09 Outubro 2019
Formada por agentes federais de execução penal e agentes penitenciários estaduais, a FTIP foi autorizada no fim de julho pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, a pedido do governador do Pará, Helder Barbalho (MDB). A intervenção veio como resposta do Governo Jair Bolsonaro à crise no sistema carcerário local. No dia 29 de julho, um conflito entre facções resultou num massacre, com a morte de 58 pessoas na unidade prisional de Altamira. Dois dias depois, outras quatro pessoas morreram durante uma transferência de presos. Os agentes federais designados por Moro vêm atuando no sistema penitenciário paraense desde então. "Parece que fizeram uma seleção de psicopatas, e deram o direito a eles se regozijarem nos presos — o que a gente vê é a banalização do mal. Antes, havia tortura? Havia sim, mas era pontual, isolado. Depois da intervenção federal, é generalizado", contou um servidor estadual ouvido em condição de anonimato pelos procuradores.
A reportagem é de Felipe Betim, publicada por El Pais, 09-10-2019.
Nesta segunda-feira, em meio ao escândalo, o ministro Sergio Moro esteve na cidade de Ananindeua para averiguar os trabalhos da intervenção federal. Estava acompanhado do governador Helder Barbalho e de Rottava, o agente afastado por determinação da Justiça devido às denúncias de tortura. Questionado, Moro afirmou que a ação do MPF era um "mal-entendido". "Acho que as bases que levaram à propositura desta ação não estão corretas. Tenho absoluta crença de que, assim que os fatos forem totalmente esclarecidos, esta questão vai ser resolvida. A intervenção levou disciplina para dentro dos presídios", declarou. Sobre a presença de Rottava, que aparece em fotos durante o encontro, Barbalho afirmou que ele estava na condição de assessor do Departamento Penitenciário Nacional.
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) se recusou a comentar nesta terça-feira o caso, revelado pelo jornal O Globo. A jornalistas, limitou-se a dizer: "Só perguntam besteira, só besteira o tempo todo". O deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição na Câmara, afirmou que solicitará a presença de Moro na Comissão de Constituição e Justiça para prestar esclarecimentos sobre a ação do MPF. Os procuradores também se basearam nos relatos de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) e do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura — organismo vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos — que visitaram as unidades prisionais.
Em sua decisão liminar, o juiz federal Jorge Ferraz de Oliveira Junior argumentou que existem indícios suficientes de improbidade administrativa por parte de Rottava, determinando assim seu afastamento para evitar danos ao processo penal. "Embora não conste dos autos elemento que indique que o requerido tenha executado diretamente os supostos atos de abuso de autoridade, tortura e maus tratos, há indícios de que, por sua postura omissiva, tenha concorrido para sua prática", escreveu.
Ao horror das celas superlotadas e das brigas entre facções se soma, no quadro descrito pelo MPF, um terror generalizado implantado pelo próprio Estado. Diferentemente de outras ocasiões, as torturas relatadas já não acontecem de forma isolada, mas sim em larga escala e de forma deliberada. Além das truculências descritas acima, os agentes supostamente obrigavam os presos a ficarem dias inteiros sentados numa quadra, nus e enfileirados, com a mão na cabeça e o joelho na testa, sem comida e tendo que fazer as necessidades fisiológicas no local. Quem se mexesse para aliviar a dor nas costas, apanhava.
"Eu vi eles [dois agentes] pegando o cabo de uma doze e introduzindo na bunda de um rapaz. (...) Tentaram primeiro introduzir no ânus dele um cabo de enxada, mas não conseguiram, aí conseguiram com o cabo da doze; inclusive, eu vi esse rapaz saindo de ambulância e os médicos atendendo ele", contou um preso libertado sobre o dia em que ele e seus colegas tiveram que ficar de 07h30 às 16h45 no campo de futebol do presídio, nus e sob um sol quente, sendo submetidos a espirros de spray de pimenta na cara e pauladas de vassoura nas costas.
Ele também narrou a truculência dos agentes quando precisavam revistar os detentos. "Ouvi de outros presos que os federais acariciavam as partes íntimas, chegando até a meter o dedo no ânus deles. Isso nunca aconteceu antes. Mandam a gente esfolar o pênis, ou seja, tirar a pele da cabeça do pênis, virar de costa e abrir as bochechas da bunda, para ver nossos ânus", relatou o rapaz. "Somos ameaçados toda hora, com spray de pimenta. Estavam fazendo a gente se beijar, homens com homens. Isso aconteceu com seis presos", acrescentou.
Uma advogada representante da OAB que visitou uma das unidades diz que a "situação é a mais deplorável possível", similar a um "campo nazista". Até mesmo os funcionários estaduais da SUSIPE, o sistema penitenciário paraense, estariam sendo humilhados pelos agentes federais, segundo relatos. O regime supostamente implantado pela FTIP atinge as unidades do Complexo Penitenciário de Americano, no município de Santa Izabel, na região metropolitana de Belém. Porém, a ação do MPF também ressalta que os abusos se estendem a outras unidades prisionais do sistema carcerário, como o Centro de Recuperação Feminino (CRF) e o Centro de Triagem Metropolitano (CTM II). O primeiro é formado apenas por mulheres, enquanto que o segundo é um presídio de pequeno porte ocupado por presos de baixa periculosidade, como idosos e estelionatários.
Um grupo composto por representantes da OAB do Pará, do MPF e da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos esteve em mais de uma ocasião no presídio feminino, localizado em Ananindeua. Escutaram relatos sobre o dia em que os agentes da FTIP entraram na unidade às 4 horas da manhã "soltando bombas, espirrando spray de pimenta e colocando as presas para fora das celas apenas de roupas íntimas". Algumas delas permaneceram nuas na frente de agentes federais homens. Muitas também teriam apanhado de cassetetes. As que desmaiaram teriam sido arrastadas e acordadas com spray de pimenta na cara —algumas chegaram a perder a visão, segundo relataram. As mulheres também teriam sido obrigadas a sentar, nuas ou de peças íntimas, sobre um formigueiro em dos pavilhões. Em outras ocasiões, foram agredidas com choques elétricos, tiveram que sentar sobre urina e fezes de rato e foram chamadas de "porcas" e "sujas" pelos agentes. Muitas estavam com hematomas e cuspindo sangue durante a visita das entidades.
Os procuradores também escutaram servidores estaduais que trabalham no CTM II, onde, segundo contam, os presos são "tranquilos" e nunca desrespeitaram os agentes penitenciários ou fizeram rebelião. Porém, o horror chegou junto com os agentes federais da FTIP, segundo relatam os próprios servidores. "Começamos a escutar urros, gritos, foi um horror. Nunca tínhamos pensado em presenciar aquilo", conta um funcionário na condição de anonimato. "Os agentes federais dizem que nós não podemos chamar os presos de 'senhor', mas de 'vagabundo'. Há idosos de 60 a 80 anos, há idosos sequelados de AVC. Somos orientados a falar que todas as necessidades médicas estão sendo atendidas, mas desconhecemos isso", acrescenta. Entre as violências psicológicas, conta que os agentes federais obrigam os presos a gritar quem agora manda no local: "É a força!".
"Tem pessoas com deficiência física e mental que estão maltratadas, como, por exemplo, um preso com deficiência intelectual, outro com um pulmão só e outro com uma perna só. Estão apanhando, mesmo muitos dias após a intervenção, e sem terem reagido a nada".
"Botaram todos no campo de futebol, nos mandaram tirar as roupas, ficamos nus de 07h30 até 16h45. Nesse período passamos por tortura, pois estávamos no sol quente, espirravam spray na gente, quebraram muitos cabos de vassoura nas nossas costas. Como estávamos nus, e fomos obrigados a ficar enfileirados encostados uns nos outros, os órgãos sexuais de um preso encostava no da frente, o que causou muito constrangimento".
"Eu vi eles [dois agentes] pegando o cabo de uma doze e introduzindo na bunda de um rapaz. (...) Tentaram primeiro introduzir no ânus dele um cabo de enxada, mas não conseguiram, aí conseguiram com o cabo da doze; inclusive, eu vi esse rapaz saindo de ambulância e os médicos atendendo ele".
"No outro dia, um colega meu comeu um pacote de bolacha que ele encontrou no chão, e todos estávamos com fome, pois não tínhamos comido, e um agente federal (...), que era o que mais torturava, espirrou spray de pimenta no rosto de um preso e mandou o rapaz esfregar no rosto. Quanto mais se passa a mão no rosto, mais se sente a dor. Nós vimos isso e eu fui questionar com o agente federal sobre isso. Ele pegou uma tábua com prego, levantou a cabeça do prego, e bateu com o prego no meu pé, ou seja, ele inseriu o prego no meu pé direito. (...) No dia seguinte, em vez de eu ter atendimento médico, me torturam (me deram muita porrada e spray) e jogaram de volta pra dentro do bloco novamente, sem atendimento. Depois disso, cancelaram nossa alimentação por quatro dias".
"Na nossa alimentação vem tapuru, lavas, camisinha, luva derretida, pena de galinha, frango cru. A gente come a hora que eles querem, eles pagam [entregam] comida a hora que eles querem. Somos ameaçados toda hora, com spray de pimenta. Estavam fazendo a gente se beijar, homens com homens. Isso aconteceu com seis presos. Eram agentes federais que faziam isso. Chamavam os presos lá na frente e faziam os presos se beijar na frente do resto".
"Os sprays de pimenta são jogados em dias seguidos, em momentos distintos, sem qualquer prévia reação dos presos. Os agentes federais disseram que o spray de pimenta era uma forma dos presos saírem das celas. É um negócio complemente desmedido".
"São agressões generalizadas, graves, e com a conivência do poder Público, do Estado. Parece que fizeram uma seleção de psicopatas, e deram o direito a eles se regozijarem nos presos – o que a gente vê é a banalização do mal".
"Há violência física, psicológica. Sempre tem as determinações: 'A SUSIPE não manda nada, quem manda aqui?' e os presos são obrigados a gritar: 'É a força!'".
"Antes, havia tortura? Havia sim, mas era pontual, isolado. Depois da intervenção federal, é generalizado. Os servidores não estão conseguindo dormir, estão tendo pesadelos; os gritos ficam na nossa cabeça. Não é uma questão de apreço, não é uma questão de gostar dos presos, é uma questão de humanidade, de preservação da dignidade do ser humano".
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O escândalo de tortura no Pará que Bolsonaro e Moro consideram “besteira” e “mal-entendido” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU