17 Dezembro 2020
Cobrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o plano nacional de vacinação contra a covid-19 apresentado pelo governo de Jair Bolsonaro nesta quarta-feira (16/12) deixa lacunas. Embora faça referência a diversas opções de vacinas, o documento não é claro sobre possíveis acordos com o Instituto Butantan, que vai produzir a vacina chinesa Coronavac, e a partir de quando será implantado.
Para a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a emergência não está sendo enfrentada como deveria no Brasil. A falta de um comando central desde o início da pandemia faz com que o combate ainda seja ineficiente, avalia a sanitarista Gulnar Azevedo e Silva, presidente da Abrasco, em entrevista à DW Brasil.
No último sábado, uma versão do plano de vacinação entregue pelo ministério ao STF chegou a citar pesquisadores indicados pela Abrasco como autores do documento. Os cientistas, no entanto, se manifestaram dizendo que não haviam sido consultados e que não tiveram acesso ao plano de então. Depois dessa manifestação, a nova versão apresentada pelo governo retirou os nomes e reviu alguns pontos criticados pela associação.
Até essa quarta-feira, a pandemia já tinha custado a vida de mais de 183 mil brasileiros.
Gulnar Azevedo e Silva concedeu entrevista à Nádia Pontes, publicada por Deutsche Welle, 16-12-2020.
Vocês vieram a público dizer que não participaram efetivamente da elaboração do plano nacional de vacinação contra covid-19 do governo federal, como dizia o documento do Ministério da Saúde apresentado ao Supremo Tribunal Federal. O que de fato aconteceu?
Nós tivemos conhecimento de que estava sendo montada uma câmara técnica no Ministério da Saúde. Não era no mesmo molde do Programa Nacional de Imunização (PNI), que já tem 47 anos, que tinha um conselho formado de pessoas de áreas de pesquisa, acadêmicos, profissionais muito experientes em vacinação. Esse conselho do PNI foi extinto por Bolsonaro quando ele assumiu o governo. O PNI ficou sem alma, sem orientação, porque cada vacina que o Brasil incorporava era analisado pelo conselho, que fazia estudos e orientava, inclusive sobre o custo e efetividade.
Agora, com a vacinação na pandemia, esse governo criou uma câmara técnica por pressão do Supremo Tribunal Federal, que pedia que o governo apresentasse um plano.
Entramos em contato com o governo enquanto entidade de saúde coletiva pra entender. Ouvimos que poderíamos indicar pessoas pra participar, então fizemos dez grupos separados. Indicamos 14 nomes com muita experiência em doença transmissível, em vacina. Os grupos eram assessores, mas poderiam ajudar na orientação do plano.
Alguns grupos se reuniram, outros, não. Quando os colegas indicados viram que o plano foi finalizado e entregue ao STF, eles acharam muito estranho, pois não viram o plano final.
E o que é pior é que o documento saiu com o nome deles. Então eles reclamam que não aprovaram o plano, que não concordam com tudo, que há omissões, que é vago, que não se trata de um plano efetivo. Os colegas ficaram muito desconfortáveis porque o nome deles aparece como elaboradores no documento e, na realidade, isso não aconteceu.
Quem elaborou foi o grupo do ministério, não sei com qual orientação do ministro. Os pesquisadores, nossos colegas, se sentiram usados.
Nesta quarta-feira, o governo federal apresentou publicamente o plano nacional aparentemente reformulado. O mudou em relação ao documento que foi entregue no último sábado ao STF?
O plano apresentado hoje é um pouco melhorado em relação ao que foi enviado ao STF. Em primeiro lugar, o ministério tirou o nome dos pesquisadores que estavam como elaboradores. Creio que a nossa pressão teve algum efeito.
Em geral, está um pouco melhor em relação aos grupos de risco. Algumas das sugestões que nós tínhamos considerado na nota que enviamos ao STF aparecem, como os quilombolas, comunidades ribeirinhas. Os indígenas já estavam.
O plano inicial trazia os trabalhadores do sistema prisional no grupo de risco, mas não os presidiários. Agora, esses foram incluídos. Entrou também as pessoas com deficiência. Ou seja, melhorou. Por outro lado, não está claro quais grupos serão vacinados na primeira e segunda fases.
O plano atual traz uma campanha de comunicação. Mas o texto coloca a questão de receber a vacina muito para o indivíduo. Não fica claro se será obrigatório, se as pessoas vão poder escolher.
O plano anterior só fazia menção às vacinas da AstraZeneca, ao consórcio da Organização Mundial da Saúde e Pfizer-Biontech. Na avaliação de vocês, a referência às outras opções, como a Coronavac, está clara?
Existe a referência às demais vacinas, inclusiva a do Butantan (Coronavac), mas não foi colocado de forma clara que o ministério quer fazer um acordo, de que vai assinar um acordo, e quantas doses seriam caso os acordos fossem assinados. Ainda está vago.
O acordo com o Butantan poderia estar mais adiantado, até porque o instituto já ofereceu e disse ter capacidade de fornecer para o governo federal.
O plano também não faz menção à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), à regulação, embora essa agência tenha dito que poderia trabalhar para liberar vacinas emergências em dez dias.
A manifestação contrária que fizeram e o fato de terem recorrido ao STF parece ter surtido efeito?
Sim, alguns pontos foram considerados.
O plano entregue ao STF não falava especificamente em todas as vacinas, e a gente vai precisar de todas as vacinas disponíveis para poder cobrir a população toda.
Aquele plano que não era um plano. Não continha todas as etapas, desde a produção da vacina até o monitoramento de quem foi vacinado. Não existia explicação sobre a rede de frio, que é como se mantém as vacinas na temperatura adequada. O tempo todo é preciso fazer o controle da temperatura, e quem faz isso é a vigilância sanitária. O controle não é só sobre a validade da vacina, mas também sobre o armazenado na temperatura exigida.
A rede de frio tem que ter desde quando se produz até chegar na ponta, quando chega na geladeira da Unidade Básica de Saúde. É um ponto importantíssimo. Se faltar eletricidade, por exemplo, a vacina pode perder qualidade.
No Programa Nacional de Imunização, esse aspecto era super rígido, super controlado, todo cheio de orientação. O plano tinha várias e graves omissões.
O que ainda precisa ser melhorado, na visão da Abrasco?
Falta acertar melhor com os estados como vai se dar a compra das vacinas, isso está vago.
Ainda não se sabe também quando começa a vacinação. Quando uma determinada vacina for aprovada, em quanto tempo vai começar o programa de imunização? Não sabemos.
Com base na experiência que vocês têm em relação ao Plano Nacional de Imunização do SUS, que já tem mais quatro décadas, será possível implantar esse planejamento apresentado de vacinação contra a covid-19?
A comparação é um pouco difícil porque a escala de vacinação é muito diferente. Nunca se vacinou a população inteira. Até então, a vacina ocorre por grupos (idosos, adultos crianças), em locais específicos de focos de doenças, como a febre amarela…
No entanto, essas lacunas já poderiam ser esclarecidas no plano atual, assim como a relação com estados e municípios. O desafio maior é vacinar a população toda, a partir dos 18 anos. Crianças ainda não foram testadas.
O Brasil parece atrasado nesse enfrentamento da pandemia?
O Brasil está atrasado. Na questão da vacina, o país poderia já estar se preparando para a questão dos acordos, para entender que a gente precisa de mais vacinas, e não só de uma farmacêutica.
Correr atrás agora não dá. A Pfizer já disse que não tem condições de produzir agora milhões de doses para o Brasil.
A gente está chamando a atenção desde maio que não existe um plano geral de enfrentamento da pandemia. Esse é um grande problema. Não existe um plano do Ministério da Saúde que diga quais são as medidas de saúde pública a serem seguidas: o que tem que ser feito, qual é a ajuda que eles estão dando para estados e municípios. Isso está fazendo com que cada um tente resolver seu problema de forma isolada. A pandemia não está só em alguns lugares, está no Brasil inteiro. Então precisa de muita articulação.
Essa falta de articulação entre estados e municípios e de apoio do governo federal está fazendo com que o nosso enfrentamento seja totalmente ineficiente.
No dia 3 de junho nós entregamos ao ministério e ao Congresso um plano nacional de enfrentamento com 70 recomendações. A Abrasco liderou esse processo, tivemos a participação de 14 entidades da saúde, do Conselho Nacional de Saúde. Não houve resposta por parte das autoridades executivas. Muitos parlamentares entraram com muitas medidas e ações, forçando para que algumas coisas fossem aprovadas.
Essa ausência, esse vácuo, faz com que a gente tenha todos esses problemas. E o maior de todos eles é o presidente da República minimizar, fazer pouco da doença, não passar uma comunicação correta de campanha.
Esse atual recrudescimento da primeira onda de covid-19 que estamos vendo é por que a população está achando que está tudo bem, que pode aglomerar, que pode sair porque o comercio está liberado.
Para enfrentar uma epidemia desse tipo, tem que contar com pessoas experientes, com pesquisadores, com o controle social. O Sistema Único de Saúde tem controle social, que é o Conselho Nacional de Saúde. Nada do que foi feito passou por controle social. Esse plano que o governo apresentou inclusive.
Se estamos vivendo um recrudescimento da primeira onda, ainda teremos uma segunda?
A gente espera que, até lá, a gente consiga ter vacina e que a população entenda que não dá pra ter Natal e Ano Novo como antes. Não pode haver aglomeração até que a situação esteja mais controlada.
Mas, para a população entender, é preciso ter medidas de fiscalização e um comando único, uma comunicação clara da situação emergencial que a gente está vivendo.
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“Brasil continua atrasado no enfrentamento da pandemia”. Entrevista com Gulnar Azevedo e Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU