13 Janeiro 2012
“O governo federal resolveu, politicamente, que vai acolher os haitianos e eu apoio essa decisão, mas então tem que criar uma infraestrutura de acolhida”, declara a religiosa.
Confira a entrevista.
Irmã Patrizia Licandro vive em Tabatinga, no extremo oeste do Amazonas, e assiste de perto a chegada de vários haitianos que desembarcam na cidade e depois migram para Manaus e outras regiões em busca de emprego e de uma vida mais digna no Brasil. A migração de haitianos para o município, segundo ela, iniciou em 2010, logo após o terremoto que atingiu o país, mas desde junho de 2011 o número de imigrantes que chegam à cidade por mês dobrou. Somente no ano passado foram contabilizados 2.841 haitianos, e na primeira semana de janeiro deste ano 133 novos imigrantes chegaram ao município.
Na tarde da última quarta-feira, às vésperas dos dois anos do terremoto que assolou o Haiti, Ir. Patrizia conversou com a IHU On-Line por telefone e relatou a situação dos 1.400 haitianos que estão em Tabatinga, aguardando uma entrevista com os funcionários da Receita Federal para, então, seguirem viagem até Manaus, onde poderão solicitar a carteira de trabalho e conseguir um emprego formal. “Ao chegarem ao país, eles têm que dormir no chão, no relento, não se alimentam direito e vivem em situação de precariedade. Eles começam a ter doenças respiratórias, sarna, porque as situações higiênicas são muito precárias, transtornos psicológicos, porque eles têm dificuldade de dormir, muita ansiedade e tudo isso contribui para piorar o quadro de saúde”, conta.
De acordo com ela, o governo federal aceitou a entrada dos imigrantes no país, mas não ofereveu respaldo. Atualmente as religiosas recebem uma colaboração da Cáritas Nacional e contam com as doações e trabalho voluntário da população local. “O governo federal resolveu, politicamente, que vai acolher os haitianos e eu apoio essa decisão, mas então tem que criar uma infraestrutura de acolhida. Não é possível jogar em cima dos particulares e das organizações humanitárias uma decisão que é do governo federal. O governo federal decide, mas quem carrega o peso dessas decisões são as pessoas”, critica.
Para Ir. Patrizia, a proposta do governo federal, de limitar o número de imigrantes que ingressam no país é positiva e garantirá uma migração com dignidade. “Ouvindo o projeto de lei sobre migração que será discutido, acredito que esse é o caminho certo, na medida em que, se o haitiano sai já de Porto Príncipe com seu visto, eles podem entrar por qualquer cidade do Brasil e não precisam passar pelo sofrimento e constrangimento que estão passando”. E reitera: “O número pode parecer pequeno, mas se pudermos acolher 100 pessoas por mês, já estaremos dando uma resposta mais digna para os haitianos que chegam ao país”.
Ir. Patrizia Licandro é italiana, religiosa das Ursulinas de São Carlos e vive no Brasil desde 1996. Graduou-se em Psicologia pela Universidade de Pádua, Itália, e em Ciências Religiosas pela Faculdade Teológica de Milão. Foi presidente da Regional da Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB de Goiânia-GO, de 2001 a 2006, e trabalhou por dez anos na formação da vida religiosa, vivendo sua inserção missionária na periferia da capital goiana. Desde 2006 está em Tabatinga-AM, na Diocese de Alto Solimões, trabalhando na coordenação de pastoral.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quantos haitianos já estão em Tabatinga-AM e quantos chegam ao município diariamente? Qual o perfil desses imigrantes?
Patrizia Licandro – Nesse momento, 1.400 haitianos estão em Tabatinga, esperando a entrevista com a Polícia Federal. Não há um fluxo constante de imigração: em alguns dias há picos e, em outros, chegam menos haitianos. Somente em 2011 chegaram a Tabatinga 2.841 haitianos. Desses, 2.428 eram homens, 401 mulheres e 12 crianças. E nessa primeira semana de janeiro de 2012, até dia 8, chegaram 133 novos imigrantes. Até o mês de junho de 2011, chegavam cerca de 150 a 180 haitianos por mês. Em junho, o fluxo foi aumentado para 250, e houve um aumento considerável no mês de novembro, quando chegaram quase 380 pessoas e, posteriormente, no mês de dezembro, quando chegaram 490. Estão chegando muitas mulheres grávidas. Em 2011, dez mulheres ganharam filhos em Tabatinga e outras prosseguiram a viagem para ganharem seus filhos em Manaus. Nesse momento, calculamos uma faixa de 15 a 20 mulheres grávidas.
Os haitianos estão chegando a Tabatinga desde fevereiro de 2010, mas no primeiro ano o fluxo de migrações foi bem menor: grupos de 300, 400, não mais do que isso. O ritmo de entrevista na Polícia Federal é muito limitado, porque têm poucos funcionários atuando na migração. Então, nesse período de férias, por exemplo, são realizadas poucas entrevistas. Nos meses de dezembro e janeiro, foram feitas aproximadamente 30 entrevistas semanais. Neste ritmo, nunca vai ter evasão para esse povo.
Eles estão com dificuldades seriíssimas neste momento para encontrar um lugar onde ficar; não tem mais quartos para alugar. A maioria dos imigrantes não tem recursos financeiros e não conseguem trabalho por causa do idioma. Eles falam crioulo, poucos falam português, e alguns conhecem umas palavras em espanhol, e isso dificulta a comunicação.
Eles precisam aguardar a entrevista para depois seguirem viagem até Manaus e tirar a carteira de trabalho. Só então começam a ter uma vida mais organizada. Esse tempo de espera em Tabatinga é um momento muito difícil.
IHU On-Line – Tabatinga tem condições de receber essas pessoas? Como é a realidade social desse município?
Patrizia Licandro – Não, essa cidade não tem condições nem de receber as exigências de quem já mora aqui. Tabatinga é um interior esquecido pelo governo do estado. Só é possível chegar à cidade por barco ou por avião. É muito longe, são 1.200 quilômetros de Manaus. É uma fronteira que já sofria muitos problemas de saúde, pobreza e falta de emprego. Tabatinga é um corredor do narcotráfico.
Os moradores da cidade nunca rejeitaram os haitianos, porque eles chegavam em grupos menores e era possível auxiliá-los. Mas, agora, com um número tão grande de migrantes chegando, o povo começa a ter algumas reações. Especialmente quando precisam ir a um hospital ou posto de saúde, a população local tem que competir pelas poucas vagas que existem. Na cidade quase não se encontram remédios nos postos de saúde; não se encontra vacina. As poucas vacinas que serão aplicadas nos haitianos vão faltar para os outros. Tabatinga é uma cidade que não tem infraestrutura para acolher esse fluxo de pessoas.
IHU On-Line – Como a população local tem reagido à chegada desses imigrantes? Como a prefeitura de Tabatinga tem se manifestado diante dos problemas que surgem no dia a dia?
Patrizia Licandro – O prefeito diz que já tem os seus pobres. Essa foi a política do município nesses dois anos. Por causa da ausência de uma intervenção do governo federal e estadual, Tabatinga vivencia esses problemas.
IHU On-Line – Quais os trabalhos desenvolvidos pela Igreja no sentido de auxiliar os imigrantes haitianos que chegam ao país?
Patrizia Licandro – Há uma resposta parcial da Igreja Católica que conta com a ajuda e a colaboração de pessoas. Com as doações que recebemos, podemos garantir ajuda aos imigrantes durante seis ou sete meses, mas não mais do que isso.
Estamos oferecendo, nesse momento, de segunda a sexta-feira, 300 almoços por dia, 100 a 150 cafés da manhã. Um pequeno recurso é enviado pela Cáritas Nacional. Para cobrir o restante das despesas, temos de dar um jeito. A situação de assistência é muito difícil, muito mesmo. Mas nós, como pastoral, temos que dar uma resposta a essas pessoas. Além da alimentação, estamos tentando oferecer outras atividades e uma vez por semana é exibido um filme para criar um momento de agregação e lazer entre eles. Três vezes por semana também são oferecidas aulas de português, e providenciamos pequenas apostilas de primeira sobrevivência em crioulo/português para eles poderem sobreviver. Quando chegam ao Brasil eles não encontram pessoas falando espanhol, que alguns, pelo menos, “arranham” algumas palavras.
Conseguimos celebrar com eles o Natal. No dia primeiro de janeiro é comemorada a Independência do Haiti e eles seguem a tradição de tomar uma sopa particular para esta festa. Conseguimos organizar essa festa e oferecer essa sopa para todo o povo que quis tomá-la. Dia 12 de janeiro fez dois anos do terremoto e organizamos uma caminhada pacífica pela cidade, com o objetivo de envolver todos os haitianos. Estamos auxiliando essas pessoas para que possam se sentir, pelo menos, reconhecidas, nesses três, quatro ou até seis meses em que ficam de passagem na cidade.
IHU On-Line – Qual é a situação física e mental dos haitianos que chegam ao país? Quais as maiores dificuldades encontradas por eles depois de tantos dias de viagem?
Patrizia Licandro – Os haitianos chegam após três ou quatro dias de viagem. Quem migra para o Brasil são os mais fortes, então, a condição física deles é boa. O problema é que, ao chegarem, eles têm que dormir no chão, no relento, não se alimentam direito e vivem em situação de precariedade. Eles começam a ter doenças respiratórias, sarna, porque as situações higiênicas são muito precárias; uns desenvolvem transtornos psicológicos, pois muitos têm dificuldade de dormir e muita ansiedade. Tudo isso contribui para piorar o quadro de saúde.
IHU On-Line – O que os haitianos lhe falam ao chegarem a Tabatinga? Qual é a expectativa deles ao migrarem para o Brasil?
Patrizia Licandro – Eles esperam uma realidade melhor, porque têm grande esperança pelo Brasil ser reconhecido como um país acolhedor que já ajudou bastante no Haiti. As forças de base lá criaram uma imagem de um Brasil acolhedor, sempre disponível. Então, eles têm essa ideia de encontrar aqui uma possibilidade de manter a família, de construir uma nova vida, de não ficarem desamparados. Posso dizer também que, apesar de Tabatinga ser um corredor de narcotráfico, eles nunca se envolveram com drogas e não tivemos até agora situações de violência. O povo quer migrar para trabalhar.
IHU On-Line – Eles estão conseguindo empregos? Em que áreas?
Patrizia Licandro – Em Tabatinga, só existe emprego informal. Eles conseguem emprego quando chegam a Manaus ou outra cidade.
IHU On-Line – Como avalia a postura do governo brasileiro, de tentar controlar a entrada dos imigrantes haitianos no país?
Patrizia Licandro – O governo do Amazonas está totalmente omisso. O governo estadual não se envolve com essas migrações. Nos últimos meses alguns professores de universidades estão envolvidos com os migrantes, mas essa é uma atitude pessoal deles.
Ouvindo o projeto de lei sobre migração que será discutido, acredito que esse é o caminho certo, na medida em que, se o haitiano sai já de Porto Príncipe com seu visto, eles podem entrar por qualquer cidade do Brasil e não precisam passar pelo sofrimento e constrangimento que estão passando. Essa falta de dignidade é um desrespeito à vida dos seres humanos. O governo pretende liberar 100 vistos por mês. Esse será um fluxo razoável. Se tivessem tomado essa iniciativa desde o início, a vinda dos haitianos teria sido muito mais fácil e tranquila. Esse limite de liberação de vistos mensais não vai acabar totalmente com a chegada de imigrantes por conta da ajuda que eles recebem dos coiotes, ma certamente irá manter um estágio legal.
O número pode parecer pequeno, mas se pudermos acolher 100 pessoas por mês, já estaremos dando uma resposta mais digna para os haitianos que chegam. O governo federal aceitou a entrada de imigrantes, mas não deu nenhum respaldo: não ajuda, não acolhe, não contribui com a alimentação, não disponibiliza mais funcionários da Polícia Federal para tornar as entrevistas mais rápidas. Então, todos ficam numa situação de limbo, de precariedade, de pobreza. No momento em que o país acolhe os imigrantes, tem que acolher com dignidade.
O governo federal resolveu, politicamente, que vai acolher os haitianos e eu apoio essa decisão, mas então tem que criar uma infraestrutura de acolhida. Não é possível jogar em cima dos particulares e das organizações humanitárias uma decisão que é do governo federal. O governo federal decide, mas quem carrega o peso dessas decisões são as pessoas.
IHU On-Line – Quais os desafios de trabalhar com imigrantes?
Patrizia Licandro – O maior desafio é conseguir se relacionar com a dimensão cultural e de valores dessas pessoas. Quando se trabalha com um povo imigrante em tempo rápido, pois eles ficam três ou quatro meses e depois viajam, tudo é muito acelerado. Sempre considerei a diferença uma grande riqueza, nunca uma ameaça. Então, pessoalmente não tenho dificuldades, mas reconheço que é complicado.
Por Patricia Fachin e Luana Nyland
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Haitianos: ''No momento em que o país acolhe os imigrantes, tem que acolher com dignidade''. Entrevista especial com Patrizia Licandro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU