisas de L. Bressan, Il canone tridentino sul divorzio per l’adulterio e l’interpretazione degli autori (Analecta Gregoriana 1973) e de H. Jedin, Geschichte des Konzils von Trient, Freiburg i. Br. 1951-1975, vol. III, 141-161; vol. IV/2, 96-121, em particular 108 ss.
[8] Diekamp-Jüssen e Pohle-Gummersbach falam de uma sententia fidei próxima; L. Ott, apenas de uma sententia certa.
[9] Cf. o estudo detalhado de A. Oliva, Essence et finalité du mariage selon Thomas d’Aquin. Pour un soin pastoral renouvelé, in «Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques» 98 (2014) 601-668.
[10] FC 12s.; SC 27 e outros. Para a recepção teológica, limito-me a remeter a dois autores de orientação diferente: E. Schockenhoff, Chancen der Versöhnung. Die Kirche und die wiederverheiratet geschiedenen, Freiburg i. Br.2011, 73-98; M. Ouellet, Die Familie Kirche im Kleinen. Eine trinitarische Anthropologie, Einsiedeln 2013; Mistero e sacramento dell’amore. Teologia del matrimonio e della famiglia per la nuova evangelizzazione, Siena, 2007 (Mystery and Sacrament of Love. A Theology of Marriage and the Family for New Evangelization, 2015); Idem, Ehe und Familie im Rahmen der Sakramentalität. Herausforderungen und Perspektiven, in «Communio» 43 (2014) 413-428.
[11] E. Schockenhoff, Chancen der Versöhnung, 99-125.
[12] Cf. as inúmeras declarações do Papa Francisco, em particular na exortação apostólica Evangelii gaudium (2013) e na bula Misericordiae vultus (2015).
[13] J. Auer, Geistige Kommunion. Sinn und Praxis der communio spiritualis und ihre Bedeutung für unsere Zeit, in «Geist und Leben» 24 (1951) 113-132; L. de Bazelaire, Communion spirituelle, in Dictionnaire de Spiritualité 22 (1953) 1294-1301; H.R. Schlette, Kommunikation und Sakrament (QD 8), Freiburg i. Br. 1959 (con molta letteratura precedente); R. Taft, Receiving Communion. A Forgotten Symbol? in «Worship» 57 (1983). 412-418; B.D. de La Soujeole, Communion sacramentelle et communion spirituelle, in «Nova et Vetera» 86 (2011) 146-153; P.J. Keller. Is Spirituelle Communion for Everyone?, in «Nova et Vetera» (ed. ingl.) 12 (2014) 631-655; G. Pani, La comunione spirituale, in «La Civiltà Cattolica» 166 (2015) 224-237. P.J. Cordes, Geistige Kommunion befreit vom Staub der Jahrhunderte, Kißlegg 2014.
[14] João Paulo II, Encíclica Ecclesia de eucaristia (2003) (n. 34); Bento XVI, SC 55. O Catecismo Católico para Adultos alemão, Das Glaubensbekenntnis der Kirche (1985, p. 357), desse ponto de vista, antecipou o desenvolvimento.
[15] Em primeiro lugar, por parte da Congregação para a Doutrina da Fé (1994) (nota 2) (n° 7); Bento XVI durante o VII Encontro Mundial das Famílias, em Milão, 1º-3 de junho de 2012, afirmou, em relação aos divorciados em segunda união: "Mesmo sem recepção 'corporal' do sacramento, podemos estar unidos espiritualmente com Cristo no seu Corpo".
[16] R. Schnackenburg, Geistliche Kommunion und Neues Testament, in «Geist und Leben» 23 (1952) 407-411; Augustinus, In Jo tract. 25, 11 s.
[17] Tomás de Aquino, Summa theol. III q. 80 a 1 e 2.
[18] Sobre esse beco sem saída, não critiquei a comunhão espiritual como tal, mas a sua aplicação equivocada ao problema dos divorciados em segunda união. A prática da comunhão espiritual, em si mesma, sem dúvida, é espiritualmente frutuosa e precisa urgentemente ser renovada em uma nova fase do movimento litúrgico.
[19] Cf. as conhecidas pesquisas de B. Poschmann, K. Rahner, H. Vorgrimler e outros.
[20] Essa é a posição de um padre da importância de Basílio de Cesareia. Cf. Joseph Ratzinger Gesammelte Schriften, vol. 4, 600-606. Uma proposta semelhante recentemente: Th. Michelet, Sinodo sulla famiglia. La via dell’Ordo Paenitentium, in «Nova et Vetera» 90 (2015).
[21] B. Petrà, Divorziati risposati e seconde nozze nella chiesa. Una nuova soluzione, Assisi 2012; Idem, Divorzio e seconde nozze nella tradizione greca. Un’altra via, Assisi 2014.
[22] Tomás de Aquino, Summa theol. II/II, 120s.; cfr. G. Virt, Epikie – Verantwortlicher Umgang mit Normen. Eine historisch-systematische Untersuchung, Mainz 1983; Idem, Moral Norms and the Forgotten Virtue of Epikeia in the Pastoral Care of the Divorced and Remarried, in «Journal of the Faculty of Theology University of Malta» 63 (2013/1) 17-34.
[23] Sobre a teoria da aplicação das normas canônicas, cf. W. Kasper, Barmherzigkeit. Grundbegriff des Evangelium – Schlüssel christlichen Lebens, Freiburg i. Br. 2012, 174-177; 238, n. 174.
[24] Catecismo da Igreja Católica, n. 1.856-1860; Tomás de Aquino, Summa theol. I/II, 19,5; 72,5.
[25] A esse resultado chega A. Oliva, Essence et finalité du mariage selon Thomas d’Aquin, 650-663.
[26] Nesse sentido, o Papa João Paulo II, na FC 84, decidiu que os divorciados em segunda união que estão dispostos a uma vida que não esteja mais em contradição com a indissolubilidade do matrimônio, isto é, que vivem em plena continência, podem receber o sacramento da penitência e da eucaristia. Certamente, os cristãos que se decidem a seguir esse caminho e a mantêm, dão um eloquente testemunho da unidade e da indissolubilidade do matrimônio; o seu generoso testemunho merece grande respeito e requer um atento acompanhamento pastoral. Por outro lado, a regra excepcional da FC levanta questões teológicas fundamentais. Segundo Tomás de Aquino, a essência do matrimônio consiste na comunhão espiritual; a união sexual, para ele, é secundária (Summa theol. III, 20,2; Suppl. 44,1). Se seguirmos essa concepção, coloca-se a questão: é sensato ou, melhor, não é até contraditório tolerar tacitamente, de certo modo, como solução de emergência (às vezes de salvação!), o elemento essencial do matrimônio que encontra expressão pública no matrimônio civil e, ao contrário, elevar a critério decisivo para a admissão ou não admissão aos sacramentos a exclusão do elemento secundário que daí deriva? Em outras palavras: do ponto de vista da teologia do sacramento, encontra-se em contradição com o sinal sacramental não a união sexual, que pertence à esfera íntima, mas o matrimônio civil, como comunhão de vida publicamente professada, que, com a regra excepcional, é ao menos tolerado. Porém, se o matrimônio civil como tal, de fato, é ao menos tolerado, coloca-se a pergunta sobre se a questão relativa à esfera íntima e, portanto, ao forum internum da continência, sem verificação da situação concreta, pode se tornar critério decisivo para a admissão ou a não admissão à recepção dos sacramentos. Sobre esse ponto, é preciso iniciar uma discussão mais aprofundada e perguntar-se se a regra excepcional da FC 84, a partir da sua lógica teológica interna objetiva, não requer uma reflexão mais avançada. Por fim, nessa questão, trata-se da unicidade de cada pessoa e da distinção entre foro externo e interno, necessária por causa da dignidade da consciência. A atenção a essa distinção tradicional seria um passo importante para se chegar a uma solução pastoral da questão.
[27] Discurso aos membros da Cúria Romana e da Prelatura Romana para a apresentação dos votos de Natal (22 de dezembro de 2005). Praticamente, o Papa Bento XVI assumiu largamente a posição de J. H Newman: An Essay on the Development of Christian Doctrine, 1878.
[28] Tomás de Aquino, Summa theol. I/II, 106, 1.
[29] Sobre o desenvolvimento doutrinal, cf. os Concílios Vaticano I (DS 3020) e Vaticano II (DV 8); sobre a perene novidade do Evangelho, cf. Papa Francisco, Evangelii gaudium (2013) 11.
[30] W. Kasper, Barmherzigkeit, 105; Idem, Das Evangelium von der Familie, 55s.
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Admissão dos divorciados em segunda união aos sacramentos? Artigo de Walter Kasper - Instituto Humanitas Unisinos - IHU