Crise pandêmica no Brasil é o retrato de um país iníquo e aporofóbico. Entrevista especial com Maria Inez Padula Anderson

"O presidente e forças políticas, que atuam através de supostas práticas religiosas e fake news, promovem – de forma proativa e deliberada - desconfiança e insegurança da população em relação à vacina", lamenta a professora do Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária - DMIFC, da UERJ

Foto: Pixabay

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 22 Janeiro 2021

Enquanto alguns países já iniciaram a vacinação contra a covid-19 de forma emergencial, ainda é "difícil" fazer projeções acerca de quando e como o processo de imunização será iniciado no Brasil e se todos os brasileiros serão imunizados, diz Maria Inez Padula Anderson ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. “Todas as informações – que deviam vir de forma sistemática e organizada por parte do Ministério da Saúde – só vêm à tona por pressão judicial e/ou popular e/ou da classe científica. Agora, as polêmicas em torno do processo de elaboração da proposta, do seu conteúdo e colaboradores, revelam mais do mesmo: incertezas, falta de clareza e – segundo consta – irresponsabilidade, na medida em que a última versão não sofreu revisão ou considerações de profissionais de saúde convidados para esta tarefa", avalia, ao comentar o Plano Nacional de Vacinação.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Maria Inez lamenta a falta de "protagonismo" e a "ausência quase completa de transparência e clareza das ações do Ministério da Saúde no que tange à pandemia" e critica as ações do governo no enfrentamento da crise sanitária. "A política governamental em relação à covid-19 pode ser considerada, no mínimo, desastrosa, inclusive em relação aos processos e operações que envolvem o sistema de vacinação", avalia. Se não bastasse ter qualificado a pandemia como "gripezinha", menciona, agora que o país enfrenta uma segunda onda, com quase 200 mil brasileiros e brasileiras mortos, o presidente "alardeia que a pandemia está no 'finalzinho'".

 

De acordo com Maria Inez, "o programa de imunização começou a ser pensado tardiamente, insuficientemente e incompetentemente". Se a vacinação iniciar em fevereiro de 2021, diz, "até o final do próximo ano, existe a possibilidade de termos atingida a imunidade de rebanho – quando a vacinação cobriu mais de 60% da população, diminuindo o risco da transmissão e consequentemente de novos casos". Para Inez, a situação do país é "profundamente lamentável", considerando especialmente o histórico de atuação do Programa Nacional de Imunizações - PNI, criado em 1973.

 

Maria Inez Padula Anderson (Foto: Blog Medicina da Família)

Maria Inez Padula Anderson é graduada em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, onde leciona nos cursos de mestrado e doutorado em Saúde Coletiva e no Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária - DMIFC. Ela também leciona no curso de mestrado profissional em Atenção Primária à Saúde na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

 

A presente entrevista foi publicada, originalmente, pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 22-12-2020.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Na pandemia, o Sistema Único de Saúde - SUS se revelou de extrema importância. Mas, agora, diante do atual cenário, qual imagina ser o futuro do SUS? Ele sai fortalecido ou sai sob ameaças dessa experiência?

Maria Inez Padula Anderson - A maioria da população brasileira reconhece que o SUS tem sido fundamental na defesa da vida no atual cenário da saúde, graças à ação exemplar dos seus profissionais, a começar pelo trabalho incansável das equipes multiprofissionais nas unidades básicas de saúde. Este reconhecimento é um claro sinal de valorização que deixará o SUS mais fortalecido diante das ameaças que se vê na contingência de enfrentar. Por outro lado, o SUS público, universal e gratuito, como todas as políticas que pretendem reduzir ou minorar a enorme desigualdade social no Brasil, sofre, desde o seu nascimento, com iniciativas de desmonte, a começar pelo subfinanciamento crônico.

Neste sentido, quanto mais valorizado ele for e quanto mais sua visibilidade positiva atingir a camada da população melhor favorecida financeiramente, mais organizadas serão as políticas de desmonte e de destruição da sua imagem; mais intensa será a propaganda, apontando para uma suposta superioridade da saúde privada, dos planos de saúde (ações que, avalio, estão na base dos movimentos que atuam para a desvalorização e do insucesso do SUS).

 

 

IHU On-Line - A pandemia atingiu também as contas de hospitais particulares e planos de saúde. Em que medida isso poderá representar um recuo sobre as lógicas de ‘privatizar a saúde no Brasil’? Ou seria esse mais um capítulo para atualizar a tese da privatização?

Maria Inez Padula Anderson - Em uma situação de pandemia, especialmente uma inédita, como é o caso do coronavírus, todos os serviços de saúde necessitam passar por um reajuste e uma adaptação visando dar suporte às novas demandas criadas. No caso do coronavírus, foi necessário adaptar e redimensionar praticamente todos serviços e unidades de saúde, desde a prevenção e assistência, em todos os níveis do sistema: das unidades de Atenção Primária aos Centros de Terapia Intensiva.

Naturalmente, este processo fere a lógica de planejamento e de previsão de lucros que envolve o setor privado, hospitais e planos de saúde. E, possivelmente, deve ter havido algum impacto nos lucros, de um modo geral bastante generosos, obtidos por este setor. Mas, vale lembrar que os planos de saúde operam com 55% de todos os recursos investidos em saúde no Brasil e atendem somente a 25% da população. O SUS, que atende a 100% da população, mesmo aquelas que têm planos de saúde, através de uma gama muito mais abrangente de serviços de saúde, em unidades básicas, ambulatórios de especialidade, hospitais, centros de diagnóstico e tratamento, com um dos maiores sistemas de transplante de órgãos do mundo, com o maior sistema público de vacinação do mundo, de oferta de medicamentos de forma gratuita e, além disso, ainda realiza vigilância sanitária, epidemiológica, com controle da qualidade da água, dos alimentos, da análise e liberação de medicamentos e intervenções em saúde, utiliza 45% dos recursos disponibilizados para a saúde.

 

 

Ou seja, para a Saúde Pública, aquela onde o lucro não faz parte da lógica de funcionamento, e que atende a todas e todos, os recursos financeiros são menos da metade do total de recursos em saúde do país. O orçamento para Saúde Pública brasileira é muito inferior ao dos chamados países desenvolvidos, mas também é inferior ao de muitos países da própria América Latina. São menos de cinquenta reais por pessoa por mês; são menos de dois reais por dia. Países europeus investem quatro a cinco vezes mais em saúde pública. Ou seja, a tese de que o SUS é pouco eficiente, é equivocada tecnicamente e, em alguns aspectos, chega a ser criminosa. O SUS faz muito, com muito pouco.

Se estes argumentos não bastarem para sensibilizar e orientar a nação brasileira e, especificamente, gestores da saúde e políticos em favor do fortalecimento do SUS, com um investimento que seja compatível e adequado às suas responsabilidades, o que será?

 

 

IHU On-Line - Uma das referências do SUS é o Programa Nacional de Imunizações – PNI, que tem quase 70 anos. Em que consiste esse programa e o que faz dele uma referência mundial?

Maria Inez Padula Anderson - O Programa Nacional de Imunizações - PNI, criado em 1973, tem por objetivo a vacinação da população brasileira, de forma gratuita, e para todas as classes sociais, focando as doenças imunopreveníveis – aquelas passíveis de ser controladas, eliminadas e/ou erradicadas por vacinas. Para tanto, o PNI atua de forma coordenada e sistemática em conjunto com os serviços públicos de saúde, especialmente, da Atenção Primária à Saúde, ou por meio de equipes volantes em regiões de difícil acesso, em todo o território nacional.

Os números são impressionantes: são mais de 300 milhões de doses anuais distribuídas em vacinas, soros e imunoglobulinas. De forma gratuita, são disponibilizados pela rede pública mais de 40 produtos nesta área, incluindo 28 vacinas e 17 tipos de soro com imunoglobulinas. São 18 vacinas que fazem parte do calendário de vacinação, protegendo contra 19 doenças, muitas incapacitantes como a poliomielite, e outras que podem levar à morte, como a meningite. O calendário inclui as vacinas: BCG (previne as formas graves de tuberculose); hepatite B; penta (previne difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e infecções causadas pelo vírus da gripe); poliomielite; pneumocócica (previne a pneumonia, otite, meningite e outras doenças causadas pelo pneumococo); rotavírus (previne diarreia por rotavírus); meningocócica C (previne meningite causada pela neisseria meningitidis); febre amarela; tríplice viral (previne sarampo, caxumba e rubéola); DTP (previne a difteria, tétano e coqueluche); hepatite A; tetra viral (previne sarampo, rubéola, caxumba e varicela/catapora); varicela atenuada (previne varicela/catapora).

Há, ainda, doze vacinas especiais para grupos em condições clínicas específicas, como pessoas com o vírus HIV e outras, disponíveis nos Centros de Referência para Imunobiológicos Especiais - CRIE. O Calendário Nacional de Vacinação contempla crianças, adolescentes, adultos, idosos, gestantes e indígenas. Através da sua história e atuação, o PNI tem como resultados a erradicação da varíola e da poliomielite, no país, além da redução dos casos e mortes de todas as outras doenças acima citadas.

O PNI deve ser considerado, assim como o próprio SUS, um patrimônio da população brasileira. Por tudo isso, o PNI tem reconhecimento internacional e faz do Brasil um exemplo a ser seguido no mundo.

 

 

IHU On-Line - Como a senhora tem acompanhado as discussões, especialmente dentro de instâncias do governo, acerca da construção de um programa de imunização que operacionalize a aplicação das vacinas contra a covid-19? O que isso tem revelado sobre como o Brasil tem vivido a pandemia?

Maria Inez Padula Anderson - A política governamental em relação à covid-19 pode ser considerada, no mínimo, desastrosa, inclusive em relação aos processos e operações que envolvem o sistema de vacinação. Desde o princípio, o governo desacredita a pandemia. O próprio presidente da República, de forma irresponsável, a caracterizou como “gripezinha”, além de promover o uso de medicamentos sem comprovação científica, realizar encontros com aglomeração e desvalorizar o uso de máscaras e isolamento social. Agora, em plena segunda onda, próximo a 200 mil brasileiros e brasileiras mortos, alardeia que a pandemia está no “finalzinho”. Naturalmente, essa postura afeta e se reflete nas ações do Ministério da Saúde, que seriam fundamentais na coordenação de todo o processo de combate à pandemia e proteção da população. Ficamos mais de dois meses sem ministro da Saúde em plena pandemia e, anteriormente, o ministro que buscava coordenar, de forma mais racional e cientificamente embasada, a atuação contra a pandemia, foi demitido em abril de 2020, quando a situação já dava mostras de muita gravidade.

O programa de imunização começou a ser pensado tardiamente, insuficientemente e incompetentemente, somente após muita pressão de grupos científicos, mas, especialmente, após iniciativas estaduais de vacinação, caracterizando um movimento mais afinado a interesses políticos do que humanitários. Ou seja, estamos em uma situação desfavorável a nível internacional, quando podíamos estar à frente, com o exemplo da experiência de sucesso e histórico do PNI. Agora, para agravar ainda mais a situação, o presidente e forças políticas, que atuam através de supostas práticas religiosas e fake news, promovem – de forma proativa e deliberada – desconfiança e insegurança da população em relação à vacina. Retrato de um Brasil golpista, necrófito, negacionista, iníquo e aporofóbico, que temos que superar, urgentemente.

 

 

IHU On-Line - Qual a sua avaliação sobre a proposta de programa de vacinação levada pelo Ministério da Saúde ao Supremo Tribunal Federal – STF? E, aliás, o que representa essa proposta ter vindo a público apenas pelas vias judiciais? Essa proposta levada ao STF ainda está envolta em polêmicas. Uma delas é a de que os técnicos que auxiliaram na construção do documento não tiveram acesso a uma versão final. O que isso revela sobre a visão desse governo acerca da gestão da saúde pública e universal?

Maria Inez Padula Anderson - Muito da resposta a estas duas perguntas está colocada no que respondi acima e anteriormente. A via judicial se impôs pela ausência quase completa de transparência e clareza das ações do Ministério da Saúde no que tange à pandemia. Todas as informações – que deviam vir de forma sistemática e organizada por parte do Ministério da Saúde – só vêm à tona por pressão judicial e/ou popular e/ou da classe científica. Agora, as polêmicas em torno do processo de elaboração da proposta, do seu conteúdo e colaboradores, revelam mais do mesmo: incertezas, falta de clareza e – segundo consta – irresponsabilidade, na medida em que a última versão não sofreu revisão ou considerações de profissionais de saúde convidados para esta tarefa.

Você pergunta o que isso revela sobre a visão desse governo acerca da gestão da saúde pública e universal. Penso que isso revela uma visão de mundo desse governo – não só acerca da gestão pública: uma visão sobre o que é realidade, sobre o que é a ciência e sobre o significado de respeito aos processos de construção coletiva. Também, revela incompetência técnica.

 

IHU On-Line - No Brasil, dada a atual conjuntura, teremos vacinas para todos? E em quanto tempo?

Maria Inez Padula Anderson - No atual contexto, sem o protagonismo do Ministério da Saúde, com atraso e retardo no início das ações de forma organizada junto aos estados e municípios, é difícil responder a esta pergunta com precisão. Tudo o que podemos e viermos a conseguir de positivo, só poderá ser através da atuação, mais uma vez, do SUS, o único que conseguirá desenvolver ações de forma coordenada em todos os níveis de governo, possibilitando acesso universal, a todos e todas, às vacinas.

Aparentemente, ao longo de 2021, iniciando em fevereiro, podemos conseguir ter um plano de vacinação e executar as operações correspondentes, começando com os grupos mais vulneráveis (como deve ser) e, processualmente, ao restante da população. Avalia-se que, até o final do próximo ano, existe a possibilidade de termos atingido a imunidade de rebanho – quando a vacinação cobriu mais de 60% da população, diminuindo o risco da transmissão e consequentemente de novos casos. A situação atual é profundamente lamentável, pois o Brasil, através de seus laboratórios públicos e recursos tecnológicos, poderia e deveria estar produzindo vacinas em escala para todo o Brasil e para apoiar países de economia mais pobre.

 

 

IHU On-Line - A corrida mundial pela vacina contra a covid-19 tem se configurado como uma nova geopolítica. Como a senhora analisa esse cenário globalmente? Quais os riscos de a vacina ser algo apenas para países ricos e intermediários, como o Brasil?

Maria Inez Padula Anderson - O mundo é desigual e, na grande maioria dos países, a economia é baseada em princípios capitalistas, que permitem a manutenção desta desigualdade (e, lucram com ela), uma vez que colocam o dinheiro e a economia fria no centro das políticas e da gestão. Lucro e benefícios para quem pode pagar, e para quem paga mais, costumam ser a tônica. Assim, não diria que a corrida mundial contra a covid-19 é uma nova geopolítica. Penso que ela a coloca em evidência, mais uma vez e, neste momento, de forma trágica. Talvez até, neste contexto, esteja havendo iniciativas vinculadas à Organização Mundial da Saúde, à Organização Pan-Americana da Saúde, com a promessa de participação de países como Canadá, que atuou e tem potencial para vacinar cinco vezes a sua população, e Cuba, que está desenvolvendo sua vacina no sentido de apoio, com venda ou distribuição gratuita a países de economia mais pobre.

Podemos aprender muito com esta pandemia: sobre a humanidade, sobre os políticos, sobre os gestores, sobre os sistemas, sobre os valores da sociedade. Para mim, como médica, ela reafirma que saúde não é mercadoria, não pode ser um bem de consumo, pois saúde não se vende e não se compra. No Brasil, o direito à saúde está na nossa constituição, assim como o dever do Estado em prover suas condições. Precisamos mudar. Não podemos continuar neste processo de desvalorização da saúde pública. As pessoas, de todas as classes sociais, precisam entender que sem a saúde pública, sem um SUS forte, entraremos, cada vez mais, em um processo autodestrutivo para todos, para o país e para a economia.

 

 

IHU On-Line - Vários especialistas apontavam, antes da pandemia, uma série de ações de ataque ao SUS por parte do governo Bolsonaro. Mas, nesses episódios das vacinas, em que medida podemos afirmar que também o Programa Nacional de Imunizações está sendo desvertebrado?

Maria Inez Padula Anderson - O desmonte do SUS, naturalmente, afeta todos os seus serviços, inclusive o PNI. A política do atual governo reforça a iniciada em 2016, a partir do golpe de estado. Esta orientação, para a área da saúde, visa o desmonte do SUS como política pública. Para tanto uma medida de impacto foi tomada neste sentido através da Emenda Constitucional 95, também conhecida como PEC da morte, que congela recursos da saúde e da educação para a população brasileira, por 20 anos. Já registramos aumento das taxas de mortalidade infantil e piora de vários indicadores de saúde, naturalmente, afetando os mais pobres por causa desta brutal medida.

Ricardo Barros, ministro do governo Temer, que teve sua vida política financiada pelos planos de saúde, declarou: “O SUS não cabe no orçamento”. Vale lembrar que, desde o início da sua existência, o SUS é subfinanciado. Agora, temos a ameaça de corte da ordem de 40 bilhões de reais no orçamento do SUS para 2021. É triste. Mas, acima de tudo, é revoltante e vergonhoso ter políticos e gestores públicos de saúde, que deveriam defender e cuidar da saúde da população brasileira, atuando de forma praticamente lobista, voltados para os interesses privados e seus próprios interesses.

 

 

IHU On-Line - A senhora é médica de família e doutora em Saúde Coletiva. Como avalia, para além da situação de pandemia, a realidade dos programas e estratégias de saúde da família no Brasil hoje?

Maria Inez Padula Anderson - A Estratégia Saúde da Família - ESF tem recebido justo reconhecimento nacional e internacional por suas contribuições tanto para a melhoria dos indicadores de saúde – a exemplo da redução das taxas de mortalidade infantil – quanto da organização do sistema de saúde. Para tanto, as equipes multiprofissionais da Estratégia focalizam de modo integrado as necessidades de saúde de uma população específica, desenvolvendo ações abrangentes que incluem as de promoção, proteção e recuperação da saúde das pessoas, suas famílias e respectivas comunidades.

Apesar destas evidências de sucesso, o custo-efetividade vem, desde 2019, sob a batuta do Ministério da Saúde à época, sofrendo um desmonte progressivo da ESF, a partir da promoção de outras formas de organização e, mais gravemente, outra lógica de concepção de assistência à saúde – passando para um movimento mais pontual, centrado na doença e não nas pessoas. Ou seja, uma concepção mais atrasada e antiquada de atuação sobre o processo saúde-adoecimento.

Além disso, há uma nova forma de financiamento da Atenção Primária que se contrapõe à equidade alcançada pela anterior. Esta nova lógica, que perpassa modelos e formas de financiamento, é mais palatável aos grupos interessados na privatização da Atenção Primária, área mais abrangente de serviços de saúde e que, até o momento, é preponderantemente pública. Há poucas semanas, o governo havia editado uma medida que dava início formal ao processo de privatização. A população reagiu, de modo intenso, através de manifestações na mídia. A repercussão fez o governo voltar atrás, pelo menos provisoriamente, mas a ameaça é concreta.

 

 

IHU On-Line - Qual foi o papel da atenção básica na pandemia e como dimensionar esse papel daqui por diante?

Maria Inez Padula Anderson - Com base no modelo de atuação Estratégia Saúde da Família, como expresso anteriormente, com ações abrangentes, cobrindo ações de prevenção de adoecimentos, educação e promoção e assistência e reabilitação em saúde, com capacidade resolutiva para mais de 80% dos problemas de saúde, podemos afirmar que o papel da Atenção Primária foi fundamental para evitar uma situação ainda mais trágica.

Apesar do desmonte progressivo, podemos afirmar que, de um modo geral, as equipes da ESF, com os agentes comunitários de saúde, foram as principais responsáveis pelo primeiro atendimento como também pelo acompanhamento das pessoas com sintomas clínicos, ao lado do desenvolvimento de ações educativas em relação ao afastamento social e demais cuidados individuais necessários em cada caso. Além disso, desempenharam papel fundamental no campo da vigilância sanitária e demais medidas de saúde pública para prevenir a disseminação da doença e, por fim, estimular a comunidade a aderir às medidas de proteção em benefício de todos.

Por tudo isso, é fundamental cuidar, ampliar e fortalecer especialmente as equipes de saúde da família, com os Núcleos de Apoio à Saúde da Família, pela sua capacidade resolutiva e trabalho em equipe multiprofissional. É preciso prover infraestrutura físico-funcional adequada, incluindo mais pessoal – muitos afastados e adoecidos – por causa da pandemia. São mais de 46 mil equipes já existentes e espalhadas em todo território nacional – com força de cobertura atual para mais de 180 milhões de brasileiras e brasileiros.

 

 

IHU On-Line - Quais foram os maiores avanços em termos de saúde pública e universal no Brasil nos últimos anos? E quais os maiores retrocessos? Que caminhos podemos construir para superar esses retrocessos e avançarmos ainda mais?

Maria Inez Padula Anderson - Em termos de avanço, podemos citar: melhoria do acesso aos serviços de saúde, desde os mais simples aos mais sofisticados. Todo ser humano, em solo brasileiro, tem direito e pode acessar qualquer nível do sistema e qualquer serviço público de saúde existente em território nacional, sem dispender nenhum recurso financeiro.

A equidade impressa nesta lógica, aliada aos avanços no campo da prevenção de doenças transmissíveis, universalização do tratamento da Aids, transplantes de órgãos, dispensação de medicamentos de alto custo, vigilância sanitária e epidemiológica, representam um avanço em termos de sistemas universais de saúde, não encontrando equivalência em qualquer outro país do mundo.

Por último, desejo destacar a implantação e desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde de qualidade, através da Estratégia Saúde da Família, elemento essencial para dar concretude ao conceito de universalidade e equidade que todo sistema de saúde deve buscar.

Atualmente estamos sob o comando de um governo e de uma lógica ultraliberal, que ameaça de forma mais contundente o SUS e todos os avanços alcançados até agora. Os caminhos para superar os retrocessos e avançarmos ainda mais incluem a necessidade de a população brasileira assumir as rédeas do seu destino como nação e saber do seu potencial de construir um mundo melhor, através dos bons exemplos que temos no campo da saúde, especificamente do SUS. Neste sentido, a sociedade organizada, as instituições de saúde e educação, a população brasileira, têm que conhecer mais e eleger melhor, cobrar de forma mais efetiva dos políticos e gestores que defendam a saúde da população brasileira. Para isso precisamos do SUS. Sem o SUS é a barbárie, como assinalou Drauzio Varella.

O SUS é mais do que um patrimônio da população brasileira. É um patrimônio da humanidade. Precisamos, todas e todos, cuidar dele. Ele cuida de todas e todos nós. O Brasil precisa do SUS.

 

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