Não estamos em 1945. A insistência do Ocidente em ler o mundo pela lente binária da Guerra Fria não é apenas preguiça intelectual; é um erro de cálculo que pode custar a paz global. Quem afirma é o historiador Eden Pereira. Diferente dos analistas de gabinete que traduzem o mundo via agências de notícias, Eden traz a autoridade do testemunho: recém-chegado de temporadas de estudo in situ em 2025 na Tsinghua University (China) e na Universidade Estatal Russa (RGGU), ele dissecou a “ofensiva geopolítica” dos EUA e o papel do Brasil como fiel da balança no novo tabuleiro multipolar.
O entrevista é de Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ).
Em um mundo saturado por narrativas de "Bem contra o Mal", a análise fria é um ato revolucionário. Para Eden Pereira, doutorando em História Comparada pela UFRJ e pesquisador do NIEAAS, o conceito de "Nova Guerra Fria" é um cadáver insepulto que o Norte Global tenta reanimar para manter uma hegemonia que já não se sustenta.
Nesta entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos — IHU, Eden não oferece previsões fáceis, mas um diagnóstico cirúrgico das placas tectônicas que estão se movendo sob nossos pés. Com a vivência de quem respirou o ar político de Pequim e Moscou neste ano de 2025, ele desmonta a tese de que a China e a Rússia são meros "vilões" de um filme de Hollywood. Ele expõe a racionalidade estratégica dessas potências diante do que chama de "caos sistêmico" provocado pelo declínio relativo dos Estados Unidos.
Da guerra na Ucrânia — vista por ele não como uma cruzada moral, mas como uma tragédia de segurança coletiva sabotada — ao genocídio em Gaza, Eden conecta os pontos de uma crise global onde o "Império" (os EUA) atua mais como um agente de instabilidade do que de ordem.

Eden Pereira (Foto: Reprodução X)
Mas há uma fresta de luz no Sul. Ao analisar o papel do Brasil, o pesquisador rejeita o complexo de vira-lata e nos situa como um Swing State global — um "Estado-pêndulo" decisivo. Segundo ele, em um mundo multipolar, o Brasil de Lula não é um anexo do Ocidente, mas um artífice indispensável de uma nova arquitetura de poder.
Uma conversa dura, realista e necessária para quem deseja sair da infância geopolítica e encarar o século XXI como ele realmente é: perigoso, complexo e multipolar.
A atual década é marcada pela emergência de grandes conflitos internacionais envolvendo as grandes potências. Alguns mencionam a emergência de uma nova Guerra Fria envolvendo os EUA, a Rússia e a China. Como você vê isso?
Acho que a primeira reflexão necessária é diferenciarmos os conflitos existentes hoje dos que prevaleceram após o fim da Guerra Fria. A destruição da União Soviética e o fim do chamado mundo bipolar resultaram em uma hegemonia compartilhada dos Estados Unidos. Esse sistema internacional tinha Washington como o centro, mas também integrava órgãos e grupos de países para uma governança global conjunta.
Os estadunidenses reconheciam que, para manter a sua supremacia, não poderiam liderar sozinhos; precisavam atrair os outros polos significativos de poder regionais do mundo para uma arquitetura de sua dominação para o controle da agenda global. Foi assim que os Estados Unidos fortaleceram e ampliaram a OTAN e o bloco do G7, que em um determinado momento atraiu até a Rússia.
Os EUA usaram essas estruturas e consensos para replicar no mundo o método de governo existente até então no chamado “hemisfério ocidental” – área das Américas e Europa Ocidental. A encarnação desse processo foram as chamadas guerras eternas contra as drogas e o terrorismo, que, no fim e ao cabo, resultaram em uma espécie de neocolonialismo de várias partes do mundo.
No entanto, essas guerras, que tiveram uma oposição pontual de alguns países desde o início (Rússia e China principalmente), transformaram-se em uma caixa de Pandora. A pobreza e a miséria multiplicaram-se em níveis nunca vistos, o terrorismo aumentou ainda mais, e o consenso ao redor da liderança estadunidense desapareceu.
Desde o início desse novo momento histórico no fim do século XX, todos os países que se opunham de alguma maneira a essa estrutura eram marginalizados. Cuba, Irã, Coreia do Norte e Venezuela até receberam a designação de Axis of Evil (Eixo do Mal). Porém, em um determinado momento, a Rússia, a China e as potências emergentes também passaram a discordar da forma de governabilidade global existente, que envolvia grande concentração das decisões nas mãos dos EUA.
Tanto os russos como os chineses passaram a reivindicar uma nova arquitetura de segurança, pois também perceberam que os estadunidenses estavam buscando subordiná-los a um papel secundário nesse sistema. Um dos caminhos que os EUA usam para isso foi a desestabilização política de ambos os países a partir de conflitos políticos e militares nos países e nas regiões vizinhas.
Na Ásia Oriental, os EUA impulsionam a militarização do Japão e apoiam militarmente as Filipinas na disputa ao redor do Mar do Sul da China; e na Europa, expandiram a OTAN até o território ucraniano e prepararam os europeus para um conflito de longo prazo com a Rússia através da guerra na Ucrânia.
Há um consenso entre os especialistas de que, em ambos os casos citados, existem problemas que expõem uma crise na arquitetura de segurança global. Quase todos os acordos assinados no fim da Guerra Fria entre a União Soviética e os EUA expiraram e não foram renovados. As instituições criadas para uma governança global compartilhada entre Washington e outros países, como o G20, o Conselho Rússia-OTAN e a Organização para Segurança e Cooperação da Europa, foram completamente marginalizadas.
Esse cenário assentou as bases para uma nova corrida armamentista e a intensificação da ofensiva geopolítica dos EUA para preservar a sua hegemonia. Muitos têm chamado o presente conflito de Guerra Fria com o objetivo de resgatar conceitos e práticas políticas do clássico conflito soviético-estadunidense, como o Macarthismo.
No entanto, o esforço de alguns acadêmicos e jornalistas de recriar artificialmente uma divisão bipolar do mundo já não é possível. Em 1945, os Estados Unidos e a União Soviética eram incontestavelmente as duas principais potências emergentes. Com a única exceção da Grã-Bretanha, não existia no resto do mundo qualquer potência regional capaz de repelir o poder militar e econômico estadunidense. Potências atuais como Índia, China, e até mesmo Brasil e África do Sul, eram países pobres com baixo desenvolvimento das forças produtivas.
Portanto, era um cenário favorável para a projeção do poder estadunidense contra o Estado soviético, que foi desafiado por buscar construir uma arquitetura de segurança no seu entorno imediato naquele momento. Hoje existe um cenário muito mais complexo que impossibilita a reprodução de um mundo bipolar. Além da China e da Rússia, países como o Brasil e a Índia ganharam relevância global no século XXI.
Existem pelo menos três outras potências importantes na Ásia: Indonésia, Japão e Irã; e na África, países como África do Sul, Etiópia e Nigéria são lideranças no continente com capacidade de projeção global. Portanto, denominar como “Nova Guerra Fria” os presentes conflitos globais resultantes da ofensiva geopolítica dos EUA não é só uma questão política, mas um anacronismo histórico.
Você mencionou a guerra na Ucrânia como uma das expressões desse novo momento histórico. É possível que os recentes contatos entre Trump e Putin resultem em um acordo de paz?
Acho que é possível um acordo de cessar-fogo, embora exista um longo caminho até isso. A paz na Ucrânia não pode ser alcançada sem a recomposição da arquitetura de segurança global, que é a raiz do conflito.
A Cúpula do Alasca realizada em agosto teve apenas um único ponto positivo em tudo isso: foi o primeiro contato direto entre um presidente da Rússia e dos EUA desde 2021. Não é normal que as duas principais potências nucleares globais não conversem e mantenham relações diplomáticas restritas e com atritos constantes. Isso é extremamente perigoso para o mundo. Na Crise Caribenha de 1962, envolvendo os mísseis soviéticos em Cuba e os estadunidenses na Turquia, foi realizado todo um esforço diplomático entre Washington e Moscou para o estabelecimento de uma linha direta entre a Casa Branca e o Kremlin.
Isso evitou a escalada em centenas de crises envolvendo Washington e Moscou até a década passada. No entanto, desde o início da Guerra na Ucrânia, a linha não é utilizada. Pior, os caminhos para o diálogo diplomático foram sendo restringidos quando os EUA começaram a emitir sanções contra o Estado russo e os seus diplomatas. A equipe diplomática russa nos EUA vem sendo reduzida desde a presidência de Barack Obama, e a Rússia obviamente tem retaliado em acordo com o direito de resposta equivalente previsto nas convenções internacionais.
A Guerra na Ucrânia é mais uma expressão do que o principal palco desse cenário. Os acordos do fim da Guerra Fria entre a União Soviética e os EUA previam duas coisas fundamentais para a segurança europeia e global: a dissolução das alianças militares e a preservação de uma arquitetura de segurança coletiva. Isso significava que a OTAN também deveria ter sido dissolvida ao lado do Pacto de Varsóvia, e que não existiria uma divisão entre a segurança da Europa e a da Rússia, pois todos estariam integrados em um mesmo arcabouço político e econômico securitário.
Entretanto, nenhum dos acordos foi cumprido, pois os EUA pressionaram pela expansão da OTAN ao leste e passaram a remilitarizar as fronteiras da Rússia. O ápice desse processo foi o Golpe de Fevereiro de 2014 na Ucrânia contra o presidente democraticamente eleito Viktor Yanukovich, através do apoio explícito da Casa Branca à insurreição da Praça Maidan.
O governo ucraniano que emergiu após 2014 não somente era política e militarmente cada vez mais alinhado aos EUA, como também assumiu características nítidas de um regime fascista. Impôs políticas que posicionam russos, húngaros, romenos e poloneses como cidadãos de segunda categoria, elevou ao patamar de heróis nacionais pessoas fascistas que lutaram ao lado de Hitler na Segunda Guerra Mundial, e passou a ser usado como um instrumento de desestabilização da Rússia.
O governo russo tentou chegar a um acordo com os EUA e a Europa em diversos momentos desde os Acordos de Minsk em 2015. No entanto, as diferentes administrações de Obama, Trump e Biden nunca atenderam aos chamados. A gota d’água para os russos veio entre maio de 2021 e janeiro de 2022, quando a Ucrânia estabeleceu como objetivo estratégico a adesão à OTAN. Sabemos hoje, graças ao economista Jeffrey Sachs, que as cartas enviadas pelo governo russo à Casa Branca sobre o tema entre novembro de 2021 e janeiro de 2022 nunca foram nem mesmo lidas.
Naquela ocasião, o presidente russo Vladimir Putin fez um discurso perante a Duma de Estado onde avisou que quaisquer tentativas de desestabilizar a Rússia seriam respondidas de forma “rápida, dura e assimétrica”. Isso tudo significa que a eclosão da Guerra na Ucrânia foi resultado de uma longa crise, que ainda está longe de ser solucionada.
Os EUA sabem que o Estado ucraniano é incapaz de vencer o conflito, mas também não têm o interesse de deixar que a guerra acabe com uma vitória russa que permita a imposição de novos termos de segurança e equilíbrio estratégico na Europa. Inicialmente, a Guerra na Ucrânia foi essencial para dinamitar as relações entre a Rússia e a Europa, sobretudo os vínculos energéticos existentes desde a década de 1980, evitando que os europeus tivessem alguma autonomia estratégica. Portanto, enquanto o conflito continuar, independentemente das consequências em termos de escalada nuclear, os EUA retêm a atenção da Rússia e da Europa na Ucrânia, permitindo que os estadunidenses girem a máquina de guerra para a região da Ásia Oriental.
O objetivo atual de Trump não é acabar com o conflito ucraniano, mas retirar os EUA dele. Isso é um movimento muito complexo, mas possível se os europeus forem capazes de assumir definitivamente o suporte da Ucrânia. Caso não sejam, a opção mais viável é um cessar-fogo seguido de um armistício, congelando o conflito em um modelo similar ao que conhecemos atualmente na Península da Coreia.
É relevante dizer que, desde o início da Guerra na Ucrânia, vários países se apresentaram para mediar saídas para o conflito: a China, a Turquia e até mesmo o Brasil. Inclusive é curioso dizer que o Papa Francisco também ofereceu a Igreja Católica como um espaço de mediação. Pouco tempo após a sua morte recente, a agência RIA Novosti publicou uma entrevista exclusiva e inédita, pouco conhecida no Ocidente, que apenas poderia ser publicada após a morte do líder católico.
Nessa entrevista, Francisco fala que, através das Igrejas Católica e Ortodoxa, os EUA e a Rússia buscavam um caminho de diálogo extraoficial. Esse era um dos objetivos da viagem do Cardeal Matteo Zuppi para Moscou no ano de 2024, onde se reuniu com o Patriarca Kirill e com o governo russo. No entanto, apesar dos esforços do Papa, nenhum avanço concreto para a direção da desescalada da guerra ocorreu.
Considerando tal cenário, qualquer perspectiva de paz a curto e médio prazo na Europa é, no mínimo, excessivamente otimista. Nas negociações do Alasca não foi mencionado absolutamente nada sobre a reorganização da arquitetura de segurança global. Trump nem mesmo respondeu à proposta russa de renegociar o START (Tratado de Redução de Armas Estratégicas), que vai expirar no ano que vem.
Aliás, como resposta à crescente instabilidade da segurança nuclear global, Trump ordenou recentemente a retomada de testes nucleares nos EUA. Por outro lado, a Europa assumiu a gerência do conflito ucraniano desde que Trump chegou à Casa Branca e não está disposta a retornar ao princípio da segurança coletiva. E os estadunidenses não fazem esforço nenhum para desencorajar Emmanuel Macron, Keir Starmer e Friedrich Merz a recuarem das ameaças de enviarem tropas para a Ucrânia e possivelmente iniciarem uma guerra convencional com os russos.
A estratégia trumpista tem sido ora conversar com a Rússia, ora com os europeus e os ucranianos como se fosse uma espécie de mediador. Na realidade, o presidente dos EUA trabalha ativamente para que a polarização entre russos e europeus continue enquanto os estadunidenses deixam o conflito e atuam nos bastidores.
Uma outra região de conflitos na atualidade é o Sudoeste da Ásia. Israel promoveu uma sequência de curtas guerras criminosas contra vários países, e comete crimes de guerra na Palestina. Como você relaciona esse cenário regional com as disputas envolvendo as grandes potências?
O caso da Palestina envolve a ofensiva geopolítica dos EUA contra a China e a Rússia, mas também abrange questões profundas de natureza histórica originadas da presença imperialista naquela região, que criou artificialmente o Estado de Israel contra a vontade da população árabe da região por conta de interesses estratégicos anglo-estadunidenses.
No entanto, as atuais ações de Israel expressam a crise do sistema internacional construído após 1945. E isso acontece porque, antes dos sionistas cometerem os crimes hediondos atuais, outros países centrais da ordem global também o fizeram sem serem punidos. Os EUA nunca foram julgados pelas condutas criminosas durante as guerras na Coreia e no Vietnã, e nem nas guerras eternas do século XXI no Afeganistão e no Iraque.
O bloqueio desumano que Israel impõe sobre Gaza, que resulta no genocídio da população palestina residente, não é tão diferente das sanções contra o Iraque na década de 1990 ou o uso de agentes químicos na Guerra do Vietnã entre 1964 e 1975. O governo de Netanyahu apenas comete estes crimes por ter a certeza de que sairá impune. Inclusive, os EUA sancionaram membros do Tribunal Penal Internacional que apoiaram o julgamento dos crimes do Estado sionista.
Por mais que os diferentes moradores da Casa Branca demonstrem mais ou menos algum desconforto com a forma como o Primeiro-Ministro de Israel age, os EUA precisam dos sionistas no Sudoeste da Ásia. O governo israelense é o maior aliado estadunidense no Oriente Médio desde a década passada.
Com a “perda do Irã” em 1979 devido ao processo revolucionário, os estadunidenses passaram a buscar um aliado de confiança no mundo árabe-muçulmano. Em determinados momentos, a Arábia Saudita e o Egito transformaram-se em fortes candidatos ao posto, mas nunca gozaram da confiança plena em Washington como Israel. Uma das consequências da chamada “Primavera Árabe” foi o enfraquecimento político de todos os potenciais aliados estadunidenses, com a única exceção de Israel.
O Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu também foi ganhando cada vez mais respaldo desde a presidência de Barack Obama para inviabilizar o cumprimento dos Acordos de Oslo entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, por causa do estreitamento de laços entre os países árabes e a Rússia e a China na década passada. De um lado, dedicados a manter a sua presença no Iraque e na Síria, e para controlar o petróleo na Líbia, os EUA precisavam apoiar Israel contra potenciais rivais na região, como a Síria e o Irã.
Por outro lado, reconhecendo essa dependência dos estadunidenses, Netanyahu explorou isso em proveito dos interesses do movimento sionista que almejava criar a “Eretz Israel” (Grande Israel), que abrangeria todas as terras entre os rios Nilo, no Egito, e Eufrates, no Iraque.
Muitos especialistas falam que o lobby sionista nos EUA contribui para essa estreita relação entre Washington e Tel-Aviv. É evidente que a comunidade judaica estadunidense é influente, mas só influência monetária ou política não explica o tamanho apoio que a Casa Branca oferece hoje para Israel. Os EUA precisam de Israel, assim como precisam do Japão na Ásia Oriental e da Alemanha na Europa.
Trump, inclusive, mostrou isso a Netanyahu este ano quando bombardeou o Irã, mas pediu para que o Primeiro-Ministro israelense aceitasse o seu acordo de cessar-fogo em Gaza. Israel tem muito poder de influência em Washington, mas não é ilimitado como muitos pensam. Aliás, cabe dizer que boa parte da pressão sionista nos EUA vem de setores cristãos fundamentalistas estadunidenses, que possuem uma visão teológica da aliança com o sionismo.
Cabe dizer ainda que as guerras de Israel no Sudoeste da Ásia também expõem a erosão dos arcabouços de segurança internacionais em termos de escalada nuclear. Os bombardeios contra as instalações nucleares com o objetivo de criar um incidente de proporções trágicas foi uma grosseira violação aos acordos internacionais, e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) não fez absolutamente nada, exceto dizer para que o Irã permitisse as inspeções do órgão e que cumprisse as obrigações para com o Acordo de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP).
Esse absurdo já tinha precedente na Guerra da Ucrânia, quando as forças armadas ucranianas bombardearam as usinas de Zaporizhia e Kursk e a agência também não fez nada de significativo, exceto emitir algumas notas de preocupação. Em ambas as violações existiu a permissão e a coparticipação dos EUA, seja através de apoio aéreo e missilístico aos ataques, seja por meio dos sistemas eletrônicos satelitários.
Israel também tem apoiado o fundamentalismo cristão maronita no Líbano e o islâmico na Síria, para manter duas guerras a fim de permitir a expansão territorial sionista para o sul do rio Litani libanês e as áreas drusas sírias – Eden Pereira
Não bastasse o genocídio contra a população palestina em Gaza e os ataques contra instalações nucleares no Irã, Israel também tem apoiado o fundamentalismo cristão maronita no Líbano e o islâmico na Síria, para manter duas guerras a fim de permitir a expansão territorial sionista para o sul do rio Litani libanês e as áreas drusas sírias.
Nos dois casos, Israel age com a benção dos EUA, pois no Líbano buscam usar o Hezbollah como espantalho para justificar as intervenções militares realizadas nos últimos anos, e na Síria acusavam Bashar Al-Assad de apoiar o terrorismo enquanto bombardeavam comboios e bases sírias, facilitando a ascensão para a presidência do país do terrorista emir Ahmed Al-Shara, ex-Estado Islâmico. Portanto, as atuais guerras e massacres no Sudoeste da Ásia liderados por Israel são uma expressão do caos sistêmico da ordem global. Enquanto os EUA prosseguirem com a postura de uma ofensiva geopolítica global, Israel deverá prosseguir com o “passe-livre” para agir de forma criminosa e impune.
E como você vê o papel da China nessa conjuntura global instável? A sua pesquisa durante o mestrado envolveu um estudo comparativo da Reforma e a Abertura chinesa com a Perestroika soviética. Que relação você pode estabelecer entre o fortalecimento da posição global da China nas últimas décadas e as reformas iniciadas por Deng Xiaoping? Existe realmente o risco de um conflito militar sino-estadunidense na Ásia Oriental?
A China tornou-se definitivamente uma potência global a partir da década de 2010 através de importantes iniciativas políticas internacionais e regionais. O país não é apenas o principal defensor do multilateralismo e da retomada das discussões sobre a democratização da governança global e da repactuação da estrutura de segurança, como substituiu o papel global detido pelos EUA em termos de investimento e de geração de riqueza.
Basta exemplificarmos na prática apontando que, enquanto a economia chinesa funciona para a construção de indústrias de bens de consumo e de infraestrutura ao lado de serviços de alta qualidade, os estadunidenses especializaram-se no setor militar e de segurança. A exportação de bens e serviços da China contrasta nitidamente com o keynesianismo militar dos EUA.
O cenário atual é o resultado da agudização das escolhas políticas realizadas por Washington e Pequim desde a década de 1980. Em um determinado momento na década de 1970, Deng Xiaoping e outras lideranças experientes no Partido Comunista Chinês (PCCh) chegaram à conclusão de que a República Popular da China apenas poderia resgatar o “orgulho chinês” e retomar o papel de potência global que detinha até o século XIX através de reformas estruturais sérias de modernização do país.
Isso significa que a Reforma e a Abertura não era pura e simplesmente um conjunto de medidas econômicas conjunturais, mas uma estratégia para a reorganização da China para o médio e o longo prazo. Ainda na década de 1980, Deng Xiaoping fixou objetivos econômicos, políticos e sociais a serem cumpridos em cada um dos dois centenários chineses no século XXI.
Para o primeiro deles, o centenário da fundação do PCCh no ano de 2021, os objetivos abrangiam a superação da extrema pobreza, a criação de uma sociedade moderadamente confortável e o estabelecimento de um desenvolvimento inclusivo para todas as regiões e etnias. Todos esses objetivos foram realizados mediante bem-sucedidas políticas de planejamento econômico articuladas com as reformas de mercado que construíram um Socialismo com características chinesas.
O segundo centenário em 2049, que abrange as comemorações de fundação da República Popular da China, tem objetivos ainda mais ambiciosos, pois envolvem a definitiva reintegração de Taiwan, a consolidação de uma sociedade moderna socialista avançada com alto grau de harmonia política, social e econômica, entre outros.
Contudo, esse processo de reemergência chinesa desequilibrou o antigo quadro geopolítico global. Com razão, Henry Kissinger e John Mearsheimer comparam as consequências da ascensão chinesa no século XXI com a unificação alemã do século XIX. Por conta de sua extensão geográfica e recursos disponíveis, a China já é uma potência natural na Ásia Oriental. Contudo, as escolhas acertadas no campo político e econômico ampliaram muito mais esse potencial, causando um grande impacto sobre a ordem global.
Os EUA buscaram inicialmente uma acomodação com a China, pois entendiam que o PCCh faria a mesma escolha que os soviéticos de aderir completamente ao neoliberalismo cedo ou tarde. No entanto, quando isso não aconteceu e a consequência foi o contínuo fortalecimento chinês, a Casa Branca mudou a estratégia de abordagem ainda em meados da década de 2000, após o subsecretário do Pentágono Paul Wolfowitz defender pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria a recriação de uma estratégia de contenção contra a China.
Os EUA, porém, estavam em uma situação muito complexa em termos estratégicos. Desde a década de 1980, a economia chinesa integrou-se profundamente às cadeias produtivas asiáticas e ao mercado dos EUA. A terceirização e a descentralização da produção industrial dos países centrais do capitalismo elevaram os lucros das empresas de um lado, mas, por outro, aumentou a dependência das subvenções e subsídios fiscais em Washington para manter o nível de consumo da sociedade estadunidense, que passou a importar quase tudo da Ásia, especialmente da China.
Portanto, ao deixarem de produzir os bens e serviços e tornarem-se dependentes das importações chinesas de forma paulatina, os EUA ficaram perante o dilema de cortarem as relações econômicas com a China para perseguir os seus objetivos estratégicos, ou manter este modelo de desenvolvimento a médio prazo buscando ampliar o controle direto sobre o fluxo das cadeias produtivas globais mediante coerções e sanções.
Nas administrações Bush e Obama, foi adotada a estratégia gradualista, que Joe Biden tentou resgatar entre 2021 e 2023. No entanto, Trump escolheu o caminho mais duro e impopular ao buscar romper boa parte dos acordos comerciais com a China para adotar um projeto ambicioso de remilitarização do Oceano Pacífico.
Essa estratégia, que busca replicar a contenção realizada contra a União Soviética para o caso da China, abrange a reconstituição de uma série de alianças e acordos político-militares dos Estados Unidos na região Ásia-Pacífico, e a elaboração do conceito espacial de Indo-Pacífico com o objetivo de integrar países da África Oriental e a Índia a essa arquitetura.
Embora a meta final dessa estratégia seja apenas a contenção da China, na prática está criando uma zona militarizada de grandes tensões na Ásia Oriental que cada vez mais envolve os EUA, ainda que busquem evadir de qualquer possível cenário de confronto direto com os chineses ao repassarem a “tarefa de contenção” para os filipinos e japoneses.
Isso ocorre porque a Casa Branca tem compromissos militares com as Filipinas e o Japão, que constantemente confrontam as reivindicações de soberania chinesa marítimas. Taiwan, a província rebelde chinesa, é um dos possíveis barris de pólvora nesse caso, uma vez que os EUA apoiam o movimento secessionista da ilha, polarizando política e militarmente com a China.
Considerando o cenário de um constante e contínuo crescimento chinês, que resulta na expansão de sua influência sobre a Ásia Oriental, muitos especialistas nos EUA têm defendido a necessidade de elevar a estratégia de contenção contra o país, inclusive através da guerra. Think tanks como a Rand Corporation Santa Monica já desenvolveram estudos em dezenas de cenários sobre uma guerra envolvendo Washington e Pequim, demonstrando o impacto global disso.
Uma das avaliações considera que, apesar das consequências negativas, a guerra contra a China poderia paralisar ou ao menos controlar o dinamismo econômico chinês. Isso explica o esforço das administrações Biden e Trump de desacoplar as cadeias produtivas estratégicas da China. Isolar os chineses economicamente é uma maneira de suavizar os impactos de um conflito na Ásia Oriental, que tenderá a ser muito mais profundo do que quando os EUA decidiram expulsar a Rússia do SWIFT e impedi-la de vender petróleo, grãos e outros bens e serviços em 2022, impulsionando a maior onda inflacionária do século XXI.
No entanto, também é preciso deixar claro que os custos de uma guerra na Ásia Oriental envolvendo direta ou indiretamente a China e os EUA não estão restritos à economia. Existe grande probabilidade de ocorrer uma escalada nuclear, cujo resultado final é imprevisível, mas que há quem ache nos EUA que é possível de ser administrada e até mesmo vencível.
Portanto, existem boas chances de que em algum momento um conflito envolvendo direta ou indiretamente os EUA e a China eclodam na Ásia Oriental, uma vez que a contenção militar tornou-se o principal instrumento de pressão política da Casa Branca contra o Estado chinês. Inclusive, esse bullying foi visível na reunião entre Xi Jinping e Donald Trump na Coreia do Sul, quando o presidente estadunidense anunciou a retomada dos testes nucleares poucas horas antes do encontro.
A China já tem as capacidades militares para repelir possíveis ataques dos EUA à sua costa e estão aumentando a projeção naval nas últimas décadas de tal forma que em breve podem ser a principal potência marítima na Ásia Oriental. É exatamente por isso que muitos membros dos governos Biden e Trump defendem que a guerra contra a China precisa ser travada agora, não no começo da próxima década. Portanto, é grande a probabilidade de vermos uma escalada veloz de resultados imprevisíveis nas tensões políticas da Ásia Oriental.
Uma das afirmações mais usuais entre acadêmicos e jornalistas nos últimos tempos é que o mundo caminha para a multipolaridade. Como você caracterizaria este mundo multipolar? E qual pode ser o papel do Brasil nele?
A ordem multipolar pode ser caracterizada como um sistema no qual existe um grupo plural de grandes potências e potências médias que compartilham a governança global sem a existência de um polo hegemônico claro. Cabe dizer que, por boa parte da história, as coisas funcionaram dessa forma. No século XVI, por exemplo, existiam diversos polos de poder mundiais que coexistiam sem a capacidade de impor a sua hegemonia sobre o mundo inteiro através de instrumentos econômicos e militares.
O Império Otomano, possivelmente o mais poderoso dos Estados existentes nesse período, coexistia com os impérios ibéricos e a Dinastia Ming na China. Entre o século XIX e a primeira metade do século XX também existiam múltiplos polos de poder entre os impérios europeus e os EUA, mesmo que o centro geográfico da hegemonia mundial nesse período fosse a região euro-atlântica.
A hegemonia dos EUA sobre o sistema internacional no período pós-Segunda Guerra Mundial foi uma exceção histórica, da mesma forma que a Pax Mongolica na Ásia do século XIII. Tamanha concentração de poder econômico e militar nas mãos estadunidenses apenas foi possível por uma confluência de fatores históricos que dificilmente vão se repetir.
Em 1945, os EUA foram a única entre as principais potências participantes da Segunda Guerra Mundial que não teve o seu território invadido, nem baixas civis significativas. O ataque japonês a Pearl Harbor no Havaí e sobre as ilhas Aleutas foi no meio do Oceano Pacífico, a milhares de quilômetros da costa oeste; nunca existiu qualquer chance séria de uma invasão nipônica ao território continental estadunidense.
A Europa, que colonizava a África e a Ásia, estava completamente destruída; mesmo que sobrevivente, o império britânico estava próximo da falência. As históricas potências da Ásia Oriental, a China e o Japão, estavam arrasados pela guerra e precisariam de décadas para se recuperarem. A União Soviética, a responsável direta pela derrota nazista na Europa, estava significativamente destruída.
Este cenário já tinha mudado completamente na década de 1970, quando a União Soviética tinha sido reconstruída, a China e o Japão reemergiram em diferentes velocidades na Ásia, e a Europa conseguiu reorganizar a sua inserção internacional após perder definitivamente as colônias africanas e asiáticas. Entretanto, as bases estruturais e sistêmicas da ordem internacional construída após 1945 pelos EUA não permitiram transformações significativas.
Pelo contrário, ocorreu uma luta violenta de acomodação entre Washington e estes países por um novo ordenamento, que permaneceu hegemonizado pelos estadunidenses através do compartilhamento de parte do poder da governança global através de instrumentos como o G7, G20, OCDE etc. Essa hegemonia compartilhada entrou em crise com a reemergência da China, da Índia e de outros países do Terceiro Mundo, pois a maneira que as questões internacionais e a agenda eram conduzidas, majoritariamente de forma unilateral, passou a ser contestada.
Entretanto, tais protestos e oposições não constituíram as bases para o direcionamento do mundo no caminho da multipolaridade. Foi necessário um longo processo de acúmulo de forças, possível porque as capacidades produtivas, militares e tecnológicas já não estão tão concentradas nas mãos dos EUA como em 1945 ou em 1970. Inclusive, é revelador apontar que a multipolaridade emergente não é contraditória ao sistema ONU, pois os países que têm sido chamados pela Casa Branca de “subversivos” trabalham na direção da reforma e do fortalecimento das instituições construídas no pós-guerra.
Na verdade, são as ações unilaterais dos EUA através de sanções, operações encobertas e guerras abertas ou não, que têm esvaziado o poder da ONU. Isso está encarnado na prática através do próprio desinvestimento estadunidense nas Nações Unidas desde a década de 1990. Portanto, a realidade é que os EUA não estão sendo “ultrapassados” – ainda –, mas que estão transformando-se em uma potência comum, pois, mesmo que poderosos, não são mais a “nação indispensável”.
O acúmulo de forças dos países emergentes ocorreu através de novas instituições regionais que surgem entre o fim do século XX e início do XXI, como a Organização para Cooperação de Xangai (OCS) e o grupo BRICS. Estes fóruns transformaram-se em espaços reais de decisões relevantes para a governabilidade global, e por isso estão passando por um processo contínuo de expansão ao longo dessa década. Note-se que ambos os grupos não têm característica militar; na verdade, aglomeram visões comuns sobre temas como segurança, economia e diplomacia.
O resultado foi o desenvolvimento de consensos graduais que fortaleceram não apenas os países membros desses fóruns de maneira individual, mas também coletiva. É exatamente por isso que muitos deles ganharam uma projeção global historicamente inédita no momento presente. A emergente ordem multipolar não é apenas composta por grandes potências do passado como a Rússia, a China e a Índia, mas também por Estados constituídos nas margens da hegemonia mundial europeia e estadunidense: Brasil, África do Sul, Indonésia, Nigéria e muitos outros.
Porém, é evidente que as escalas de poder neste novo momento histórico não são equitativas. Os EUA, a China e a Rússia são as principais potências desse sistema, seguidas por um escalão secundário composto por Índia, Brasil e Irã. No entanto, este círculo terá em sua órbita também uma série de potências médias na África e na Ásia, como África do Sul, Nigéria, Etiópia, Indonésia, Japão e Turquia, que medirão forças ao lado da Grã-Bretanha, que ainda possui alguma relevância regional na Europa, no Oceano Atlântico e na África.
Eu penso que o Brasil será um dos principais atores desse momento histórico. O recente e pesado tarifaço de Trump contra o nosso país mostra a nossa relevância. Ao integrar o BRICS e contribuir nos esforços coletivos de recomposição da governabilidade global, o Brasil está desafiando indiretamente aos EUA. Isso é muito duro para a Casa Branca e os seus assessores, que cresceram em um mundo no qual o Brasil sempre foi um anexo de seus domínios no chamado Hemisfério Ocidental.
Por outro lado, frações da classe dominante brasileira, historicamente vinculadas aos EUA e à Europa, tiveram reações mistas a esse processo. Alguns setores sustentaram uma posição nacionalista enquanto outros defenderam de forma tímida que o Brasil deveria negociar com os EUA um acordo para a redução das tarifas. No entanto, a posição firme do presidente Lula ditou as normas das negociações, que não têm um rumo claro ainda, apesar da posição brasileira ser bastante favorável por conta da diversidade de parceiros econômicos e políticos globais existentes hoje.
Diferentemente das décadas de 1960 e 1990, o Brasil não é completamente dependente da economia estadunidense. Vale dizer ainda que um artigo recente na revista Foreign Policy reconheceu o Brasil como um dos chamados seis Swing States globais na luta dos EUA pela preservação de sua hegemonia. E não se trata apenas de reconhecer o nosso país como um potencial ator por causa de seus recursos naturais e humanos.
Desde o fim da ditadura e o início da hegemonia compartilhada dos EUA na década de 1970, o Brasil vem dando lentos passos diplomáticos e políticos na direção de consolidar uma posição intermediária nas relações com a América do Sul e a África, encarnando o seu potencial peso geopolítico no Atlântico Sul. Conquistamos o ápice desse processo durante a Guerra ao Terror na década de 2000, mas fomos limitados pelos instrumentos de poder de hegemonia dos EUA.
Entretanto, com a nossa adesão ao BRICS, esse potencial tem fornecido um acúmulo de forças relevante para que o Brasil esteja entre os principais atores globais hoje. Portanto, acredito que as oportunidades para o Brasil são muito promissoras em uma estrutura de relações mundiais multipolar. Contudo, para que isso seja devidamente aproveitado, é necessário que o país não atravesse novas rupturas políticas a exemplo do golpe de 2016, que resultou em um período de grande instabilidade e reação autoritária contra as transformações sociais, econômicas e políticas que favoreciam a rota multipolar.