Por: Patricia Fachin | 13 Dezembro 2017
Quando se trata de analisar os efeitos negativos da reforma trabalhista, um percentual significativo da população merece atenção, porque ele será o mais prejudicado com as mudanças que terão como consequência imediata “a eliminação de uma ampla gama de postos formais tais como se constituem hoje no setor de serviços para a reinserção de um exército de trabalhadores agora transformados em trabalhadores intermitentes. Eles vão ganhar por hora, não terão descanso remunerado, não terão garantia alguma sobre o quanto recebem, verão, do dia para a noite, a sua renda que já é mínima ser rebaixada e tornada ainda instável, entre outras maldades”, afirma a socióloga Ludmila Abilio à IHU On-Line.
Segundo Ludmila, “para pensarmos nas consequências da reforma, temos primeiramente de olhar para a estrutura do mercado de trabalho brasileiro”, que “se fundamenta” na desigualdade social e na precariedade permanente. “Há poucos anos a taxa de trabalho formal superou a informal, ou seja, em torno de 50% dos trabalhadores e trabalhadoras sobrevivem na informalidade. Além disso, é um mercado feito por uma maioria de trabalhadores de baixa qualificação e rendimento, que sobrevivem com um salário mínimo. Então, quando pensamos nos efeitos da reforma, é para esta realidade da maioria da população que estamos olhando”, adverte.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Ludmila também critica o argumento de que a reforma atende a uma demanda de modernização do mercado de trabalho, e discute as consequências das tecnologias sobre o mercado de trabalho. “Ouvimos por aí: ‘mas em realidade a reforma só legalizou práticas que já aconteciam no mercado de trabalho’. Se é isto, teríamos de nos perguntar, mas isso é uma coisa boa que defendemos? Essas práticas deveriam ser combatidas? Ainda temos instrumentos políticos para combatê-las ou ao constatarmos isso apenas navegamos na onda que novamente mostra com clareza seus caninos afiados chamados ‘não há alternativa’? Mas para além de um discurso neoliberal da vitória, da derrota ou da impossibilidade, essa constatação é pouco, perto do que de fato está em jogo: estas práticas agora serão a regra, serão generalizadas, serão a estrutura legalizada ainda mais precária do mercado de trabalho”, pontua.
Ludmila | Foto: Antoinho Perri / Unicamp
Ludmila Abilio é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, mestra e graduada em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP. Atualmente é pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho - Cesit, na Faculdade de Economia da Unicamp, onde desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre desenvolvimento, atuais políticas de austeridade e as transformações do trabalho no Brasil e a uberização do trabalho.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Do ponto de vista sociológico, quais devem ser as principais consequências sociais da reforma trabalhista?
Ludmila Abilio - Para pensarmos nas consequências da reforma, temos primeiramente de olhar para a estrutura do mercado de trabalho brasileiro. É preciso ter em mente que o mercado de trabalho se fundamenta desde sempre em uma profunda desigualdade social e uma precariedade permanente. Há poucos anos a taxa de trabalho formal superou a informal, ou seja, em torno de 50% dos trabalhadores e trabalhadoras sobrevivem na informalidade. Além disso, é um mercado feito por uma maioria de trabalhadores de baixa qualificação e rendimento, que sobrevivem com um salário mínimo. Então, quando pensamos nos efeitos da reforma, é para esta realidade da maioria da população que estamos olhando.
A reforma ignorou essas condições e ainda coroou o Estado com o papel de promover e agravar essa dura realidade. No que concerne ao mercado informal, não há nada na reforma que acene para alguma possibilidade de extensão da proteção social. No que concerne ao mercado formal, ela possibilita em realidade uma informalização por dentro das relações formais. Será possível então manter o trabalhador na condição de formal e ao mesmo tempo eliminar suas garantias e direitos associados ao trabalho. Ou seja, o Estado está promovendo a precarização e um novo tipo de informalização das relações de trabalho em um mercado que sempre teve na sua própria estruturação um veículo poderoso de exploração e rebaixamento da força de trabalho.
Já estamos vendo nos jornais os anúncios do trabalho intermitente e os vergonhosos valores da hora de trabalho oferecidos. A primeira consequência imediata da reforma é a eliminação de uma ampla gama de postos formais tais como se constituem hoje no setor de serviços para a reinserção de um exército de trabalhadores agora transformados em trabalhadores intermitentes. Eles vão ganhar por hora, não terão descanso remunerado, não terão garantia alguma sobre o quanto recebem, verão, do dia para a noite, a sua renda que já é mínima ser rebaixada e tornada ainda instável, entre outras maldades. Isso é de uma brutalidade que é difícil nomear.
Com o trabalho intermitente podemos também pensar em formas pouco mensuráveis de intensificação do trabalho assim como na extensão do tempo de trabalho. Se buscarmos a espinha dorsal da reforma, constataremos que está em jogo a eliminação dos poros remunerados do trabalho, ou seja, trata-se deixar de considerar parte do salário tempos de não trabalho que hoje são remunerados. Esta é uma luta histórica e constitutiva da relação entre capital e trabalho: de um lado a redução do trabalhador a mera força de trabalho, a ser remunerada apenas quando usada, inclusive dentro da jornada de trabalho; do outro, as lutas pelo reconhecimento da dignidade, da humanidade do trabalhador; ou seja, estão permanentemente em jogo e em disputa as determinações sociais sobre a sua própria existência. A reforma apresenta uma redução, por enquanto vitoriosa, da figura do trabalhador ao trabalhador just-in-time, isto é, um trabalhador que é mais um fator de produção, cujos custos são contabilizados como tal, e que deve ser utilizado na exata medida das demandas do capital.
A reforma é de uma complexidade profunda, são muitos elementos, muito bem articulados que vão fornecendo diferentes alternativas à promoção mais eficiente da exploração do trabalho. Teríamos de pensar nos entraves promovidos às formas de resistência coletiva e proteção que vêm delas. Teríamos de pensar em todos os obstáculos forjados para impedir que o direito se exerça como uma fonte de proteção e justiça social. Teríamos também de pensar na figura do autônomo exclusivo, ou seja, na legalização da pejotização ou “MEIzação”[1] do trabalhador.
Se olharmos as propagandas do governo, a “modernização trabalhista” é apresentada como um belo encontro entre patrão e empregado, finalmente livres para negociar o que é melhor para ambos. Um argumento que de perto é nada mais do que ridículo, e qualquer trabalhador sabe bem disso. No que concerne às possibilidades de negociação e a alguma contrapartida que venha com a eliminação de direitos, uma coisa é olhar para aquele engenheiro altamente qualificado que, também ele, foi pressionado para se tornar PJ, uma pejotização que lhe traz insegurança, que elimina direitos, mas que talvez também incluiu algum ganho monetário etc. Outra coisa é pensar no funcionário do mês do McDonald’s. Ouvimos por aí: “mas em realidade a reforma só legalizou práticas que já aconteciam no mercado de trabalho”. Se é isto, teríamos de nos perguntar, mas isso é uma coisa boa que defendemos? Essas práticas deveriam ser combatidas? Ainda temos instrumentos políticos para combatê-las ou ao constatarmos isso apenas navegamos na onda que novamente mostra com clareza seus caninos afiados chamados “não há alternativa”?
Mas, para além de um discurso neoliberal da vitória, da derrota ou da impossibilidade, essa constatação é pouco, perto do que de fato está em jogo: estas práticas agora serão a regra, serão generalizadas, serão a estrutura legalizada ainda mais precária do mercado de trabalho. E, veja bem, se queremos construir a crítica, temos de deixar claro que a exceção já era regra — basta olhar para o exército de trabalhadores do mercado informal, basta olhar para os arranjos precários do viver por um fio das periferias brasileiras. Mas é brutal ver sua normalização, não é mais do mesmo, é um passo grave e profundo na promoção legalizada da desigualdade social, das formas profundas de exploração do trabalho e de injustiças que são impingidas cotidianamente.
De saída, então, o que podemos pensar sociologicamente é num rebaixamento generalizado do valor da força de trabalho, na perda do salário mínimo como a referência tanto do trabalho formal quanto informal; no aumento da insegurança que já é permanente na vida destes trabalhadores e trabalhadoras. Podemos pensar na intensificação da “viração”. O que torna a análise mais complexa. Essa dualidade formal/informal funciona bem como categoria explicativa e para pautar alguns dos horizontes da crítica. Mas a realidade de grande parte da população trabalhadora brasileira é feita de um trânsito entre formal e informal, em arranjos cotidianos que envolvem empreendimentos familiares, trajetórias profissionais instáveis que são traçadas pelas oportunidades de sobrevivência, invenções cotidianas e mobilizações que envolvem participar de um programa social, acionar a rede de oportunidades que a igreja oferece, lidar com o trabalho no tráfico de drogas, ser várias coisas ao mesmo tempo. Em realidade, as dualidades emprego/desemprego; trabalho formal/informal não dão conta de evidenciar nem a sobrevivência nem a real trajetória dos trabalhadores pelo mercado de trabalho. Quando entrevisto um motoboy de 30 anos, ele me conta que já foi pizzaiolo, manobrista, montador em fábrica, garçom, motorista de caminhão, de van clandestina. Hoje ele é, de dia, motoboy celetista para uma empresa terceirizada, ao mesmo tempo trabalha como autônomo para algum aplicativo de entrega, combinando os dois trabalhos. À noite, é trabalhador informal, entregando pizzas no seu bairro. Isso é a regra, não a exceção.
Com a reforma, veremos os novos arranjos que terão de ser costurados por trabalhadores como este. Veremos sua renda cair, veremos seu trabalho se intensificar, veremos ele trabalhar por mais horas para ganhar menos, veremos adoecimentos, veremos os riscos do trabalho aumentarem e serem menos fiscalizados.
Mas venho pensando também que consequências políticas podemos ver quando a esfolação do trabalhador se intensifica. Talvez o governo exagerou na dose do suportável. O que se abre daí é o bom, velho e sempre atual imponderável.
IHU On-Line - O que você entende por “processo de uberização” do mercado de trabalho? Como essa prática tem se manifestado no mercado brasileiro?
Ludmila Abilio - A uberização se refere a um processo que tomou grande visibilidade com a entrada da empresa Uber no mercado e seus milhões de motoristas cadastrados pelo mundo (sabemos que no Brasil já são ao menos 500 mil). Mas, em realidade, trata-se de um processo que vai para muito além do Uber e da economia digital, que é novo, mas é também uma atualização que conferiu visibilidade a características estruturais do mercado de trabalho brasileiro, assim como a processos que estão em jogo no mundo do trabalho há décadas (e que agora, no caso brasileiro, culminam na reforma trabalhista).
A uberização é um novo passo tanto nas terceirizações quanto na redução do trabalhador à pura força de trabalho, disponível, desprotegida, utilizada na exata medida das demandas do mercado.
Temos de pensar então em uma nova caracterização do trabalhador, das empresas e também dos consumidores. Pelo lado das empresas, elas passam a se apresentar como mediadoras que promovem um bom encontro entre oferta e demanda. Para que isto aconteça desta forma, temos a redução do trabalhador a um nanoempreendedor de si próprio. Não há vínculos empregatícios reconhecidos (algo que segue em disputa pelo mundo); o trabalhador é um autônomo que se torna responsável pelo gerenciamento de si próprio. Cria suas próprias estratégias, define seu tempo de trabalho, detém seu instrumento de trabalho, e arca com todos os riscos e custos. É uma nova-velha concepção sobre o trabalhador, em realidade uma consolidação do trabalhador reduzido à força de trabalho, que é também um bom gerente de si próprio.
A empresa aparece como mediadora, mas as relações de subordinação estão mantidas, de novas formas. Ela detém o controle sobre o valor da força de trabalho e da mercadoria/serviço oferecido, ela define quanto ganha sobre esses valores; além disso, as regras do jogo são definidas, desenvolvidas e controladas pela empresa. O motorista Uber, por exemplo, sabe que sua produtividade é permanentemente vigiada e avaliada, e que isto repercute sobre o seu trabalho em diferentes aspectos. Como as regras funcionam, e até mesmo, quais são as regras não é algo muito evidente, mas elas estão lá operando permanentemente. Não são apenas os ranqueamentos, há diversos controles operando e avaliando a produtividade deste trabalhador.
Temos também uma terceirização para o consumidor, que se torna um consumidor vigilante. Ele não detém nenhum poder sobre a forma como este controle opera, mas é ele que executa o controle sobre o trabalho, por meio das avaliações. Não é o consumidor, mas a multidão de consumidores, que no fluxo de suas avaliações acaba por se constituir como uma espécie de gerente coletivo do trabalho.
São novas lógicas, que estão muito ligadas aos debates sobre o crowdsourcing — quando o mundo do trabalho passa a se organizar sobre novas lógicas as quais se assentam no trabalho da multidão que opera como multidão de nanoempreendedores de si engajados e bons gerentes de si próprios; aos debates do que já está se convencionando como “capitalismo de plataforma” — quando empresas passam a monopolizar e organizar setores econômicos de novas formas por meio das plataformas digitais.
Entretanto, essas novas lógicas deram visibilidade às características que são estruturais do mercado de trabalho como o brasileiro, e de outros países da periferia. Estas características são fortemente ignoradas ao longo da história do pensamento social brasileiro. São tratadas como os resquícios do atraso brasileiro, como as “margens do mercado de trabalho estruturado”, ou seja, como os restos que gravitam em torno da modernização e do desenvolvimento. Com a uberização, o que vemos é que essas caraterísticas não são residuais, são parte importante do desenvolvimento capitalista, e estão sendo apropriadas de forma produtiva e generalizável pelo mercado de trabalho — não só da periferia, mas também do centro.
Essas características têm a ver com o que tratamos acima como a “viração”. O que vemos com o motorista Uber é que o trabalhador é um bom gerente de si próprio, que é capaz de criar suas próprias estratégias de sobrevivência, de engajar-se produtivamente, de trabalhar em jornadas cada vez mais longas, com rendimentos cada vez mais instáveis e reduzidos. Vemos que o trabalhador sabe sobreviver na instabilidade e que esta sobrevivência da multidão em uma perspectiva macro é um bom negócio. As características do trabalho do motorista Uber são bem familiares para grande parte da classe trabalhadora brasileira.
Agora vemos termos como “Gig economy”, definição utilizada para a economia dos bicos, em crescimento em países como os EUA e Inglaterra; ou seja, elementos centrais e obscurecidos dos países da periferia agora tomam uma dimensão “global”, traduzindo: também estão visíveis nos países do centro.
IHU On-Line - Por que, na avaliação do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho - Cesit, a reforma trabalhista tende a ampliar o processo de “uberização” no mercado de trabalho?
Ludmila Abilio - Como disse na primeira questão, a reforma promove a uberização do trabalho. Pesquisadores e pesquisadoras do Cesit vêm se debruçando sobre os impactos da reforma, o que demanda uma compreensão profunda do mercado de trabalho brasileiro atual, sua história e o mapeamento de possíveis tendências. O Dossiê da Reforma Trabalhista feito pelo Grupo de Trabalho sobre a reforma buscou destrinchar cada elemento posto pela reforma e ao mesmo tempo pensar no conjunto da obra, ou seja, entender aspectos específicos tanto da reforma quanto do mercado de trabalho brasileiro e ao mesmo tempo deixar claro a espinha dorsal da reforma, de forma que possamos pensar sobre seus impactos para os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.
A uberização se mostra como mais uma das tendências que são reforçadas e promovidas pela reforma. A possibilidade de transformar o trabalhador em trabalhador just-in-time intermitente, em autônomo exclusivo está legalizada. Temos aí de pensar na relação entre Estado, inovações tecnológicas e a configuração do mercado de trabalho. Ao longo de várias décadas foi ficando claro que é possível espraiar o trabalho sem perder o controle sobre ele — estão aí as intermináveis cadeias globais de produção para deixar isso evidente. Vemos então o Estado brasileiro promovendo a informalização das relações de trabalho por dentro das relações formais; há tecnologia para espraiar o trabalho nesta promoção e não perder o controle sobre ele; temos um mercado de trabalho que se assenta no rebaixamento da força de trabalho e nas difíceis proteções e direitos ao trabalho que nunca se universalizam. Isto posto, fica difícil não ter como certa uma uberização de diversos setores. A realidade é que o médico, o advogado, o professor, entre tantos outros, se sabe um futuro motorista Uber da sua profissão (quando não literalmente).
A uberização em realidade quer dizer a formação de uma multidão de trabalhadores autônomos que deixam de ser empregados, que se autogerenciam, que arcam com os custos e riscos de sua profissão. E que, ao mesmo tempo, se mantêm subordinados, que têm seu trabalho utilizado na exata medida das necessidades do capital. São nanoempreendedores de si, subordinados e gerenciados por meios e formas mais difíceis de reconhecer e mapear, por empresas já difíceis de localizar — ainda que estas atuem cada vez mais de forma monopolística.
Quando se legaliza o trabalhador intermitente, o autônomo exclusivo (que será potencializado pela figura do MEI — veja aí a lei que precede a reforma, chamada “salão parceiro – profissional parceiro”); está se dando o passe livre para a uberização. Temos então a multidão de trabalhadores engajados e disponíveis, arcando com os riscos e custos de seu trabalho, vendo a sua remuneração ser jogada para o jogo das forças de mercado e rebaixada em função da concorrência; lutando para sobreviver no jogo do mercado de trabalho, com a espada do desemprego pairando permanentemente sobre sua cabeça. Qual é a contrapartida do Estado? Ao que parece, somos agora mais modernos e livres. Ao que parece, reduziremos o desemprego. Será preciso estar atento à dança dos números e às mágicas estatísticas que vêm por aí.
IHU On-Line - Vários pesquisadores fazem críticas a trabalhos como os realizados pelo Uber, porque os trabalhadores não têm uma série de benefícios e direitos trabalhistas. De outro lado, diante da crise econômica brasileira, esse trabalho tem sido uma alternativa para muitos brasileiros que ou estão desempregados ou querem complementar a renda. Como você avalia essa tensão em relação ao Uber neste aspecto e quais diria que são as vantagens e desvantagens da uberização?
Ludmila Abilio - Se você perguntar para um trabalhador, você prefere ter férias remuneradas ou não? Você gostaria de ter uma rede de segurança caso sofresse algum acidente de trabalho? Me parece óbvio qual seria a resposta.
Se você perguntar para um trabalhador, você se engajaria em uma atividade que pode lhe gerar uma renda extra? A resposta variaria de acordo com a situação do trabalhador e com a atividade que se apresenta. Ele tem um emprego fixo? Ele teve queda nos seus rendimentos? Ele está desempregado? Ele comprou um carro e não tem mais como pagar as prestações?
O fato é que, no caso do Uber, não é possível olhar apenas para a atividade em si, é preciso olhar para uma série de processos em curso no mundo do trabalho para entender por que hoje temos no mínimo 500 mil motoristas, um exército que se formou muito rapidamente, se considerarmos a atuação de poucos anos da empresa no Brasil. Esta é a mesma perspectiva que eu tive em minha pesquisa com as revendedoras de cosméticos: o fato de termos 1,4 milhão de mulheres revendendo para uma única empresa é um fenômeno social que nos fala sobre elementos que ultrapassam em muito esta relação específica de trabalho. Se olharmos bem de perto, veremos algumas similaridades entre os dois trabalhos. A mais importante delas é o estatuto do que denomino de trabalho amador. Nestes casos, são trabalhos que não conferem uma identidade profissional bem estabelecida, que aparecem como bicos, complementos de renda ou em alguns casos até mesmo como atividades realizadas mais como lazer do que como trabalho.
Estas formas de trabalho se apoiam na transferência de uma série de riscos e custos para o trabalhador/trabalhadora. Contam com o engajamento, e operam em uma lógica distante daquela da seleção e da ameaça da exclusão que hoje costura o mundo do trabalho. Ao mesmo tempo, se fundamentam em novas formas de avaliação e controle sobre a produtividade do trabalhador. Será seu bom engajamento, suas estratégias pessoais e sua, digamos, resiliência em enfrentar a concorrência que cresce em progressão geométrica e sem nenhuma forma de controle, que vai garantir sua permanência naquela atividade.
Então, penso que é necessário sairmos do par vantagem/desvantagem para compreender que estamos nos deparando com uma nova forma de organização, de controle e de gerenciamento do trabalho, a qual conta com o par autogerenciamento/eliminação de vínculos empregatícios e regulações públicas do trabalho. Este par tem se mostrado produtivo, eficiente, possível.
Isto posto, temos de compreender que a redução de postos de trabalho, que veio acompanhada da formação de outros precários e rebaixados; que a transformação cada vez mais bem-sucedida dos direitos sociais em custos e entraves ao desenvolvimento econômico — desenvolvimento para quem? — são fortes vetores da transformação dos horizontes da crítica e das concepções de justiça e desigualdade em relação ao mundo do trabalho. Nossos horizontes estão tão minguados, que o simples fato de gerar alguma ocupação já mina as possibilidades críticas?
Mas essa questão nos levaria a uma questão maior e mais difícil: quais são hoje os horizontes de uma crítica ao trabalho, ou melhor, ao capitalismo? O que queremos? A volta do operário fordista que mal existiu no Brasil? As regulações do trabalho tal qual se apresentaram em alguns países do centro, enquanto se consolidava nosso lugar muito bem determinado na divisão internacional do trabalho, é isto que gostaríamos de buscar? É tão difícil, ainda mais quando vemos que a nossa “modernização” já tão complexa pode sim ser ainda mais perversa, ainda mais brutal com os de baixo. (Não só com eles, há uma proletarização em curso que contribui em muito com o cenário político brasileiro, e não é de hoje).
Tudo isto posto, volto para o chão da sua pergunta, que em realidade também se refere às decisões, à consciência e ao engajamento daqueles que se uberizam. Nestas décadas construíram-se nos estudos do trabalho análises fortes sobre a flexibilização do trabalho, sobre as formas de exploração que se fazem com ela. Fica a dificuldade de lidar com as dimensões subjetivas. Uma dificuldade que talvez tenha a ver com a indefinição dos horizontes políticos. A volta do operário fordista traz com ela a linha de produção, o gerente, o patrão (não que eles tenham desaparecido!). A perda de medidas públicas sobre o trabalho parece ter de fato alguma dimensão de liberdade do trabalhador. É difícil pesquisar e analisar isso.
Vejo isto com os motofretistas, após me descreverem um dia de trabalho que é feito de discriminação (enfrentam uma espécie de mistura contemporânea do nojo da empregada doméstica com o medo do ladrão), de lesões pelo corpo que chamam de “arranhões”, de xingamentos, de ver o colega morto atrapalhando o tráfego, de ter o trânsito infernal como seu local de trabalho; de pôr seu corpo em risco permanentemente em nome da melhor produtividade (mais um parênteses aqui, recentemente o MPT recomendou que o governo tirasse do ar mais uma das propagandas da reforma, a qual, usando a figura do motoboy, dizia como é bom poder ganhar por produtividade — talvez o governo esqueceu que neste caso isto pode custar a vida do trabalhador, ou talvez isso já não tenha tanta importância. (Veja aqui).
Mas, voltando ao ponto, dentre tantos pontos, esse trabalhador, após me relatar as suas 16 horas de trabalho, me diz que o que mais gosta é a liberdade das ruas e de “não ter patrão”. Ele, enquanto celetista terceirizado, tem um patrão até que bem reconhecível; mas, de fato, fazer o trabalho a sua maneira, definir seus próprios horários, trabalhar por metas e não por jornada são elementos que têm muita força na vida dos trabalhadores. Temos de compreender que isto mobiliza as pessoas de novas formas, formas produtivas e muito bem-sucedidas. Talvez se nossos horizontes fossem mais claros e mais corajosos, saberíamos como pensar nestes aspectos de formas mais profundas.
IHU On-Line - Nos últimos meses, por conta das discussões acerca da lei que propõe a regulamentação dos aplicativos de transporte individual, como o Uber, os motoristas do Uber e passageiros fizeram um abaixo-assinado para impedir a aprovação da legislação. Então, de um lado, há uma tentativa de regulamentar a profissão, mas, de outro, os próprios trabalhadores não querem aderir à regulamentação. Como você interpreta esse fenômeno?
Ludmila Abilio - Continuando a resposta anterior, temos de sair da dicotomia querer/poder. Os trabalhadores querem trabalhar. A isto somam-se as formas de realização subjetiva que encontram neste trabalho. Sabemos bem que o trabalho não é mera e exclusivamente um meio de sobrevivência material. Ao mesmo tempo, têm muita clareza sobre a exploração que opera cotidianamente em seu trabalho. Assim como nós, sabem que regulamentar a uberização é algo que pode até mesmo inviabilizar a própria espinha dorsal deste modelo. Já os consumidores, convocados a assinar as petições online, veem a precariedade dos motoristas, mas a banalização da injustiça social opera também na esfera do consumo.
Do lado dos trabalhadores, trata-se de colocar na balança, de um lado, as injustiças, inseguranças e custos que atravessam seu trabalho e, de outro, a própria possibilidade de trabalhar. Este lado tem pesado mais.
IHU On-Line - Hoje o mundo do trabalho mudou significativamente e parece que não há como fugir das plataformas digitais. Considerando esse novo cenário, que tipos de leis ou políticas poderiam evitar a precarização nessa nova configuração de trabalho?
Ludmila Abilio - Continuando a resposta anterior, há que se ressaltar que vemos no campo do Direito uma série de movimentos que estão muito atentos à uberização. O Uber já é um fato, que envolve a multidão de consumidores e a de trabalhadores; é um desafio conquistar regulações que agora envolvem o reconhecimento de novas formas de organização e gerenciamento do trabalho. Estas formas hoje fortemente ligadas à economia digital desafiam até mesmo as fronteiras nacionais, as legislações locais. Desafiam as concepções legais sobre a figura do trabalhador, da empresa e das relações de subordinação. Vemos também novas formas de resistência e de organização dos trabalhadores. Já ocorreram greves de motoristas Uber pelo mundo, já tivemos manifestações de motofretistas que trabalham por aplicativo em São Paulo, já há sindicatos de trabalhadores por aplicativos; motofretistas em Londres fizeram fortes resistências a uma empresa de aplicativo, enfim, tudo está em movimento.
Quando olhamos para as plataformas e seus algoritmos, o desenvolvimento tecnológico se nos apresenta como algo neutro e inexorável. Para além das plataformas, já temos de enfrentar profundas transformações que parecem que de fato vêm por aí com o desenvolvimento da inteligência artificial.
No caso das plataformas, como disse, estão em jogo até as fronteiras e as legislações nacionais. Veja o caso do Amazon Mechanical Turk, o qual conecta trabalhadores do mundo inteiro que se tornam fazedores de tarefas repetitivas e extremamente mal pagas; a plataforma opera acima do valor da hora do trabalhador inglês, alemão etc. É uma espécie de espaço transnacional que se alimenta globalmente da precarização do trabalho, do desemprego e do engajamento destes nanoempreendedores.
Também não podemos esquecer que este mundo das plataformas digitais, que tanto se alimenta de uma celebração da economia compartilhada, é feito de movimentos cada vez mais bem sucedidos de monopolização do mercado.
Quando pensamos em leis, parece que o que fica de pé é a defesa do trabalho formal e dos direitos sociais. Uma defesa que reconhece as relações de subordinação e atribui ao Estado o papel de regulação, mas não só isso, de proteção ao trabalhador em uma relação que por natureza é desigual. Isso não é pouca coisa. Isto é muito e demanda muito enfrentamento. Mas, dialeticamente, é tudo o que podemos? E queremos? Estamos sendo chamados a reconstruir nossos horizontes.
Nota:
MEIzação [MEI]: Categoria de Pessoa Jurídica definida como Microempreendedor individual, onde o faturamento da empresa/pessoa é de 60 mil reais por ano. O MEI é enquadrado no Simples Nacional e fica isento dos tributos federais (Imposto de Renda, PIS, Cofins, IPI e CSLL). A reforma trabalhista abre a possibilidade de contratação da prestação de serviços de Pessoas Jurídicas através do MEI, ou seja, pode transformar os trabalhadores em Pessoa Jurídica, gerando a possibilidade de um grande aumento dos "empreendedores individuais", isto é, promovendo a MEIzação de uma massa de trabalhadores, que perderam o acesso aos direitos previstos na CLT. (Nota da IHU On-Line)
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A eliminação dos custos associados ao direito e à proteção do trabalhador constitui a espinha dorsal da reforma trabalhista. Entrevista especial com Ludmila Abilio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU