18 Outubro 2016
“Em termos esportivos, Mauricio Macri sabia que ia ao Vaticano para jogar como visitante e que o Papa era o favorito. O objetivo era jogar na defensiva e, pelo menos, arrancar um empate. É o que aparentemente conseguiu”, escreve Washington Uranga, jornalista, em artigo publicado por Página/12, 16-10-2016. A tradução é de André Langer.
O presidente Mauricio Macri qualificou de “boa” a reunião que teve no sábado passado em Roma com o Papa Francisco. Encarregou-se também de dar sua versão sobre a cordialidade do encontro privado que Bergoglio lhe concedeu, e os porta-vozes oficiais destacaram a duração do mesmo: aproximadamente uma hora. Todos dados que tentam contrastar-se com o gesto adusto de Francisco e os 22 minutos formais do encontro oficial e protocolar que ambos tiveram em fevereiro passado.
O principal propósito do governo nesta ocasião, e tendo como desculpa a canonização do padre cordobês José Gabriel Brochero (o primeiro santo que nasceu, viveu e morreu na Argentina), era apagar a imagem de desencontro que ficou instalada na sociedade depois da audiência anterior. A chancelaria preparou meticulosamente a reunião com o propósito de que Macri apresentasse ao Papa os avanços e as ações do seu governo, atendendo às questões que se sabe de antemão que estão na agenda de Bergoglio: pobreza, a “cultura do encontro”, o narcotráfico, o meio ambiente.
O plano foi seguido à risca, embora fosse preciso evitar alguns obstáculos e limar diferenças. Em princípio, o governo argentino tinha insistido em fixar o encontro para o dia 17 de outubro, porque essa data se ajustava melhor à agenda da chanceler Susana Malcorra e do próprio Macri. O Vaticano foi terminante: a única data disponível seria o sábado, 15 de outubro, tal como finalmente aconteceu. Na segunda-feira, por sua vez, Francisco se reunirá com a mesa executiva da Conferência Episcopal. O arcebispo José María Arancedo, o cardeal Mario Poli, o arcebispo Mario Cargnello e o bispo Carlos Malfa, darão então ao Papa a visão que o episcopado tem da situação na Argentina e ali o diálogo será franco, entre velhos conhecidos. Sabe-se de antemão que o tema social será prioritário nessa conversa.
O governo argentino também teria desejado que Bergoglio recebesse Macri em “sua casa”, ou seja, na residência de Santa Marta onde mora o Papa. Teria sido uma demonstração a mais de proximidade, algo que foi concedido em seu momento a Cristina Fernández de Kirchner. Bergoglio optou por uma saída intermediária: a conversa pessoal (não oficial, não protocolar), mas em um escritório do Vaticano – uma sala contígua à Aula Paulo VI, a sala em que o Papa concede suas audiências gerais.
Segundo Macri, o Papa elogiou a ministra do Desenvolvimento Social, Carolina Stanley, e a governadora da Província de Buenos Aires, María Eugenia Vidal. Conhece a ambas por sua gestão no governo da Cidade de Buenos Aires nos tempos em que Bergoglio ocupava o arcebispado da capital. E, em entrevista coletiva, o presidente assegurou que o Papa se despediu dele com um “força e em frente”, que Macri tentou apresentar como um apoio ao que fez. A tudo isto o presidente somou a foto de família com o Papa.
Do outro lado, do Vaticano, não há versões nem comentários. A Santa Sé não dá informações sobre “encontros privados” do Papa e, precisamente por tratar-se de uma conversa deste tipo, os jornalistas não tiveram acesso.
Em termos esportivos, Macri sabia que ia ao Vaticano para jogar como visitante e que o Papa era o favorito. O objetivo era jogar na defensiva e, pelo menos, arrancar um empate. É o que aparentemente conseguiu.
Mas, para isso, foi preciso deixar também alguns temas fora da agenda e não aprofundar aspectos da realidade argentina que Bergoglio conhece perfeitamente e sobre os quais tem sua própria visão, costuma ocupar-se e dar seu parecer, mesmo que não seja de forma oficial.
Uma das questões de que não se falou, e admitido por Macri, é a da eventual visita do Papa à Argentina. Bergoglio havia se antecipado a negar essa possibilidade em uma mensagem enviada ao povo argentino poucos dias atrás. Não ficou espaço nem para reiterar o convite, mas o governo também prefere que isto não aconteça, pelo menos no momento.
Se Francisco chegasse à Argentina e sendo coerente com sua pregação global, não poderia não fazer referência à pobreza, à crise existente no mundo do trabalho e, inclusive, ao modelo econômico que não concorda com os postulados de seus mais importantes documentos. Se a visita acontecesse em 2017, a isso seria preciso acrescentar o impacto que as palavras do Papa poderiam gerar em plena campanha eleitoral. O tema nem sequer foi conversado. Embora Macri depois dissesse que “ele (o Papa) sabe que todos o esperamos. Estou seguro de que quando ele vier (à Argentina) será muito importante”. E acrescentou que Bergoglio “é uma pessoa sábia e saberá quando é o momento”.
Casualmente (ou não?) na semana anterior à viagem de Macri a Roma, o reitor da Universidade Católica Argentina (UCA), o bispo Víctor Manuel Fernández, fez uma intervenção pública em que analisa a proposta do Papa sobre a “cultura do encontro”. O governo costuma utilizar esta perspectiva do Papa para assimilá-la ao seu próprio discurso sobre o “diálogo entre os argentinos”. Fernández, teólogo, homem próximo ao Papa e um dos seus principais assessores, pode ser considerado um porta-voz autorizado do pensamento de Bergoglio sobre este tema.
Sua exposição foi longa. Mas, dela se podem extrair algumas frases que dão indícios sobre como o próprio Francisco entende “a cultura do encontro”. Fernández disse que “Bergoglio sempre rejeitou as dialéticas que enfrentam” e aponta para uma “sociedade em que as diferenças possam conviver completando-se, enriquecendo-se e iluminando-se umas às outras”. Mas, acrescentou também que “não é saudável fugir dos conflitos ou ignorá-los. É preciso aceitá-los e sofrê-los até o fundo, não escondê-los”, disse o reitor da UCA. Em outro momento insistiu em que é preciso trabalhar pela paz, mas não por uma “paz superficial”, porque “uma paz que se consegue às custas do silêncio das reivindicações sociais ou evitando que tenham voz pública também não tem nenhuma utilidade”.
E em resposta às acusações dirigidas ao Papa, o bispo Fernández assinalou que “alguns chegam a dizer que esta insistência de Francisco de incluir os pobres e fracos é própria de um populista, e que por isso mesmo justifica o relaxamento e a acomodação. Nota-se claramente que não o conhecem e não o leem”, acrescentou. “O povo – disse Fernández – é o sujeito desta cultura (do encontro), não uma elite que busca uma pacificação aparente com recursos profissionais ou midiáticos. Aqui está a grande diferença entre populista e popular”, destacou. Também não faltou a referência crítica a “algumas posturas que absolutizam a liberdade de mercado como princípio fundamental da vida social”.
Se bem que o Governo possa considerar que conseguiu seu objetivo de mudar a imagem de uma relação tensa e distante que tinha ficado instalada depois de encontro de fevereiro entre Macri e Bergoglio, enquanto isso, na Argentina, seguem acontecendo coisas de que são protagonistas atores vinculados à Igreja ou que se movem com conexões muito diretas. E tudo isso tem repercussões em Roma: como origem e como consequência.
Em poucos dias, o Papa se encontrará no Vaticano com representantes de movimentos populares (Bairros a Pé, Corrente Classista e Combativa, Movimento Evita) que foram convidados a participar do Encontro Mundial de Movimentos Populares patrocinado por Francisco. Outro será o olhar que estes dirigentes levarão ao Papa, e farão saber sua visão sobre a situação social e os reclamos que têm contra o Governo da Aliança Mudemos.
Mas mesmo dentro das fileiras da Igreja já não são apenas os Padres na Opção pelos Pobres que advertem e criticam o Governo. No colóquio de IDEA, o padre jesuíta Rodrigo Zarazaga, doutor em Ciências Políticas e diretor do Centro de Investigação e Ação Social (CIAS), disse que “se vier a chuva de investimentos, há um setor que vai continuar no deserto”. E acrescentou perante uma audiência de empresários: “Não lhes falo com o coração; falo-lhes com a carteira: poderemos continuar vivendo em countries e pagando segurança, mas isso não funciona”. Em outro momento o padre dirigiu-se diretamente à ministra Stanley para assinalar que o programa “O Estado no teu bairro” bem “poderia se chamar o Estado passou por teu bairro, porque é um container que fica ali duas semanas e depois desaparece”.
Alguns porta-vozes próximos à CGT encarregaram-se de divulgar nos últimos dias que ao baixarem suas demandas os dirigentes sindicais estavam anuindo a um pedido do Papa em favor do diálogo. Fontes eclesiásticas e sindicais, no entanto, asseguram que isso não aconteceu, embora a Conferência Episcopal, por conta própria, tenha insistido na necessidade de encontrar acordos que evitem o enfrentamento social. Ao contrário, isso sim, está confirmado que foi uma intervenção direta de Francisco, através do arcebispo Arancedo, a que obrigou o ministro da Educação, Esteban Bullrich, a anuir à exigência da SADOP (professores privados) para reabrir a paritária do setor.
A hierarquia católica não oculta sua preocupação com a crise que provoca o aumento do desemprego, da inflação e a queda do poder aquisitivo dos salários. E, dada a sua estrutura nacional, a Igreja sai da visão capitalina para registrar também as consequências que isto está tendo nas Províncias.
Macri encontrou-se com o Papa e melhorou a fotografia de fevereiro. Mesmo que isto não signifique que tenha convencido Francisco sobre o modelo que pretende impor na Argentina e tampouco que a mesma sirva para fazer calar muitas das queixas que provêm dos setores eclesiásticos. Continuará.
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Encontro de Macri com o Papa. Empate fora de casa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU