14 Agosto 2015
"Quero voltar a unir a minha voz à vossa: terra, teto e trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs. Disse-o e repito: são direitos sagrados. Vale a pena, vale a pena lutar por eles." A mensagem combativa do papa Francisco, no mês passado em sua visita à América do Sul, repercutiu profundamente em uma região onde a pobreza continua sendo a preocupação mais urgente.
O texto é de Uki Goñi, autor de "A Verdadeira Odessa: O Contrabando de Nazistas para a Argentina de Perón", publicado pelo jornal New York Times e reproduzido no portal Uol, 13-08-2015.
No Equador, cerca de um milhão de pessoas compareceram para receber o Sumo Pontífice argentino.
Na Bolívia, onde foram ditas essas palavras, Francisco realizou uma missa a céu aberto para centenas de milhares sob uma escultura gigante do Cristo Redentor.
Ele pediu ao público no Paraguai: "Peço-vos que não cedais a um modelo econômico idólatra que exige sacrificar vidas humanas no altar do dinheiro e do lucro. Na economia, na empresa, na política, vem em primeiro lugar a pessoa e o habitat onde vive".
As palavras fortes do papa contra os excessos do capitalismo podem deixar os conservadores desconfiados às vésperas da visita dele aos Estados Unidos, no mês que vem. Mas se Francisco parece para alguns um revolucionário em trajes pontifícios proveniente de um continente onde uma série de governos populistas de esquerda estiveram no poder ao longo da última década e meia, essa caracterização se equivoca de modo fundamental a respeito das tradições da Igreja Católica Romana na América do Sul, que moldaram o pensamento político do papa.
A revista "The Economist" chamou recentemente Francisco de "o papa peronista", em referência à sua conhecida simpatia por Juan Perón, que foi por três vezes presidente da Argentina. Nos anos 40 e 50, o general populista sacudiu a estrutura de classes da Argentina ao defender os oprimidos do país.
Menos conhecido é o fato de que Perón se inspirou nos líderes católicos politizados da Argentina dos anos 30. Os líderes da Igreja na época buscavam a integração da nova classe trabalhadora da Argentina por meio da promoção de reformas trabalhistas radicais. Bispos discursaram em alguns dos primeiros grandes comícios de trabalhadores do país, e Perón ganhou experiência falando em encontros dos Círculos Católicos de Operários.
A aliança de Perón com os bispos foi selada quando o regime militar, de 1943 a 1946, no qual foi vice-presidente, tornou o ensino católico obrigatório nas escolas públicas antes seculares da Argentina. O processo culminou em 1944, quando Perón condecorou uma estátua da Virgem Maria com uma faixa militar e a nomeou "general", acompanhada por uma salva de 21 tiros.
"Nem marxistas, nem capitalistas. Peronistas!" era o canto dos apoiadores de Perón. E foi ao pegar emprestado o pensamento político da Igreja que Perón pôde fundar sua "terceira via".
Hoje, a Igreja Católica na América do Sul não é ameaçada pelo marxismo, mas pela perda gradual de fiéis para o protestantismo evangélico, que oferece uma relação mais direta com Deus. Com o maior percentual dos estimados 1,2 bilhão de católicos do mundo, cerca de 28%, vivendo na América do Sul, essa é uma perda que o Vaticano não pode ignorar.
Então é natural que Francisco, que se tornou padre em uma hierarquia da igreja politicamente engajada na Argentina, adote um tom político populista para combater esse movimento. Ele fala diretamente aos pobres da região com um calor encontrado na "teologia da libertação" que inspirou os revolucionários esquerdistas da América do Sul nos anos 70.
O papa Francisco, que desaprova firmemente a resistência armada, não era inicialmente um apoiador da teologia da libertação. Mas seu pensamento evoluiu. "Se eu hoje lesse como homilia alguns dos sermões dos primeiros Padres da Igreja, dos séculos 2º e 3º, sobre como os pobres devem ser tratados, você diria que a minha homilia é de maoísta ou trotskista", ele disse em 2010, quando era arcebispo de Buenos Aires (e ainda conhecido como Jorge Mario Bergoglio).
O catalisador para a fusão da teologia da libertação dos anos 70 e o ativismo da Igreja conservadora dos anos 30 por trás da visão de mundo de Francisco pode ser traçado ao seu encontro com uma pessoa extraordinária. Por volta de 1953, como jovem aprendiz de um laboratório farmacêutico, ele conheceu Esther Ballestrino de Careaga, uma química na faixa dos 30 anos que fazia campanha pelos direitos dos trabalhadores rurais no Paraguai e que fundou o primeiro movimento das mulheres do país. "Foi ela quem me ensinou a pensar", disse Francisco à filha de Esther, Ana María, quando os dois se encontraram no mês passado durante a visita papal.
"Quando o ouço hoje falando sobre os pobres, os excluídos, sobre o direito de todos ao trabalho e a um teto sobre suas cabeças", ela diz, "eu ouço a influência de minha mãe".
Francisco e Esther permaneceram amigos durante o período militar na Argentina, de 1976 a 1983, quando milhares de opositores foram assassinados, mas cada um lidou com a ditadura de modo diferente. Ela entrou em rota de colisão com os generais. Ele teria trabalhado nos bastidores para salvar quem pudesse da carnificina. Mesmo assim, a amizade deles durou até Esther ser assassinada em 1977 pelas mãos do regime.
Francisco é criticado por não ter assumido uma posição mais pública – outros líderes da Igreja pagaram com suas vidas por denunciarem os crimes do regime. O bispo Enrique Angelelli, da província de La Rioja no norte, foi morto em 1976 por investigar o assassinato de dois padres. Mas se Francisco não fez de si mesmo um mártir, ele também não foi um dos muitos colaboradores dentro da hierarquia da Igreja. Quando teve início em abril os procedimentos para tornar Angelelli um santo, Francisco deu seu apoio.
Apesar de forjada no cadinho ardente da política da região, a perspectiva dele desaprova a natureza confrontadora de grande parte do pensamento político sul-americano – dividido entre peronistas e antiperonistas, liberais e anti-imperialistas, esquerda e direita. A mistura de pensamento e tradição de Francisco não é simplesmente um meio-termo.
A amizade com Esther tem a chave. Ele não compartilhava a ideologia dela, mas adotou os valores que considerou humanistas, universais e consistentes com o ensinamento cristão.
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Raízes políticas do papa derivam dos distintos populismos da Argentina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU