06 Março 2018
Sua obra está inaugurando um perturbador, mas necessário revisionismo histórico sobre os anos 1970, um período que foi vastamente manipulado pela política. Mas, além disso, tornou-se um especialista na vida e na obra do Papa Francisco, ao qual dedicou dois livros muito interessantes. Chama-se Marcelo Larraquy e a sua vasta experiência como jornalista acrescenta seu ofício como historiador. Nesta entrevista, realizada antes da ressonante discussão pela descriminalização do aborto, afirma que o Papa Francisco é um líder antissistema e analisa os equívocos táticos do Governo [Macri] para com o Vaticano.
A entrevista é de Jorge Fernández Díaz, publicada por La Nación, 05-03-2018. A tradução é do Cepat.
O assunto Papa continua produzindo grandes controvérsias e mistérios.
Bergoglio sempre confrontou com todos os líderes políticos do país. De la Rúa, Duhalde, Kirchner, Cristina e, agora, com Macri. Antes a luta discursiva era muito mais profunda porque ele estava na Catedral. Então, em cada homilia, fazia comentários e era crítico à tensão social, a tendência de homogeneização do kirchnerismo, etc. De fato, os Kirchner o consideravam uma figura política da oposição.
Agora, ocorre uma situação distinta: o Papa se instala em Roma, e ainda que não fale expressamente do Governo, possui algumas linhas que marcam uma diferença conceitual com Mauricio Macri. É um problema de mensagem e também de formação. Porque Francisco é um papa que provém da “teologia do povo”, ligada ao peronismo. O grupo de padres que o elege provincial dos jesuítas, como titular dessa ordem, apoiou o retorno do general Perón. O único limite que Bergoglio impõe a este tema é a guerrilha. Contudo, no mais, compartilha a busca de um peronismo mais clássico, com esta ideia de sociedade organizada. É um papa que cresceu, viveu e sentiu mundos distintos dos de Macri. E, além disso, também não tinham uma empatia pessoal quando os dois estavam em Buenos Aires...
Não eram unidos nem sequer pela comum repreensão ao kirchnerismo...
Observe que, nesse momento, tampouco era Macri o homem de referência do cardeal. Em todo caso, eram Lilita Carrió e Gabriela Michetti, mas não Macri. As mensagens são tão opostas que uma visita do Papa à Argentina supõe riscos para os dois. Por que digo isto? Primeiro, as classes urbanas que votam em Cambiemos são cada vez mais secularizadas, cada vez mais críticas, e isto faz acreditar que continuam sendo católicas, mas distanciadas da Igreja. A mensagem de Bergoglio não lhes chega e põem o Papa como um segmento político identificado, no imaginário, como o peronismo.
Em seguida, vem o que chamam “povo de Deus”, que são as classes mais pobres. Aí, sim, chega a mensagem papal. Majoritariamente, são críticos ao macrismo. Vi isto, há algumas semanas, em uma igreja de Jujuy: Macri foi vaiado por duzentas pessoas e eram fiéis muito humildes que lhe diziam – com muito respeito, não estavam com tambores, nem eram kirchneristas – que se vá: “É nossa igreja”. Isso é a religiosidade popular. Aí, Bergoglio teria sido adorado e a Macri rejeitaram.
Vejo uma dicotomia nas duas partes: das classes médias urbanas refratárias ao discurso do Papa, basicamente à mensagem social e à manipulação carismática proveniente do populismo dessa mensagem, e, por outro lado, vejo também que a dialética que Bergoglio possui nas classes populares é, por sua vez, crítica às políticas sociais de Macri. Aqui, acredito que falha, por sua vez, a diplomacia, porque não há um ponto de união entre o Governo e o Vaticano para ver como resolver esta problemática.
O que você pensa de todos os que operam em nome do Papa?
Os mensageiros são um problema. Porque Francisco deixa acontecer. A Igreja sempre lidou com silêncios, com meias palavras, com gestos... então, é necessário analisar e observar. No caso de Bergoglio, nunca lançou uma palavra clara sobre a gestão de Macri. Não houve uma mensagem do Papa que dissesse concretamente algo. Não o menciona nas homilias. Tudo o que sabemos é porque Bergoglio se reúne em seu escritório com alguém, diz-lhe alguma coisa, envia um rosário para uma pessoa, bate uma foto ou escreve uma carta... E, então, a mensagem papal é assumida individualmente por cada um da maneira que deseja.
Bergoglio não irá desmentir pela rádio. É preciso entender que é um líder religioso e político. Tampouco irá ao Colóquio do IDEA [Instituto para o Desenvolvimento Empresarial da Argentina] e dizer que é necessário baixar os custos trabalhistas. Aqueles que olham o Papa com a lupa política precisam compreender que ele representa uma quantidade de fiéis que também pensam de uma maneira diferente, ainda que Bergoglio ressalte os humildes. Esse sempre foi seu estilo. Insisto: é um papa da teologia do povo. A Argentina deixa de aproveitar uma oportunidade, mostrando-se distante do Papa. Francisco é um líder global e uma boa relação com ele também pode conduzir a Argentina ao mundo. O mundo já registra um papa distante de seu país. Seria necessário ter uma política de Estado mais clara com o Vaticano, e com o Papa, para se chegar a um tipo de acordo que beneficie as duas partes.
José María Poirier, o diretor de ‘Criterio’, a revista católica por excelência, escreveu que Bergoglio está preso ideologicamente nos anos 1960. Concorda?
O Papa Francisco se apresenta como um líder antissistema. É o primeiro líder mundial do século XXI que apresenta a questão humanitária em primeiro plano. Talvez o Papa reúna ideologias sessentistas e setentistas que foram preteridas pelo poder mundial. Desde o Maio Francês, todos esses tipos de ideias foram derrotadas. Estas ideias também conduziram à violência armada. Hoje em dia, Francisco reúne uma tradição que João Paulo II já começa a observar, após a queda do Muro de Berlim, que consiste em dizer: “Como já não existe um contraponto, é necessário ter cuidado com o que faz o capitalismo com a concentração econômica e de poder”.
Então, o Papa se coloca nessa posição. Em sua crítica contra Trump, em sua defesa do meio ambiente, contra o desmatamento e o extrativismo. Sim, é certo, a partir desse ponto de vista pode parecer de outra época, mas há um líder mundial que desempenha esse papel. Alguma voz precisa falar do tráfico de pessoas, daqueles que morrem no Mediterrâneo, dos que caem nas guerras... É um papa que adverte sobre todas estas coisas e que nenhum líder mundial colocava em cena, desde 2013, nem sequer Bento XVI, que era muito mais doutrinário.
Este não é um papa que enfatiza os princípios doutrinários da Igreja, mas, sim, os princípios sociais, que são incômodos para os governos. Para todos. Não procura ser confortável no cenário de poder. E me parece que essa é sua riqueza política e seu legado.
Mas, ele acredita na democracia republicana? Porque parece ter muita discordância com a Europa, onde esse sistema foi a chave da prosperidade. Não se vê Francisco muito preocupado com republicanismo...
Ele foi ao Parlamento Europeu e fez esse mesmo discurso humanitário, esse discurso das periferias. É certo que assim como não enfatiza a doutrina, não enfatiza o republicanismo. É certo que é um líder carismático que também acredita na organização popular: o movimento de Juan Grabois (Movimento de Trabalhadores Excluídos e Confederação de Trabalhadores da Economia Popular), os povos originários. Todavia, em uma missa com os mapuches diz que não se deve entrar pela violência, mas, sim, pelo diálogo. Todas estas pessoas que quase não participam do mercado também existem. E, além disso, trata-se do “mercado” religioso do catolicismo.
Mercado religioso...
Claro, são as pessoas que já foram evangelizadas e que o Papa não quer abandonar. Nesses segmentos, Deus é muito mais poderoso que nas classes médias urbanas, para quem é mais divertido, no domingo, ir ao supermercado que ir à Igreja. Isso é o que também ocorre na Europa, que está cada vez mais secularizada, e o Papa precisa ir à Romênia ou à Croácia ou à Albânia para falar do cristianismo. Acredito que a grande batalha de Francisco, em nível geopolítico, é a China: se o Papa conseguisse a ir a Pequim, coisa que ninguém conseguiu até agora, seria uma tarefa evangelizadora de primeira grandeza. Nós o vemos com uma lupa argentina, republicana, mas não estamos vendo todo o tabuleiro do mundo que o Papa, sim, deve observar...
Falemos, então, de Grabois, o favorito de Bergoglio. Como é a relação e por que surge?
O pai de Grabois era ligado a Guarda de Ferro e a Gallego Álvarez. Era da Frente Estudantil Nacional (FEN), o segmento mais à esquerda de todos os que, depois, entraram na Guarda de Ferro. Guarda se opõe à luta armada, não é um grupo de embate como podia ser o Comando de Organização (CdO). Uma das filósofas do Papa, Amelia Podetti, é a que lhe dá a ideia da periferia, da busca do cristianismo ali, um conceito que já estava nos jesuítas no século XVI, quando eles vão justamente a China. É necessário enxergar Juan Grabois como uma espécie de padre vileiro leigo e o seguir a partir dessa perspectiva. Obviamente, sua juventude, sua organização e seu excesso verbal podem chegar a incomodar, mas Francisco disse que alguém precisa fazer algo pelos de baixo, quando o Estado não chega. Muitas vezes dizemos “república”, mas não dizemos “contenção social”.
É curioso, porque hoje muitos setores populares votam em Cambiemos, famílias humildes que querem ir progredindo...
Tampouco o Papa é Aníbal Fernández. Não se colocou como candidato. E é real que a figura de María Eugenia Vidal levantou setores populares. Então, Pro [Proposta Republicana] em vez de perder por 20 pontos em La Matanza, perdeu por 10. Embora o kirchnerismo tenha lançado dinheiro e asfalto no subúrbio bonaerense, depois seus governos foram maus, pois não diminuíram as linhas de pobreza. A esperança de uma mudança, basicamente em Vidal e também em Carrió, ajudou Macri ser presidente. Acredito que há pessoas que são da religiosidade popular e muito próxima ao Papa que também votaram em Vidal. A coisa não é tão circunscrita: “Vota em Vidal ou gosta do Papa”.
De qualquer modo, agora, parece-me que o cenário político mudou e o Governo está mais afogado, após sua vitória. Admito que Francisco também não é uma personalidade fácil. Não é um homem que sempre joga com as mesmas peças. Contudo, a Argentina é um dos países nos quais sua mensagem é menos compreendida. Muitos o consideram parte de um segmento político do passado, como podia ser o kirchnerismo. Esquecem-se disso que falamos: o Papa, durante sete anos, enfrentou o kirchnerismo. Durante as eleições de 2015, manteve Cristina a distância e com saudações frios no Paraguai e em Cuba. Esquecem-se de que, em Roma, não recebeu Daniel Scioli, depois que o então governador venceu as PASO e a província de Buenos Aires inundou. Scioli viajou especialmente para o ver e bater uma foto. Acredito que Macri precisaria ser mais habilidoso, ter mais jogo de cintura política e mais empatia pessoal para buscar algum tipo de paz com o Vaticano, porque o governo argentino não pode tomar o Papa como se fosse Moyano.
Marcelo Larraquy é historiador - pela Universidade de Buenos Aires -, professor, jornalista e escritor. Nos meios de comunicação, foi chefe da seção de pesquisadores no jornal Clarín e subeditor na revista Noticias. Ganhou o Diploma de Mérito da Fundação Konex, em 2007 e em 2017. Exerceu a docência no campo do jornalismo, na Universidade de Belgrano, na Universidade de Buenos Aires e na Universidade Di Tella. Escreveu, entre outros, os livros Argentina. Un siglo de violência política; Fuimos soldados; Primavera sangrienta; López Rega, el peronismo y la Triple A; Recen por él, e Código Francisco. E junto com Roberto Caballero, um clássico do jornalismo político: Galimberti. De Perón a Susana, de Montoneros a la CIA.
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“Francisco se apresenta como um líder antissistema”. Entrevista com Marcelo Larraquy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU