Religiosa aponta falta de informação sobre contaminações nos presídios, enquanto detentos e agentes penitenciários adoecem. Assim, pandemia tem tornado o cárcere mais fechado do que nunca.
As cadeias contemporâneas têm se constituído como verdadeiros calabouços. Superlotadas, fétidas e sem a menor condição de higiene na maioria dos casos, transformam-se facilmente em fértil terreno para a propagação de doenças, convertendo a detenção em praticamente sentença de morte. E, em plena pandemia de covid-19, os riscos dessas sentenças são ainda maiores. “Não é possível fazer isolamento dentro das prisões, pois elas estão superlotadas”, destaca Petra Silvia Pfaller, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária. Ela ainda questiona: “Como um preso vai ficar a dois metros de distância do outro em uma cela onde não há espaço nem para deitar e dormir? Como os presos vão se higienizar se há um racionamento de água constante em muitas unidades? Como eles vão ter imunidade, se a comida que recebem é azeda?”.
Se diante de uma pandemia de proporções globais a informação é a principal arma na contenção das ondas de contágio, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Petra revela que pouco se sabe sobre a realidade dos presídios e há dificuldades de fazer com que as informações e as medidas sanitárias cheguem até esses espaços. “A pandemia fez com que o cárcere, que já é extremamente fechado à sociedade, se fechasse ainda mais. Os familiares e organizações como a Pastoral também têm a função de fiscalizar a situação nos presídios e denunciar eventuais violações de direitos. Se não podemos entrar, essas violações irão ocorrer com mais frequência do que já ocorrem normalmente”, aponta.
Ainda hoje, não se tem ao certo um número total de presos e agentes penitenciários contaminados ou com casos graves da doença em todo o Brasil. Há relatos de problemas em Brasília e em Manaus, mas Petra ainda lembra que são informações pouco precisas. “Essa mentalidade de que ‘bandido bom é bandido morto’ sempre foi muito presente na sociedade. A vida de quem está preso é responsabilidade do Estado, e como quem acredita nas palavras e ensinamentos de Cristo, devemos respeitar a vida, e não propagar o ódio. Não é porque alguém está preso que deve ser condenado à morte”, defende.
Segundo ela, é preciso seguir as orientações do próprio Conselho Nacional de Justiça e desencarcerar presos que não deveriam mais estar na cadeia ou que não representam perigo à sociedade. Isso porque “uma epidemia do coronavírus dentro das prisões seria um massacre, uma pena de morte legalizada”, matando quem não deveria mais estar lá, quem não foi julgado, servidores que trabalham lá, e mesmo as pessoas que precisam de reclusão.
Petra Silvia Pfaller (Foto: Arquivo Pessoal)
Petra Silvia Pfaller é coordenadora nacional da Pastoral Carcerária. Religiosa, integra a congregação das Irmãs Missionárias de Cristo; é alemã, e está no Brasil desde 1991. Formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC-GO, possui especialização em Direitos Humanos pela PUC-GO e em Direito Penal e Processo Penal pela mesma instituição.
IHU On-Line – A Pastoral Carcerária Nacional aplicou um questionário com o objetivo de obter mais informações sobre a situação carcerária no país durante a pandemia de covid-19. O que os dados desse levantamento revelaram?
Petra Silvia Pfaller – A Pastoral Carcerária lançou um questionário online no dia 03 de abril, e em apenas três dias, obtivemos 1.213 respostas de todos os estados do país. Dentre as pessoas que responderam, estão familiares, agentes da Pastoral, agentes penitenciários, técnicos do sistema prisional, advogados e juízes, defensores públicos e membros de organizações de Direitos Humanos.
Os dados confirmaram que as visitas às prisões estão de fato proibidas em todo o país; que a entrada de alimentos e materiais de higiene enviados por familiares e agentes da Pastoral não estão entrando em grande parte das prisões, e que há uma série de casos suspeitos de presos infectados pelo coronavírus no cárcere, mas a falta de informações fornecidas pelos órgãos oficiais torna a identificação real destes casos difícil – lembrando que o questionário foi aplicado quando ainda não havia sido oficialmente confirmado nenhum caso de coronavírus dentro das prisões. Desde então, foram confirmados casos em diversos Estados, portanto suspeitamos que a subnotificação dos casos continua.
IHU On-Line – Ainda sobre esse levantamento, o que mais a impressionou nos relatos?
Petra Silvia Pfaller – O que mais impressionou foi a quantidade de pessoas que não sabia informar se havia casos ou suspeitas de presos infectados nas prisões. 621 pessoas (51,5%) não sabiam responder se há ou não suspeitas, e 736, ou 61,2%, não sabiam dizer se havia casos confirmados. Isso revela a grande falta de transparência das direções das unidades prisionais e secretarias de segurança dos estados, deixando familiares e organizações de direitos humanos no escuro em relação a que medidas estão sendo tomadas para combater de fato a pandemia.
Até a primeira confirmação oficial da existência de um preso com o vírus no cárcere, o próprio ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, diminuiu a gravidade da possibilidade de contágio dentro das prisões, afirmando que se os presos ficassem isolados nas prisões não seriam contaminados e falando que está tudo sob controle.
IHU On-Line – O isolamento de detentos em penitenciárias, sem a visita de advogados e familiares, pode se converter em maior risco aos apenados e aumento de violações de direitos humanos? Por quê?
Petra Silvia Pfaller – Sim. A pandemia fez com que o cárcere, que já é extremamente fechado à sociedade, se fechasse ainda mais. Os familiares e organizações como a Pastoral também têm a função de fiscalizar a situação nos presídios e denunciar eventuais violações de direitos. Se não podemos entrar, essas violações irão ocorrer com mais frequência do que já ocorrem normalmente.
No questionário, recebemos uma série de relatos dizendo que a tortura continua, e que o coronavírus vem sendo usado como um instrumento dessa tortura.
São relatos como este: “duas pessoas com suspeita [de contrair covid-19] e uma morte. Estão deixando os com suspeita junto com os outros, e já ouvi falar que é ‘pra deixar morrer’. Estão todos sem água pra beber, tomar banho ou lavar mãos, não têm sabonetes também”.
Outro relato também dizia que se um preso falasse ao telefone para o familiar como a situação realmente está nas prisões, a ligação caía.
IHU On-Line – Quais as regiões, estados ou cidades, em que a situação é mais preocupante e requer mais atenção? Por quê?
Petra Silvia Pfaller – É difícil dizer, porque, como falamos anteriormente, a falta de transparência e informações é muito grande. Pelas informações dos agentes da Pastoral Carcerária, tudo indica que hoje no complexo prisional em Brasília a situação está mais grave, com uma grande quantidade de presos infectados, como também vários agentes penitenciários.
Recebemos uma denúncia do Amazonas de que em uma prisão, mais de 300 presos apresentavam sintomas similares aos da covid-19, e que eles não estavam sendo tratados. A enfermaria só dava um remédio para a tosse e dizia que não era nada.
IHU On-Line – Como a senhora analisa as medidas que vêm sendo adotadas nas penitenciárias pelas autoridades?
Petra Silvia Pfaller – As medidas são insuficientes. Prova disso é que, como a Pastoral vem alertando desde o início desta pandemia, presos foram infectados.
Não é possível fazer isolamento dentro das prisões, pois elas estão superlotadas. Como um preso vai ficar a dois metros de distância do outro em uma cela onde não há espaço nem para deitar e dormir? Como os presos vão se higienizar se há um racionamento de água constante em muitas unidades? Como eles vão ter imunidade, se a comida que recebem é azeda?
Ihu On-Line – Quais os maiores desafios para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus no sistema carcerário?
Petra Silvia Pfaller – As prisões são máquinas de morte e torturas. Não é possível falar do enfrentamento desta pandemia dentro do cárcere, pois as pessoas que estão presas são consideradas como descartáveis pela sociedade. A única solução que a Pastoral Carcerária enxerga para de fato impedir que presos e presas sejam contaminados pelo coronavírus é o desencarceramento. Assim como outros países têm feito, como Estados Unidos, Irã, Itália, Espanha, França, só para mencionar alguns.
Sem dúvida é necessário e urgente que se tire pessoas das prisões e se diminua a quantidade de pessoas que são presas. O próprio Conselho Nacional de Justiça - CNJ também já fez esta recomendação. E, como já foi mencionada a falta de informações e transparência, o que acontece nos presídios é muito preocupante.
Conselho Nacional de Justiça emite recomendação sobre Covid-19 aos tribunais e magistrados
IHU On-Line – A saúde dentro da cadeia sempre foi um problema. Além da covid-19, quais os maiores problemas de saúde no universo prisional? E como enfrentá-los?
Petra Silvia Pfaller – A população prisional se encontra em uma situação de muita vulnerabilidade. A incidência de tuberculose nas prisões é 30 vezes mais alta do que na sociedade no geral. No início do ano, em Roraima, surgiu uma denúncia de que presos tinham uma doença de pele que “os comia vivos”, que depois se descobriu ser uma evolução da sarna.
As mulheres presas, em especial, sofrem muito com a questão de saúde: as prisões não têm um atendimento especializado para essa população, com suas necessidades específicas. Mulheres grávidas, por exemplo, não recebem qualquer tipo de acompanhamento. Nós temos notícias de que hoje ainda há lactantes e mães com seus bebês presas, por exemplo, em Minas Gerais.
A única forma de enfrentar a questão da saúde é enfrentando o cárcere e seu funcionamento torturante.
IHU On-Line – De que forma a senhora responde a quem diz coisas como: ‘esse vírus na cadeia não é problema meu’ ou ‘deixa que os presos peguem essa doença e morram’?
Petra Silvia Pfaller – Essa mentalidade de que “bandido bom é bandido morto” sempre foi muito presente na sociedade. A vida de quem está preso é responsabilidade do Estado, e como quem acredita nas palavras e ensinamentos de Cristo, devemos respeitar a vida, e não propagar o ódio. Não é porque alguém está preso que deve ser condenado à morte, e uma epidemia do coronavírus dentro das prisões seria um massacre, uma pena de morte legalizada.
IHU On-Line – Como a Pastoral Carcerária vem atuando neste tempo de pandemia?
Petra Silvia Pfaller – A Pastoral Carcerária funciona em nível estadual e diocesano por meio dos seus agentes, que são voluntários. Nesta pandemia, nossa atuação de campo está muito restrita, pois recomendamos aos nossos agentes que fiquem em casa. Mesmo assim, nossos agentes têm mantido contato com familiares e trabalhado para arrecadar produtos de higiene, alimentos, máscaras e outras doações que possam ser entregues aos presídios.
E a Pastoral Carcerária Nacional tem recebido e encaminhado denúncias aos órgãos competentes, relacionadas ou não à pandemia, e buscado informações sobre a situação no cárcere [denúncias podem ser feitas através do site da Pastoral Carcerária (CNBB), pelo telefone +55 (11) 3101-9419 o pelo e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.].
IHU On-Line – Na última sexta-feira, dia 24/04, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, deixou a pasta por divergências com o presidente da República. No que diz respeito ao sistema carcerário, como avalia a gestão de Sergio Moro? E, com a saída do ministro, como projeta as políticas do universo do sistema prisional do atual governo?
Petra Silvia Pfaller – A principal proposta de Moro foi o “pacote anticrime”. As medidas desse pacote em nada vão resolver a questão da segurança no Brasil. Pelo contrário, quanto mais se encarcera, mais a violência aumenta. E, nesta pandemia, recebemos relatos de juízes de que a posição do ministro em negar a gravidade do coronavírus no cárcere fez com que estes ficassem temerosos em soltar a população presa, colocando a vida de muitas pessoas, e da sociedade como um todo, em risco. Não esperávamos qualquer política positiva do ex-ministro da Justiça, pois ele compunha o governo de um presidente que propaga o ódio e o endurecimento das políticas públicas de segurança.
Mas a questão prisional no Brasil não depende só do governo. A prisão, que deveria ser o último recurso, sempre foi o primeiro, por isso somos o terceiro país que mais encarcera no mundo. E as respostas para massacres e crises nas prisões são mais repressão e violência. E o alvo do cárcere é majoritariamente a população mais marginalizada do país: preta, jovem e periférica.
IHU on-Line – Deseja acrescentar algo?
Petra Silvia Pfaller – É bom lembrar também que os/as agentes penitenciários/as estão correndo risco tanto quanto os presos e presas. A maioria sem o equipamento de proteção, os EPIs. Temos notícias de que muitos profissionais dessa área foram infectados. É impossível, nos presídios insalubres e superlotados, seguir o protocolo de prevenção da pandemia.
Um outro ponto importante é a questão que muitos juízes, sob o discurso de proteger a segurança pública, seguem a política repressiva do Estado e não aplicam as recomendações do CNJ de desencarceramento para diminuição da população carcerária. Alegam que a proteção da sociedade é mais importante e não levam em consideração que - depende do estado - 40, 60% das pessoas encarceradas são presos provisórios, sem sentença condenatória, sendo inocentes segundo a Constituição Federal e correm risco de contrair o perigoso coronavírus. E muitas pessoas presas poderiam sem dúvida ficar em regime domiciliar sem ser um perigo para a sociedade.
Esperamos, para o bem de todos nós, que essa aposta não tenha um fim desastroso, e, caso ela tenha, não foi por falta de aviso. Pergunto como um juiz ou juíza consegue deitar à noite e dormir, sabendo que milhares de custodiados estão nesses infernos do cárcere, expostos a uma pena de morte decretada por omissão. Repete-se o gesto de Pilatos na condenação de Jesus – lavam as mãos.